Exigir o pagamento da dívida externa é um crime

Fonte IHU Online

Como, e para o benefício de quem, funcionam as finanças globais? Eric Toussaint, ativista belga, historiador, cientista político, membro da CADTM (Comitê pelo Cancelamento da Dívida do Terceiro-Mundo), membro do conselho científico do Attac francês e membro do conselho internacional do Fórum Social Mundial, defende, juntamente com Damien Millet, o perdão da dívida externa dos países em desenvolvimento. No livro 50 Perguntas, 50 Respostas sobre a Dívida. O FMI e o Banco Mundial (Boitempo, 2006), ele analisa os mecanismos utilizados pelos países ricos para exercer um domínio, que se constitui como “uma nova forma de colonização”, praticada por intermédio das dívidas dos países de terceiro mundo e da ação das instituições multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (Bird). O livro e seu pensamento foram o tema da entrevista. Nela, ele também fala da conjuntura nacional e latino-americana.

Porque a dívida externa é definida como um grande estelionato?

Eric Toussaint – O montante pagável em termos de serviço da dívida externa ou interna pública é calculado em uma quantidade muito maior do que a dívida inicial. Através do pagamento, os países endividados transferem, a preços muito altos, a dívida original. A segunda questão é que os países ou os órgãos credores são, na sua maioria, bancos privados ou o que se chama de investidores institucionais, que são os fundos de pensões ou sociedades secretas de segurança pública. São esses credores privados os possessores do dinheiro e os países endividados têm a dívida que é, na sua maioria, em muitos aspectos, uma dívida rancorosa, nula, por várias razões. O país que contrai a dívida possui um regime do tipo despótico, militar. É o caso do Brasil, onde houve o regime de ditadura militar entre 1964 e 1985. Em outros países, as ditaduras militares se prolongaram até os anos 1990, como a Indonésia, onde a ditadura durou de 1965 a 1998, o Congo, de 1965 a 1995, ou o regime do Apartaid, na África, dos anos 1940 até 1994. Grande parte da dívida dos países ditadores em desenvolvimento, tem uma dívida em sua maioria rancorosa e, as novas dívidas que foram contratadas depois da queda das ditaduras, servem para pagar as antigas dívidas contraídas pela ditadura. Então, seguir exigindo o pagamento da dívida externa, para mim, é de certa forma um crime. Uma exigência que não tem base nem ética, nem moral, nem é economicamente aceitável.

Não há um resquício de fundamento moral da dívida externa?

Eric Toussaint – Se uma dívida tivesse sido contratada por um regime democrático, com um projeto que tivesse verdadeiramente permitido ajudar o país, e em boas condições econômicas, com taxas de juros normais, por exemplo, poderíamos dizer que tal dívida moralmente tem o compromisso da parte de um dos dois lados para reembolsá-la. Mas, como respondi na pergunta anterior, a maioria das dívidas atuais não responde a esses critérios, portanto é imoral exigir o pagamento desse tipo de dívida e, também me parece imoral de um governo do sul seguir pagando tal dívida rancorosa.

Quais são as principais mentiras ou distorções no que diz respeito à dívida externa?

Eric Toussaint – A principal mentira se refere a algo que é absolutamente fundamental, e que está, em parte, na origem do problema: os grandes órgãos financeiros internacionais, sejam eles públicos, como o Fundo Monetário Internacional, ou sejam eles privados, como os grandes bancos privados, assim como os governos do norte, afirmam há décadas que os países em vias de desenvolvimento precisam ter dívidas se eles quiserem se desenvolver. Explico-me: a teoria econômica dominante nas universidades afirma que os países em desenvolvimento encontram um obstáculo em sua via de desenvolvimento, porque sua conta poupança anterior é insuficiente. Então, se diz que a poupança local é insuficiente. Falta capital no país. Logo, o país em desenvolvimento, se quiser desenvolver-se, deve procurar capital no exterior, endividando-se, contratando empréstimos junto aos órgãos estrangeiros, sejam eles privados ou públicos.

