Economia repete padrão do regime militar

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Economia repete padrão do regime militar

05/01/2005

Por Jorge Pereira Filho
Fonte Jornal Brasil de Fato

O governo brasileiro está reproduzindo no campo um modelo econômico reciclado do período militar. A avaliação é do economista Guilherme Delgado, um dos principais intelectuais que elaboraram, em 2003, o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), coordenado pelo advogado Plínio de Arruda Sampaio. As propostas do plano foram levadas como sugestões para as políticas do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Para Delgado, o modelo atual de crescimento não traz desenvolvimento, pois concentra renda, terra e gera exclusão. O economista avalia que a ausência de políticas públicas massivas pela reforma agrária esconde a face perversa do agronegócio brasileiro, um modelo que se aproveita da acumulação financeira a partir do latifúndio improdutivo.

A esquerda vive, hoje, uma crise de paradigma e alguns setores entendem que, no Brasil, a reforma agrária não é mais uma necessidade estrutural da realidade socioeconômica. Seria apenas uma política compensatória restrita a algumas regiões.

Guilherme Delgado – Isso equivale a dizer que não existe questão agrária no Brasil e que o capitalismo resolveu todos os nossos problemas. Essa tese é tão velha quanto o debate que se estabeleceu entre Delfim Neto e Celso Furtado. Delfim defendia que não existia uma questão agrária porque tudo na agricultura se resolveria com insumos, mecanização, educação, fertilizantes. O mercado resolveria o problema da economia agrária. Antes, era a direita que dizia isso com todas as letras. A novidade agora é que algumas pessoas perderam a dimensão histórica da necessidade de mudança nas relações sociais agrárias, que é a essência da reforma agrária. A questão agrária hoje é diferente, mas não é inexistente. Temos um novo padrão de desenvolvimento da economia, uma nova relação de inserção internacional, mas você continua tento uma agricultura familiar pauperizada em que três quartos dessa população plantam apenas para subsistência. Nós continuamos tendo um dos mais altos níveis de concentração fundiária, mais elevados do que o de concentração de renda. Há um desemprego aberto muito grande, até por causa do agronegócio, que não precisa de força de trabalho. Você tem uma economia política agrária em que proprietários da terra ligados ao agronegócio são os proprietários do Brasil rural. Por conta de tudo isso, temos uma questão agrária forte. Basta ir aos municípios de maior pujança do agronegócio, como no sul de Goiás ou Uberlândia, para ver que, quanto mais vigoroso o crescimento da economia, maior a desigualdade entre grandes proprietários e a agricultura familiar, os sem-terra. Se quisermos um desenvolvimento dentro de uma perspectiva de eqüidade e igualdade, isso passa necessariamente por uma política agrária de mudanças nos padrões de assimilação da agricultura familiar, fomento produtivo, enfim, medidas para a inserção dessa massa de gente que está fora da economia real. Eu não posso pensar em um modelo de desenvolvimento que, no rural, beneficia apenas 5% dos estabelecimentos e o restante fi ca restrito à economia de subsistência. Esse é o padrão do agronegócio. Quem pensa assim, não pensa em uma nova estrutura de produção para gerar emprego e renda.

A reforma agrária seria uma aposta na expansão de nosso mercado interno, enquanto o agronegócio visa apenas o externo?

Delgado – O agronegócio brasileiro tem duas grandes contradições. Primeiro, há um elemento estrutural. No caso do Brasil, trata-se de um sistema de produção em que a especulação fundiária o torna diferente. O agronegócio brasileiro não é similar ao europeu ou estadunidense porque realiza uma parte da sua acumulação por meio da renda da terra, um processo de valorização das terras improdutivas que é utilizado como um ciclo econômico. Isso só é possível porque você tem uma política fundiária frouxa. Se fosse efetiva, de acordo com os mandamentos da função social da propriedade, essa prática não seria viável.
Como funciona essa acumulação por meio da renda da terra?

Delgado – Se você pegar as grandes empresas do agronegócio, verá que todas têm patrimônios fundiários produtivos e improdutivos. Os improdutivos se localizam, em geral, em Estados de transição com a fronteira agrícola; e os produtivos, em regiões mais consolidadas. Essa massa de terras improdutivas controladas fora do eixo diretamente operado pelo agronegócio tem o papel de acumular riqueza fundiária que ocorre pela quantidade de terra dominada e pela valorização da terra em função do ciclo agrícola, quando aumentam os preços das commodities e as exportações. Nesse caso, o agronegócio ganha dos dois lados, com a terra produtiva e improdutiva. Só que dessa forma você inviabiliza o acesso dos não-detentores de terra, pois a propriedade se transforma em um instrumento de acumulação financeira. É o dilema do agronegócio brasileiro que, ao alavancar a especulação fundiária, vira um obstáculo à reforma agrária e ao desenvolvimento da agricultura familiar. Além disso, hoje o agronegócio tem o perfil de exportação clássica e foi escalado para gerar um saldo expressivo na balança comercial. Isso torna o problema mais difícil, pois a macroeconomia elegeu o agronegócio para resolver o problema da conta corrente e está fornecendo os instrumentos da manutenção do status quo.

Qual o reflexo disso na vida do camponês?

Delgado – A estratégia do agronegócio é a da concentração fundiária. Ora, há cada vez mais gente sem trabalho e cada vez mais terras concentradas. Tampouco há uma política de reforma agrária que viabilize uma massiva integração dessas pessoas na economia real. Nós precisamos transformar o setor de subsistência em produção de excedentes sob o controle de política agrária. Se não incorporarmos essa massa de gente na economia real e deixarmos que apenas os grandes produtores se apropriem dos ganhos do crescimento, estamos repetindo o padrão de acumulação da economia militar, se é que a economia vai continuar a crescer.

