Reforma Agrária caminha devagar

Reforma Agrária caminha devagar

29/12/2004

Fonte Correio da Cidadania

Qual sua avaliação sobre o andamento da Reforma Agrária em 2004? O que faltou e o que houve de bom?

João Pedro Stedile: O processo de Reforma Agrária do governo Lula anda a passos de tartaruga. Não conseguiu honrar com o compromisso que o presidente fez com os movimentos sociais em novembro de 2003, que previa, para os três anos seguintes, o assentamento de 430 mil famílias, priorizando as 200 mil famílias já acampadas. O Incra continua atuando como bombeiro e faltam recursos, servidores para cumprir a meta e uma diretriz do plano nacional de Reforma Agrária que, em sua estratégia, foi abandonado. O que houve de bom foi a implantação do seguro agrícola e a ampliação dos recursos do Pronaf.

As medidas provisórias editadas para liberar o plantio e comercialização dos transgênicos e a lei de biossegurança, que ainda tramita no Congresso, parecem deixar claro que, de agora em diante, os brasileiros terão de conviver com os organismos geneticamente modificados. Quais aspectos políticos e econômicos pode-se extrair desse quadro?

JPS: A atuação do governo federal em relação à liberação de sementes transgênicas foi uma vergonha. O governo ficou refém dos interesses de transnacionais, do governador Germano Rigotto (RS), e dos fazendeiros que sonharam em ganhar dinheiro fácil com as sementes transgênicas e, passados dois anos, já estão amargando as conseqüências. Primeiro porque a soja transgênica não é mais produtiva do que a convencional. Segundo, porque a Monsanto cobrou e levou dos agricultores R$80 milhões na última safra, por meio da cobrança de R$0,60 por saco de soja. E agora anuncia que vai cobrar R$1,20 por saco. Isso representará 5% do preço da soja. É a volta do feudalismo, em que uma transnacional cobra sem vender um grama de semente, sem plantar um grama de semente. Temos também o problema do controle das transnacionais sobre nossa agricultura, pois as sementes transgênicas permitem a propriedade privada das sementes, da vida. O que esta em jogo é a soberania da agricultura brasileira, o direito dos agricultores cultivarem suas próprias sementes ou não. E o governo não entendeu nada disso, fez o jogo das transnacionais.

Quem são os culpados pelo fato da situação dos brasileiros não ter se alterado substancialmente em 2004?

JPS: O Brasil vive uma grave crise de destino. O país, a sociedade e o governo não têm projeto de desenvolvimento. Veja que não estou falando de projeto socialista, estou falando que a sociedade brasileira carece de um plano de vôo. O avião está andando e não sabe para onde ir. Os puxa-sacos de plantão simplesmente argumentam que a inflação está controlada, que a economia voltou a crescer… Isso tudo não representa nada para nosso povo. “Para onde vamos?” é a pergunta chave. O que vamos fazer para que cada brasileiro tenha assegurado trabalho, terra, moradia e educação? Completando a falta de projeto, temos a continuidade da política econômica neoliberal, elogiada pelo presidente e por muitos ministros como se fosse a solução, mas que só agrava os problemas do povo brasileiro.

O crescimento do agronegócio nos últimos anos impede que a agricultura familiar se apresente e consolide-se como um modelo de desenvolvimento para o Brasil? Qual modelo o país deve seguir para crescer?

JPS: A agricultura familiar é um sucesso no Brasil, pois consegue produzir alimentos e sobreviver sem nenhum subsídio. É o setor que gera emprego e produz para o mercado interno. O modelo do agronegócio é de interesse de apenas umas 100 mil fazendas, no máximo, que possuem acima de 500 hectares e se dedicam a produzir dólares por meio da exportação. A burguesia brasileira passou dois anos fazendo propaganda constante na televisão para projetar esse modelo como saída. É saída para os capitalistas das grandes fazendas, mas não é saída, nem solução, para o povo brasileiro. Felizmente, os preços agrícolas no mercado internacional estão baixando, o mercado consumidor externo não cresce e, assim, devagarinho, vai caindo a ficha que o agronegócio não passa de propaganda. Vou dar apenas dois exemplos para mostrar como este não é um modelo de desenvolvimento. Nos últimos dois anos, o agronegócio desempregou 600 mil pessoas no campo, segundo estimativas que tenho lido. E, nos acampamentos, sentimos que muitos Sem Terra vieram acampar despejados pelo avanço do modernismo nas fazendas do agronegócio. Segundo exemplo: entre 1975 e 1980, no auge do boom da soja em que os pequenos tinham acesso ao crédito subsidiado, a indústria de tratores vendia em média 65 mil unidades ao ano. Agora, passados 30 anos e com toda essa propaganda da televisão, as fazendas em todo Brasil compraram 36 mil tratores.

Qual impressão o senhor teve ao ouvir do presidente Lula que quem se surpreendeu com o crescimento da economia em 2004 ficará ainda mais surpreso com os próximos dois anos?

JPS: A economia brasileira sofreu um processo, explicado pelos economistas, de falta de planejamento. E continua numa crise prolongada, desde 1984, em que apresenta um processo cíclico de dois anos de pequenos crescimentos e dois anos de queda. Não há nenhum indicador ou situação que justifique que a economia vai se comportar de forma diferente. A turma de tucanos que ainda manda no Ministério da Fazenda e no Banco Central tiveram sorte pois, justamente, nesses dois últimos anos, sem nenhuma interferência do governo, a economia brasileira cresceu. Mas nada garante que nos próximos dois não baixe. O principal é sabermos que a atual política econômica prioriza pagamento de juros, os bancos e as exportações; e que o governo recolheu R$90 bilhões de impostos de todos os 177 milhões de brasileiros e os transferiu para os 8 mil ricos que são donos dos títulos da dívida interna. E isso é concentração de renda. Imagina R$90 bilhões aplicados em reforma agraria, educação, infra-estrutura, indústria de base etc. Eu acho, como o Carlos Lessa, que ele está sendo enganado. Nosso dever, como amigo, é dizer que a política está errada.

2004 foi um ano bom ou ruim para o MST? Por quê?

JPS: Foi médio. Bom porque continuamos nosso trabalho de acúmulo de forças, aumentando os acampamentos, os cursos de formação e as alianças com outros setores sociais. Realizamos inúmeras atividades massivas: a jornada de abril, as jornadas comemorativas dos 20 anos, diversas conferências em conjunto com outras forças sociais… Foi bom porque devagarinho vamos recolocando a Reforma Agrária na pauta política.

Foi ruim porque a Reforma Agrária está parada; porque o governo se iludiu com o agronegócio, porque as forças conservadoras usaram de toda propaganda possível para criar a falsa idéia de que o agronegócio traz progresso.

Não sei aonde está o progresso. O maior produtor de feijão do Brasil, no regime de agronegócio, mandou assassinar quatro fiscais do Ministério do Trabalho, se elegeu prefeito e saiu da cadeia. O agronegócio é tão moderno e dá tanto lucro que o ministro da agricultura está fazendo pressão para colocar no orçamento de 2005, R$2,2 bilhões à título de subsídio para reparar os prejuízos dos exportadores agrícolas. Enquanto isso, nós tínhamos um orçamento, em 2004, de R$1,7 bilhões e o ministro Palocci reteve a metade para pagar aumento das taxas de juros que o próprio governo aumentou para ele mesmo pagar.