Diz-se também, e é a corrente atual, que os países em vias de desenvolvimento devem atrair o capital estrangeiro. Para mim, isso é uma grande mentira. Pois, na verdade, o problema dos países em desenvolvimento não é uma insuficiência de poupança local. O problema dos países em desenvolvimento é que os capitais que existem nesses países, em geral, deixam o país. Há uma fuga de capital e, em segundo lugar, quando eles investem no país, o fazem de uma maneira improdutiva. Eles investem, por exemplo, em investimentos rentáveis, principalmente nos empréstimos. Se olharmos hoje, no Brasil, há muitos capitais, mas eles são emprestados pelos bancos brasileiros privados ou por instituições públicas no contexto da dívida pública e do endividamento público dos poderes públicos, o que serve para pagar a dívida pública.

Quero dizer que há um círculo vicioso. Os capitais do sul não são utilizados no investimento produtivo. Eles são, na maioria das vezes, emprestados para o pagamento da dívida pública. Aí é que está o problema. É que nos países do sul, há uma má utilização da poupança interna e dos capitais. Principalmente pelas classes ricas, a classe que dispõe de capital e que não se utiliza dele suficientemente para um investimento produtivo. E há uma má utilização de capitais pelo poder público, que não investe suficientemente na criação de empregos, nas despesas sociais para aumentar a qualidade de vida, nas despesas de infra-estrutura para aumentar o potencial econômico do país. O poder público dos países do sul, e principalmente o poder público do Brasil, destina mais da metade do orçamento do Estado ao pagamento da dívida pública interna e externa. Então, o problema, em resumo, dos países do sul, não é uma insuficiência de capitais, mas sua má utilização no quadro do sistema capitalista globalizado e da hierarquia que existe na economia mundial.

Em sua opinião, o que é verdadeiramente a dívida externa?

Eric Toussaint – A dívida externa é um mecanismo de transferência de riquezas produzidas pelos assalariados e pelos pequenos e médios produtores dos países em desenvolvimento. É um mecanismo de transferência dessa riqueza, que é produzida pelo trabalhador para os credores e os financiadores que são as classes mais ricas da sociedade, sejam as classes ricas dos países do sul dos países do norte. Então, o mecanismo da dívida é um mecanismo de transferência de riquezas dos pobres aos ricos, dos pobres que trabalham para os ricos que dispõem de capitais. E, em segundo lugar, a dívida é um instrumento político, de dominação política. No momento em que um país está endividado, seus credores, que são em parte organizações multilaterais, como o Banco Mundial de Ações Monetárias Internacionais, ou um clube multilateral, que é o Clube de Paris, um órgão informal que agrupou os 19 governos dos países mais ricos, exercem uma chantagem sobre os países endividados. Fazem pressão política sobre os países endividados por ditá-los políticas que correspondem aos interesses das empresas privadas e as grandes estratégias dos países mais ricos. A dívida é transformada em um mecanismo de domínio político. Em resumo, a dívida economicamente falando, em primeiro lugar, é um mecanismo de transferência de riquezas e, em segundo lugar, um mecanismo e um instrumento político de dominação.

O presidente Lula priorizou em seu mandato o pagamento da dívida externa. O que o senhor diz ao presidente e aos brasileiros sobre essa decisão?

Eric Toussaint – Penso que é um erro fundamental. Acredito que o presidente Lula esqueceu de forma voluntária o que ele mesmo dizia, há uma década. Ele próprio afirmava que uma grande parte da dívida pública do Brasil era a dívida inapropriada, pelos argumentos que citei no início dessa entrevista. Esses argumentos eram expressos por Luís Inácio Lula da silva quando ele era dirigente do Partido dos Trabalhadores. Aliás, tive a oportunidade de entrevistá-lo em 1990, 1991, 1992 e 1993. Encontrei-o várias vezes quando ele era presidente do PT. Quando Lula se tornou presidente do Brasil, esqueceu voluntariamente o que ele próprio afirmava.

