Artigo

Os desafios da agricultura brasileira

Mais do que causas climáticas ou falta de crédito, a alta nos alimentos é fruto da falta de suporte à Agricultura Familiar e da concentração de recursos e poder nas mãos de oligopólios do agro
Feira da Reforma Agrária do MST, em Maceió. Foto: Gustavo Marinho/MST

Por José Dirceu*
Da Carta Capital

Muito se falou dos preços dos alimentos depois que pesquisas de opinião indicaram pequenas oscilações no apoio ao presidente Lula e a seu governo. Nossa longa experiência em governar nos aconselha a ouvir a voz das ruas e mudar o que o povo entende que não está bem. Simples assim. A começar pelos preços dos gêneros de primeira necessidade.

Para entender por que sobem e por que faltam, precisamos analisar nossa agricultura, seja ela empresarial ou familiar; saber como está distribuída a riqueza nacional, a terra e a água; quem compra e quem vende nossa produção; quem controla a terra e a técnica, máquinas, adubos e agrotóxicos, o acesso à energia, as sementes; quem controla a comercialização e a exportação; quem paga impostos e quais impostos.

Temos três modos de produção. Começando pelo empresarial, onde aproximadamente 20 mil proprietários detêm 100 milhões de hectares no país. São os nossos modernos latifúndios monocultores. Parte importante de sua expansão nos últimos 20 anos se deu às custas do desmatamento, da venda da madeira ou da exploração mineral, para depois iniciar a produção agrícola, às vezes precedida pela pecuária. Desde a Lei Kandir, nosso agronegócio não paga impostos. Com base numa riqueza natural como o minério, o petróleo e o gás, essa produção usa um bem de todos – a terra, a água e seu subsolo – sem que parte dessa renda seja apropriada pela sociedade.

Depois, temos cerca de 30 mil proprietários de terras com mais de 1.000 hectares e outros 300 mil com áreas entre 100 e 1.000 hectares. Esses proprietários, que arrendam ou cultivam suas terras, produzem nossas commodities para exportação e para o mercado interno. Apesar de manterem uma aliança ideológica, porém, eles nem sempre têm os mesmos interesses. Essas diferenças muitas vezes se devem às variações no mercado interno e às distintas condições econômicas, assemelhando-se, em certa medida, a uma classe média. Constituem o que se convencionou chamar de agronegócio como seu modo de vida, cultura e força política, e têm a bancada ruralista como expressão do seu poder econômico e defensora de seus interesses.

Um programa de governo deve democratizar o acesso à terra, as sementes, a água e sua proteção, a energia, a prioridade à produção de alimentos saudáveis e diversificada.

Não se pode esquecer que, nos municípios monocultores e grandes produtores de grãos, temos os piores IDH, e que vivem em déficit os estados onde a agricultura é o setor econômico mais importante, fruto das isenções, incentivos e renúncias fiscais concedidos para atrair indústrias, ou fruto da Lei Kandir. Daí o baixo IDH de suas carentes de investimentos sociais.

Um exemplo que explica essa situação é o da soja, onde 70% da renda produzida é apropriada pelas multinacionais, 13% ficam com os proprietários, 9% com o capital financeiro, 7% com os trabalhadores e 2% vão para os impostos, segundo estudos da Conab.

Hoje o agronegócio enfrenta vários desafios: queda do preço das commodities e aumento do custo dos insumos e do crédito; falta de armazéns, o que o obriga a vender a safra para o oligopólio das quatro irmãs ABCD (ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus), um oligopólio só agora rompido pela presença da chinesa COFCO; os juros altos e a descapitalização dos bancos públicos e do BNDES, de que a própria bancada ruralista é responsável. Outro desafio é a transição ambiental e energética, do agrotóxico para o biológico e do desmatamento para o aumento da produtividade nas áreas já ocupadas, notadamente na pecuária.

Por fim, temos a chamada agricultura familiar, com quase 4 milhões de propriedades, dedicada à policultura e ao mercado interno. São 800 mil famílias integradas ao mercado da agroindústria e que dependem do abastecimento do crédito, máquinas, adubos e agrotóxicos. Geralmente são clientes do Pronaf, que oferecerá R$ 71,6 bilhões para a safra 2023/2024 de crédito subsidiado à agricultura familiar vis a vis ao Plano Safra, que destinou este ano R$ 364 bilhões ao agronegócio, 27% superior à safra anterior.

Existem no Brasil quase 4 milhões de propriedades familiares que ocupam 10 milhões de trabalhadores, segundo informações do IBGE referentes a 2017. Naquele ano, na agricultura empresarial trabalhavam 4,25 milhões, ocupando uma área de 80 milhões de hectares, o que por si demonstra a importância da agricultura familiar. Naquele ano, a agricultura familiar produziu 23% de toda a produção agropecuária do país, índice que chegou a 33% em 2006.