A grande imprensa diz que a renda do agronegócio está levando prosperidade ao campo brasileiro.

Delgado – Isso é outra meia verdade. Em geral, esses áulicos do regime não dizem completas inverdades. No campo, melhorou um pouco a situação da renda por conta do surgimento da previdência rural. Mas para a massa de população em idade ativa, que não tem essa válvula de escape, a solução é o mercado de trabalho, extremamente escasso. Há estudos mostrando que o agronegócio é um dos setores da economia que menos geram empregos em relação ao crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). As grandes fazendas de soja, milho, trigo, por exemplo, têm uma enormidade de formas de mecanização cada vez mais operantes e funcionam com densidade de trabalho muito baixa. Essa mesma operação, se tivesse outra organização, poderia ter outro resultado. Mas se seu modo de produção está baseado na presença de um proprietário, um tratorista apenas, isso tem um efeito de distribuição de renda muito perverso. É falso também que sobra emprego na zona rural.

O senhor participou ativamente do grupo coordenado por Plinio de Arruda Sampaio para elaborar uma proposta de Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Qual o balanço que faz das políticas implementadas pelo o governo para a questão?

Delgado – Eu vou pegar três pontos fundamentais recomendados ao governo, mas que foram absolutamente abandonados. O primeiro diz respeito à revisão dos índices de produtividade, que permite ao poder público realizar a desapropriação. Os atuais índices estão baseados em parâmetros do Censo de 1970; atualizá-los é uma obrigação, mas nada foi feito. Isso depende de portaria interministerial, mas conflita com interesses de latifundiários. Segunda recomendação: a legislação que permite, hoje, que o latifundiário realize lucros extraordinários com a terra, ao indexar a terra à Taxa Referencial (TR) na desapropriação. Tudo isso gera um ônus incalculável para fazer a reforma agrária e um prêmio ao latifúndio. Para mudar, é preciso também um decreto. A terceira recomendação trata das medidas de caráter inovador, na área de comercialização, o chamado Plano de Safra, que precisa ter recursos para suportar as vendas. Reforma agrária não é apenas o processo físico de desapropriação, mas a formulação de políticas de acesso técnico e crédito para ter capacidade de inserção dos assentados e pequenos agricultores no mercado. Sem mecanismos de apoio à comercialização, os assentados e pequenos agricultores ficam na mão do agronegócio e acabam sendo espoliados de outra forma. São questões cruciais que poderiam ser resolvidas por portarias, mas estão paralisadas há um ano.

A equipe que fez o PNRA teve retorno do Ministério do Desenvolvimento Agrário?

Delgado – Eles garantiram que já encaminharam as proposições, mas há resistências, pois é necessário ferir interesses. Certamente, você terá contra si a bancada ruralista e o agronegócio, que vive da especulação imobiliária, grupos que não querem que se mexa nessas questões porque vivem da improdutividade e da renda da terra. É ilusão pensar que agronegócio é hi-tech apenas, é também pata de boi em áreas improdutivas, grilagem, escravidão. Essa parte atrasada está sendo escondida pela parte tecnicamente moderna e os dois estão se apropriando dos lucros. Isso não é desenvolvimento, é atraso.

O programa Fome Zero não iria impulsionar a produção dos pequenos agricultores?

Delgado – Na realidade, você tem experimentos, alguns positivos, como o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar. A verba da merenda escolar em alguns municípios está destinada apenas para a agricultura familiar. Há experimentos em relação a políticas de preços mínimos. Não podemos dizer que não há nada positivo, seria fazer algo ao estilo da Folha de S. Paulo. Mas precisamos de uma ação de maior envergadura. O Brasil é um continente. Você não pode fazer experimentos pontuais, municipais. Reclamo da falta de formulação de uma política nacional massiva de fomento da agricultura familiar e reforma agrária. Um projeto local pode ser positivo, mas afeta um público pequeno e está sujeito às mudanças.

Até que ponto é possível fazer isso sem mexer na política econômica?

Delgado – A política de exportar stricto sensu não é incompatível com a política de desenvolvimento, é preciso acabar com essa dicotomia. Agora, é incompatível exportar excluindo uma fatia enorme da agricultura, viabilizando apenas o agronegócio. Quando você tem uma política de exportar que mantém restrita a demanda interna, aí, sim, ela se torna inimiga não apenas do desenvolvimento agrário, mas do desenvolvimento geral. Se você exporta R$ 100, e essa renda for distribuída por milhares de produtores, vamos fomentar demanda interna. Agora, se exportamos R$ 100, e eles ficam na mão de dois ou três latifundiários, que vão comprar carros, terra, o efeito renda é de concentração. A exportação não é inimiga da agricultura familiar, mas sim esse modelo de exclusão.

O êxodo rural tem aumentado?

Delgado – Para as regiões metropolitanas, é menor, mas mudou de direção, mudou para as cidades de médio porte, que estão todas inchadas. Há um maciço êxodo das cidades de pequeno porte, que reflete uma migração da zona rural para as cidades. Esse processo não se faz de uma vez por todas, vai se esvaziando, aos poucos, a massa de municípios micro, de 25 mil e 30 mil habitantes. Isso ocorre pela perda de capacidade da agricultura de absorver gente. Com um progresso técnico intensivo, sem mexer na estrutura fundiária, o êxodo continua a crescer. As pesquisas mostram que cidades na faixa de 200 mil a 500 mil estão se favelizando. Quando as pessoas enxergam os problemas da violência urbana, mas não apontam para o problema no modelo agrário, eu fico surpreso.

Quem é

Guilherme Delgado é economista e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Foi um dos integrantes da comissão que elaborou uma proposta de Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), sob a coordenação de Plínio de Arruda Sampaio. Delgado também compõe a Comissão Brasileira de Justiça e Paz