Fernando Henrique Cardoso, quando se tornou presidente do Brasil, esqueceu também o que escreveu em seus livros quando era um dos teóricos da independência. Lula teve o mesmo problema de amnésia voluntária. Penso na decisão de pagar a dívida e ainda de pagá-la de uma forma antecipada em décadas, como o Brasil fez no início deste ano, pagando 15 bilhões de dólares ao Fundo de Estado Internacional. É uma grave decisão, pois, fazendo isso o Brasil gasta recursos orçamentários absolutamente enormes e estes recursos deveriam antes servir verdadeiramente ao desenvolvimento do Brasil, a aplicação de políticas de reformas estruturais, a aplicação de políticas visando uma melhora verdadeira das condições de vida da população.

Penso que é totalmente insuficiente conduzir uma política, por exemplo, assistencialista, como o Bolsa Família. Não digo que se deva suprimir esse programa. Digo que o Bolsa Família é totalmente insuficiente. Ele pode ser uma política de curto prazo para melhorar o poder de compra dos mais pobres do Brasil. Mas não é de forma alguma uma política de médio ou longo prazo. As políticas de médio e longo prazo devem consistir em reforços estruturais. É preciso aplicar um outro modelo econômico e social no País. O problema do Brasil é que ele reembolsou antecipadamente essa dívida ao Fundo Monetário Internacional, enquanto ele não deveria mais aplicar a mesma disciplina econômica e financeira que era imposta pelo FMI. O Brasil, que não é obrigado a fazer isso, por um acordo com o FMI, continua aplicando o mesmo tipo de política, que corresponde perfeitamente ao Consenso de Washington, que consiste em manter a taxa de juros muito elevada, manter uma liberdade de circulação de capitais total. Logo, ele está suprimindo todo o controle sobre a movimentação de capitais, favorecendo a abertura comercial total, favorecendo os investidores, gastando muito pouco em educação e saúde pública, desenvolvendo muito pouco o setor público em nível industrial e econômico, em geral. São políticas perfeitamente conformes ao Consenso de Washington, com os interesses das grandes empresas multinacionais e do grande capital brasileiro, como o setor de agroexportação, que quer uma política agressiva de exportação de produtos agrícolas que nem mesmo são transformados, como a soja que o Brasil exporta no mercado mundial.

O senhor acha que é coerente a função do programa bolsa família e o fato do presidente empregar, ao mesmo tempo, essa política submissa ao Consenso de Washington?

Eric Toussaint – Sim. Tudo é coerente. O Consenso de Washington prevê o que se chama de uma política direcionada aos mais pobres. É uma política que existe também nos países neoliberais como os EUA e a Grã-Bretanha. Pode-se combinar uma política bastante favorável aos grandes capitais e, ao mesmo tempo, em relação aos setores da população que estão na indulgência, fazer alguns programas sociais. Fazer programas sociais assistencialistas não é, em absoluto, romper com o modelo neoliberal. Romper com este modelo é tentar terminar com a pobreza e não reduzi-la. Um modelo econômico que tenta romper com o modelo neoliberal não consiste em um programa assistencialista direcionado aos pobres, mas a um programa de ruptura integrado em garantir o direito dos pobres e de fazer com que os pobres não sejam mais pobres. Principalmente criando empregos. Isso exige reforçar o setor público e ter uma política ofensiva de criação de emprego. Não digo que é preciso suprimir o setor privado, digo que é preciso reforçar o setor público. E que é preciso reforçar o setor privado dos pequenos e médios produtores, das cooperativas no setor agrícola, na produção urbana, lutando para transformar o setor informal em setor formal, funcionando com normas salariais, com contratos de trabalho legais. O que implica, principalmente, em favorecer um regime de artesãos, de trabalhadores independentes, cooperativas, etc. Então, um modelo alternativo é um modelo que favorece fortemente o emprego no setor público e no setor dos pequenos produtores urbanos e rurais, em diferentes formas de trabalho e de empresas. Isso poderia fornecer milhões de empregos decentes para os brasileiros e isso permitiria combater radicalmente a pobreza.