O peso da agricultura familiar é enorme na Bahia, onde havia, em 2017, segundo o IBGE, cerca de 761 mil estabelecimentos com mais de 2 milhões de pessoas ocupadas. Em Minas Gerais, eram 606 mil estabelecimentos e 1,8 milhão de pessoas ocupadas. Todo o Nordeste ocupava 4,7 milhões em 2,3 milhões estabelecimentos (em compensação eram 7,6 milhões em 2006). Vemos que houve um êxodo rural expressivo para as cidades, tanto pela mecanização e quimificação, que é mais utilizado pelas médias e grandes propriedades, quanto pela busca de melhores condições de vida.

Essa queda na produção se deu exatamente nos produtos essenciais para a mesa das famílias – arroz, feijão, mandioca, milho, soja e trigo –, o que nos leva à conclusão de que o desabastecimento ou aumento dos preços dos gêneros de primeira necessidade está ligado a dois fatores: o não apoio à agricultura familiar e a concentração em oligopólios de tudo que a agricultura necessita, como máquinas, adubos e agrotóxicos, comercialização e crédito. O apoio governamental deixa de lado 3 milhões de famílias.

Não se trata apenas de crise por causas climáticas ou por falta de crédito, mas do modelo que adotamos. Os três setores da agricultura e da pecuária dependem 1/3 das multinacionais, 1/3 das cooperativas e 1/3 de grandes empresas nacionais; 96 grandes empresas controlam quase toda a produção, os insumos principais e o comércio, com o agravante de os principais insumos do agronegócio brasileiro serem importados e estarem sujeitos às crises geopolíticas ou a pandemias, como vimos nos casos do Covid, da guerra da Ucrânia e do conflito no Oriente Médio.

Tudo isso exige do país e do governo medidas imediatas para substituir, por meio de um programa de reindustrialização dessas cadeias produtivas, as importações de fertilizantes e agrotóxicos, de produtos químicos e farmacêuticos, e de tecnologia, a fim de evitar o risco da alta do preço desses insumos – ou, literalmente, do desabastecimento, como foi o caso dos fertilizantes.

A pergunta a ser feita é: como mudar esse quadro de alto risco – como vimos este ano com as questões climáticas e a total falta de estoques reguladores – e adotar políticas políticas governamentais que evitem o aumento de preços sem uma razão objetiva? Não custa lembrar que vimos isso no caso do arroz, 80% dele produzido no Rio Grande do Sul, com comércio controlado por três empresas. Elas decidiram aumentar os preços, mesmo antes da colheita da safra, com o argumento de que choveu no plantio, quando o país podia importar ou usar estoques reguladores que os tivessem. Essa mesma necessidade ocorre quando os preços no exterior levam ao desabastecimento interno pela prioridade dada à exportação, ou quando a importação poderia regular os preços e não é feita pela pressão dos produtores e comerciantes nacionais.

Para ter estoques reguladores, o governo precisaria de R$ 5 bilhões, mas a Conab, que foi totalmente desmontada no governo anterior, só tem R$ 1,5 bilhão, com R$ 300 milhões para o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos). O PAA deveria ser o motor propulsor da agricultura familiar, mas atende apenas 44 mil famílias num universo de 1 milhão de famílias. O programa poderia produzir alimentos para a nossa mesa e ser o principal instrumento governamental para aumento da produção e regulação do mercado, evitando o desabastecimento ou o aumento de preços nas entressafras ou em momentos de queda da produção por razões climáticas.

Se considerarmos que existem mais 3 milhões de propriedades familiares, para além de 800 mil que estão integradas no sistema de cooperativas e no agronegócio – que a bem da verdade compram todos os insumos da indústria com o crédito do Pronaf, máquinas, adubos e agrotóxicos – é possível ter uma ideia do potencial do país, com capacidade para produzir alimentos de repercussão imediata na economia local e regional e no nível de vida e renda das populações locais. Isso exige uma integração entre a Nova Indústria Brasil e nossa agricultura.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, anunciam o Plano Safra da Agricultura Familiar. Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

Toda a experiência de reforma agrária, do MST, das cooperativas de produção e das agroindústrias constituídas por famílias de agricultores demonstra o efeito extraordinário no aumento da renda local e regional, no crescimento do comércio, da construção civil, dos serviços e da arrecadação municipal. Um país continental e desigual como o Brasil, atrasado na corrida tecnológica, mas avançado em sua agricultura e no setor energético, tem de aproveitar todos os seus fatores de produção para crescer e distribuir renda. Ao contrário do que diz certa propaganda, o MST tem sido um fator político e produtivo nessa direção e sua experiência deve ser apoiada pelo governo e pela sociedade.

Os programas de compra da produção familiar para a merenda escolar e o PAA para estoques reguladores deveriam constituir uma política nacional para todas as prefeituras e governos estaduais, dado o potencial que as quase 4 milhões de famílias têm de e produzir e empregar milhões de brasileiros. Basta contar 1 milhão de propriedades criando 2 empregos no ano, fora seu efeito na saúde, no nível de vida e crescimento sadio de nossas crianças e jovens. O Brasil tem cerca de 2 milhões de trabalhadores permanentes na agricultura e pecuária, e outros 2 milhões temporários vivendo nas periferias das médias e pequenas cidades sem trabalho e sem direitos trabalhistas e previdenciários.