O que o senhor pensa dos governos atuais na América latina? O senhor acha que há casos de presidentes populistas?

Eric Toussaint – Depende do que chamamos de populismo. Se o populismo consiste em fazer o assistencialismo para ser eleito, para ter uma clientela que vai reeleger o presidente, Lula é populista. Se (é seguidamente a direita quem diz isso), ser populista é tentar redistribuir a riqueza dos ricos para os pobres, então penso que o termo populista, neste caso, não é um termo pejorativo. A direita considera negativo redistribuir a riqueza, favorecendo os pobres, mas, para mim, isso não é nem um pouco pejorativo. Se, ser populista é tentar redistribuir a riqueza em favor dos pobres, então, desejo que haja muitos populistas. Se você me perguntar se há governos na América Latina, hoje, que tentam fazer transformações sociais e econômicas, que vão além da política do governo Lula, diria que, de maneira nuançada, o governo do presidente Evo Morales, na Bolívia e o governo do presidente Hugo Chávez, na Venezuela, tentam ir além do que Lula faz. Penso que há uma tentativa de realizar, nestes países, transformações estruturais. Penso, principalmente, que pela decisão tomada por Evo Morales de retomar o controle sobre os recursos naturais da Bolívia, principalmente sobre o gás e, de impor às sociedades estrangeiras como a Petrobrás, renegociações de contratos de maneira que estas empresas estrangeiras redistribuam, de forma que a população boliviana tenha uma parte importante dos benefícios. Parece-me uma medida muito positiva. Não se trata ainda de grandes mudanças estruturais, mas vai ao menos mais longe do que Lula e, vai em boa direção. É por isso que sou tão crítico em relação a Lula. Apoio com espírito cético Evo Morales e Hugo Chávez, pois penso que eles tentam, em todo o caso, ir mais longe.

Em sua opinião, qual seria o argumento que os países emergentes poderiam utilizar para renegociar a dívida externa com os países credores do norte? O senhor acha que esse é o bom momento para fazer isso?

Eric Toussaint – Sim, penso que a conjuntura atual é muito favorável, pois todos os países em desenvolvimento, ou quase todos, são bastante condicionados. A maioria dos países da América Latina, da Ásia e alguns da África estão em condições financeiras, monetárias, econômicas, de conjuntura favorável. O nível de suas reservas, em divisas fortes, aumentou sensivelmente nos três últimos anos, graças a uma situação internacional na qual o preço da matéria-prima aumentou (e os países do sul são exportadores de matéria-prima), bem como seus rendimentos em divisas fortes, como o dólar, o euro, o yen japonês, a libra esterlina. Os pagamentos em divisas aumentaram. Então, essas são excelentes condições para fazer um fundo de países endividados e exigir uma renegociação completa em vista de obter a redução da dívida. É uma situação favorável, porque se os países do norte podem cessar as represálias, os países do sul têm reservas em moedas estrangeiras que os permitem controlarem, importar os produtos dos quais eles têm necessidade para o seu funcionamento econômico. O mais difícil para se impor em uma renegociação econômica, quando se é um país endividado, é quando se tem pouco dinheiro em seu cofre, quando se tem pouco dinheiro em reserva.