Os desafios não param, já que a agricultura apoiada no desmatamento e no uso de agrotóxico está condenada por questões ambientais, pela saúde pública e pelas restrições à exportação ou pelo seu uso na guerra comercial protecionista – algo visto na na Europa, que vive uma convulsão social devido aos protestos dos pequenos agricultores contrários à abertura de seus mercados altamente subsidiados. Hoje a proteção ambiental e o custo da água e da energia impõem ao agronegócio mudanças urgentes no seu modelo de produção, assim como em sua dependência das importações de insumos.

A agricultura orgânica se impõe, e o MST é um exemplo nesse sentido, com sua decisão de plantar 100 milhões de árvores e evoluir para a agricultura orgânica nacional e para a produção, beneficiamento e comercialização integrada de sua produção tal como as cooperativas. O MST buscou inclusive a produção interna de máquinas e equipamentos adequados para a pequena e média propriedade. E, no mercado financeiro, buscou crédito para seus projetos de forma bem-sucedida.

Algo essencial para a evolução produtiva do país é a universalização do acesso à assistência técnica. A assistência ao produtor e, principalmente, o acompanhamento ao agricultor familiar tem sido um dos grandes gargalos para a elevação de patamares produtivos nos municípios, visto que os municípios dependem ou optam por apenas ofertar este serviço pelas vias das empresas públicas de ATER (Assistência Técnica e Extensão Rural) controladas por seus estados, e que muitas delas estão sucateadas ou sem a estrutura necessária para prestar o atendimento ideal aos agricultores.

É necessário também impor instrumentos formais de debate nos municípios sobre a temática do desenvolvimento da Agricultura Familiar, tal como a construção do Plano de Desenvolvimento da Agricultura nos municípios, possibilitando assim uma ótica diferenciada do ambiente produtivo e de mercado interno, microrregional, regional e estadual que dificilmente os agricultores, principalmente os familiares, tem condições de vislumbrar.

Um programa de governo deve democratizar o acesso à terra, as sementes, a água e sua proteção, a energia, a prioridade à produção de alimentos saudáveis e diversificada, garantindo nossa soberania alimentar sem agrotóxicos, um modelo tecnológico adaptado à agricultura familiar, acesso à educação e à saúde e uma política agrícola com crédito barato, garantia de compra a preços rentáveis, assistência tecnológica e armazenagem. Desse modo dará segurança e garantia do acesso à alimentação para todo o nosso povo e o fim da fome e da subnutrição, uma vergonha nacional frente à pujança de nosso agronegócio.

O presidente Lula se deu conta desse desafio e convocou seus ministros da Agricultura e Pecuária e do Desenvolvimento Agrário, além do presidente da Conab – todos com larga experiência em gestão e na questão tanto do agronegócio como da agricultura familiar – para reexaminar nossos programas governamentais para os produtos de primeira necessidade, incluindo arroz, feijão, batata, tomate, alho, cebola, ovos, leite e carne. Mas entendo que o país precisa de um debate nacional sobre a questão agrícola.

A Embrapa necessita urgentemente ser recuperada da política de desmonte do governo anterior, com recursos orçamentários à altura de seu desafio e de sua vital importância comprovada nas últimas décadas, sobretudo com a retomada da política externa brasileira, que exigirá da empresa uma atuação solidária e empresarial em diferentes países, começando pela nossa região e a África, para dar dois exemplos. Para tanto, é preciso estar consciente de que o investimento em ações de pesquisa e desenvolvimento, direcionadas à produção sustentável de commodities agrícolas e de produtos que compõem a cesta básica dos brasileiros, será o elemento diferenciador do projeto que queremos para o Brasil: um país que tem condições de alimentar sua população e, de forma solidária, ajudar a equacionar a fome que assola mais de 9% da população mundial. Isso só virá com trabalho árduo e, entre outros fatores, com a necessária valorização da pesquisa agropecuária pública e da Embrapa.

O Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável, presidido pelo presidente Lula, pelo vice Geraldo Alckmin e pelo ministro Alexandre Padilha, é o espaço ideal para buscar uma reorganização em nossa política agrícola e de reforma agrária com uma nova matriz agroecológica (lembrando que o Brasil tem 2 milhões de camponeses sem-terra), e de abastecimento. Sob pena de um país rico como o nosso, com a agricultura mais moderna do mundo, passar pelo vexame mundial de ter 20 milhões de brasileiros com fome e ver seus cidadãos e famílias com dificuldades pelos altos preços de comprar os produtos básicos para uma vida saudável.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

* Advogado, ex-deputado federal, ex-ministro-chefe da Casa Civil e ex-presidente nacional do PT.