Temo, infelizmente, que os governos do sul não utilizem a conjuntura atual favorável. Temo que a conjuntura mude progressivamente nos próximos anos. E isso pode ser bem rápido, pois o preço da matéria-prima corre o risco de baixar fortemente. O preço das matérias-primas está elevado. O que conduz normalmente a um grande investimento nesse setor. Então, aumenta-se fortemente a oferta de matéria-prima no mercado mundial. Isso vai provocar a queda no seu preço. Não falo do petróleo, que é um caso diferente. Mas no setor de minerais há uma grande produção atual e o preço corre o risco de cair. Em segundo lugar, os EUA e a Europa, e até mesmo o Japão atualmente tentam aumentar muito a taxa de comissão em seus países. A comissão era bastante baixa nos países do norte, muito mais baixa que no Brasil, por exemplo. E os países do norte aumentam a taxa de comissão para atrair os capitais que se encontram nos países do sul. Principalmente nas bolsas do sul, como a Bovespa, ou a bolsa de valores na Índia, na Tailândia, no México. Então, o que está acontecendo e que vai se reforçar nos próximos meses e anos é que há novamente uma fuga de capitais, do sul em direção ao norte. E, talvez, a mais ou menos curto prazo, haverá uma queda do preço da matéria-prima. Isso vai tornar a situação dos países em desenvolvimento muito mais difícil. Isso vai certamente forçar os governos a repensar a negociação da dívida em condições muito mais desfavoráveis do que hoje.

Em sua opinião, quais são os países que administram bem a questão do pagamento da dívida externa?

Eric Toussaint – Infelizmente penso que nenhum governo hoje administre corretamente a questão da dívida. A maioria dos governos, e é o caso mesmo do governo de Hugo Chávez, continua pagando regularmente a dívida pública enquanto que uma boa política consistiria em organizar, enquanto governo, uma auditoria da dívida pública externa e interna. Seria também necessário inspirar-se no governo do presidente Rodriguez Saá, na Argentina, em dezembro de 2001 e depois, no presidente Kirchner que durante 3 anos pararam de pagar a dívida externa pública aos credores privados. Isso durou todo o ano de 2002, 2003 e 2004. Eles negociaram com os credores privados e obtiveram uma redução da dívida externa, da ordem de 60%. Isso demonstra que é possível, por atitude firme, o não pagamento da dívida. É possível obter-se uma redução desta. Mas, penso que a Argentina deveria ter ido mais longe e teria obtido uma maior redução. Mas, ao menos, a Argentina demonstra que com certa firmeza podem-se obter resultados interessantes.

O que pode acontecer no caso dos países em desenvolvimento, não aproveitarem a conjuntura atual para renegociar o pagamento da dívida?

Eric Toussaint – Vão continuar fazendo depósitos extremamente grandes para pagarem a dívida externa e, para poderem fazer esses pagamentos, vão aumentar ainda mais suas dívidas. Pois é preciso saber que para pagar os países contratam novas dívidas. Então, Lula anunciou que estava pagando antecipadamente ao FMI 15 bilhões de dólares. Mas, para poder fazer isso, o Brasil fez duas coisas: desfez-se de suas reservas e contraiu novas dívidas junto a organismos privados. Para reembolsar o FMI, que é um órgão público, ele contraiu novas dívidas junto a órgãos privados. Então, como esses países atualmente não fazem auditoria e não constituem um grupo de países endividados, para não pagarem? Como esses países continuam pagando, aumentam suas dívidas externas e internas? O Brasil aumenta muito a dívida interna. E isso produz um círculo vicioso como falei antes. Acredito que isso vai terminar provocando protestos populares importantes. Como talvez, o que vimos em dezembro de 2001 na Argentina, quando o povo manifestou contra o presidente De La Rua. Talvez isso aconteça em caso de degradação da situação econômica internacional. Talvez, isso vá provocar grandes mobilizações populares e aí os governos estarão na mesma pressão de De La Rua, obrigados a mudar de política.

Qual país representa atualmente a liderança na América Latina?

Eric Toussaint – Do ponto de vista das iniciativas latino-americanas mais importantes, incontestavelmente é a Venezuela. Enquanto que teria sido perfeitamente normal que fosse Lula, que foi eleito em outubro de 2002 com excelente resultado eleitoral. Teria sido legítimo que o Brasil do presidente Lula, a partir de 2003 desempenhasse um papel de completa liderança, reforçando iniciativas para o conjunto da América Latina. Ora, constatamos que Lula, mesmo quando faz propostas internacionais, são propostas que se parecem muito com as propostas feitas por presidentes de direita como Jacques Chirac, na França, ou do presidente democrata da Espanha, Zapatero ou, ainda, de Tony Blair, na Grã-Bretanha. E no plano latino-americano, Lula não tem nenhuma iniciativa. É Chávez quem tem iniciativa, propondo um banco do sul, uma universidade do sul, uma moeda do sul. Propondo ao Brasil de adotar grandes projetos de comunicação e de infra-estrutura. E Lula, em certos casos, aceita as propostas de Hugo Chávez tentando moderá-lo. Quando Chávez consegue tomar iniciativas, é seguido por Evo Morales, pois a Bolívia é um pequeno país e não tem o tamanho e o peso econômico da Argentina. Então, as muito boas propostas de Chávez e Morales são atenuadas no momento em que negociam com seus colegas Lula, Kirchner e Tabaré Vasquez. Foi o caso principalmente das discussões que ocorreram no Fórum do Mercosul, há algumas semanas, em Córdoba. Chegou-se a compromissos, mas, as questões novas que foram abordadas sobre o impulso de Chávez foram muito moderadas. Principalmente sobre a criação de um banco do sul. O que é um sinal positivo, mas insuficiente. Seria necessário, antes de manter o Mercosul em seu quadro atual, reformar profundamente o Mercosul e fazer um projeto continental e não somente um projeto econômico que estaria no contexto neoliberal. Seria necessário um projeto que visasse uma transformação social.

Qual é a definição da política econômica do governo Lula e quais seriam as conseqüências dessa política para o país?

Eric Toussaint – A definição é muito simples. É um modelo de desenvolvimento econômico neoliberal, submetido ao domínio do mercado mundial. O Brasil é algumas vezes economicamente ofensivo no setor da agroexportação, mas, em um contexto totalmente neoliberal. Ou seja, o Brasil apóia grandes empresas brasileiras exportadoras, principalmente de soja, que é, aliás, uma soja transgênica. Nesse caso, Lula é ofensivo, pois exige da parte dos EUA e da União Européia que abram seus mercados. Então, é um modelo neoliberal de trocas livres que é aplicado por Lula. E essa política, se houver uma degradação da situação de políticas econômicas nos próximos anos com, principalmente uma fuga de capitais do sul em direção ao norte, um aumento das comissões no plano internacional e uma queda nos preços das matérias-primas. Isso vai causar no Brasil uma degradação de sua situação no mercado mundial e uma estagnação econômica. E talvez, infelizmente, uma degradação das condições de vida da população. Corremos o risco de constatar em 2 ou 3 anos, um aumento bastante importante do endividamento público interno e externo e da obrigação do Brasil em receber grandes cortes no seu orçamento público para continuar pagando uma dívida que, no entanto, já foi paga diversas vezes.

Com a mobilização pela anulação da dívida externa é vista nos países ricos?

Eric Toussaint – Nos países do norte há importantes comissões que se estabeleceram. O grupo de sindicatos e das organizações não governamentais, movimentos religiosos progressistas, organizações cidadãs, conduzem campanhas junto à opinião pública, junto aos parlamentares para pedir a anulação da dívida dos países do sul, para pedir uma reforma radical ou a abolição das instituições internacionais que são o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e o Clube de Paris. Obtivemos um eco importante na opinião pública. Isso se constata em sondagens, observa-se quando coletamos assinaturas em petições. Por exemplo, há alguns anos, coletamos até 24 milhões de assinaturas em escala mundial, das quais 10 milhões que foram coletadas em países do norte, pela anulação da dívida dos países pobres. Temos também uma ação junto a parlamentares. Temos grupos de parlamentares de diferentes partidos progressistas que apresentam projetos de lei que exigem que se faças a auditoria da dívida dos países do sul. Obtivemos resultados interessantes.