Falta de Estrutura

Assentamentos do MST denunciam falta de orçamento para infraestrutura e direitos básicos

Na segunda parte da reportagem, famílias assentadas reclamam da falta de investimentos públicos na estruturação da vida nos assentamentos e cobram soluções do governo
Assentada Orlanda do setor de saúde do MST, na sua horta medicinal, em frente a moradia no assentamento Maria da Penha, em MG. Desde 2019 as famílias lutam pelos créditos no assentamento. Foto: Agatha Azevedo 

Por Solange Engelmann*
Da Página do MST

Na luta pela terra, após as famílias Sem Terra do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) conquistarem o primeiro objetivo do Movimento, que se trata da democratização da terra com a transformação de um latifúndio em uma área de assentamento, e na maioria das vezes só é possível após anos de luta, vivendo em acampamentos de barracas de lona de forma itinerante e precária, em seguida se iniciam novos processos de luta para a conquista do segundo objetivo do Movimento, a realização da Reforma Agrária Popular.

As famílias, após assentadas, se mobilizam para seguir na luta, agora na terra e garantir a permanência nesse espaço, que antes geralmente abrigava criação de animais, produção de monoculturas, com uso de agrotóxicos e áreas degradas. Para voltar a gerar vida nesses espaços, recuperar o solo, o meio ambiente e fixar as moradias para a produção de alimentos, as famílias precisam seguir organizadas, e em luta pela efetivação de um conjunto de políticas públicas para o desenvolvimento desses territórios. E assim avançar no terceiro objetivo do MST, a transformação social e a construção do socialismo, em uma sociedade com relações livres de qualquer tipo de discriminação e violência, e com justiça social.

Esse conjunto de diretrizes e valores integram o Programa Agrário do MST, que está sendo debatido e atualizado pela base Sem Terra em todo o país para a realização do 7º Congresso do MST, previsto para ocorrer em julho de 2025, em Brasília.

Nesse sentido, após a primeira parte da reportagem sobre a necessidade de políticas públicas para a criação de novos assentamentos e a estagnação do orçamento do governo federal para a Reforma Agrária, nessa reportagem avançamos no debate sobre as políticas públicas para a permanência e estruturação da vida das famílias assentadas no campo.

Em mais de 40 anos, o MST segue em luta, juntamente com as famílias assentadas, na busca por políticas públicas para a infraestrutura nos assentamentos, como a moradia rural, rede de energia elétrica, água e saneamento básico, estradas, e um conjunto de direitos previstos em lei, como a construção de escolas do campo e postos de saúde, entre outros, para que as famílias tenham condições de vida digna nos assentamentos conquistados na luta coletiva.

Em Mathias Lobato, no Vale do Rio Doce, Minas Gerais, desde 10 de julho de 2019, ao todo 31 famílias Sem Terra do MST, que vivem no assentamento Maria da Penha, seguem em luta pela liberação dos créditos iniciais para instalação e estruturação do assentamento, emitido na posse pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), no mesmo ano. Segundo as famílias, o assentamento não possui nenhuma infraestrutura e mesmo estando próximo a uma BR, as estradas de acesso também ainda não foram feitas pelo órgão.

O assentado no Maria da Penha e dirigente do MST no Vale do Rio Doce, José Carlos, destaca que até hoje as famílias aguardam a homologação do assentamento e a liberação dos créditos. “Então, tem quase cinco anos praticamente que o Incra emitiu a posse e até hoje não tem nenhum recurso para as famílias se desenvolver na área. Tudo que está sendo feito é com a força e as poucas economias das famílias. É necessário a regularização do assentamento para os investimentos necessários para o seu avanço, principalmente na produção e na economia das famílias.”

A ocupação do latifúndio aconteceu em 2009. Segundo José, tem famílias que estão há 15 anos lutando pelo acesso à terra. Ainda em MG, a situação é a mesma no assentamento Dênis Gonçalves, em Goianá, na Zona da Mata, em que as famílias também não receberam os créditos de instalação até o momento.

O caso também é comum em vários estados do país, como em três assentamentos do MST em Goiás: o assentamento Chico Mendes, com 182 famílias e emissão de posse pelo Incra em 2012; assentamento 08 de Março, com 32 famílias e emissão de posse em 2016, localizados no município de Crichás e o assentamento Paulo Gomes, que conta com 18 famílias, e conquistou a emissão de posse em 2016, no município de Itapuranga. Estes são somente alguns exemplos de assentamentos do MST no Brasil, destinados para fins de Reforma Agrária pelo Incra, mas que não receberam os créditos de instalação e as políticas públicas necessárias para a moradia das famílias e seu desenvolvimento.

Terra da Gente não prevê recursos para estruturação de assentamentos

Nesse sentido, em relação às demandas da Reforma Agrária no Brasil, e tentando dar uma resposta às lutas dos movimentos populares no país, entre eles do MST, em 15 de abril, o Governo Lula lançou o Programa Terra da Gente, que, na visão do governo, busca “agilizar a reforma agrária”, a partir da aquisição de “terras disponíveis no País para assentar famílias que querem viver e trabalhar no campo”.

Porém, na visão dos dirigentes do MST o programa não pode ser visto como uma política de Reforma Agrária, mas apenas como uma forma de compensação social, que não resolve o problema da concentração de terra no país, enfatizou Gilmar Mauro, da coordenação nacional do MST, em entrevista ao Brasil de Fato. O foco principal do programa está na desapropriação de terras devolutas da União para a criação de assentamentos e não na democratização da terra a partir de latifúndios.

A estagnação da Reforma Agrária foi denunciada durante pela Jornada de Luta das Mulheres Sem Terra deste ano. Foto: Morgana Souza 

Para a criação de novos assentamentos de famílias sem-terra no Brasil, por meio do Programa foi anunciado um orçamento de R$ 520 milhões em 2024, que beneficiaria 73 mil famílias, e a criação do Programa Nacional de Reforma Agrária, com a estimativa de beneficiar 295 mil famílias com assentamento até 2026. Porém, para a estruturação dos assentamentos não teve nenhum anúncio de investimentos.

Nesse âmbito, os recursos disponíveis para o acesso das famílias assentadas se concentram em financiamentos do Plano Safra da Agricultura Familiar, entre os períodos de 2023 e 2024, anunciados ano passado com um montante de R$ 77,7 bilhões, para atender toda a Agricultura Familiar e Camponesa do país. Desse valor, R$ 71,6 bilhões são para crédito rural, investimento que pode ser acessado através do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). É importante reconhecer que o valor desse Plano Safra bateu recorde em volume de recurso em relação aos anos anteriores, mas não chega nem perto dos recursos destinados ao agronegócio, por meio do Plano Safra comum, que no mesmo período concentra um montante de R$ 364,22 bilhões.

Nessa linha, a dirigente nacional do MST em Alagoas, Débora Nunes, enfatiza que falta prioridade por parte do governo federal. Ela explica que, se a Reforma Agrária e a Agricultura Familiar Camponesa no Brasil fossem vistas pelo Governo Lula como saídas estratégicas para resolver os problemas da população do campo e da cidade teriam recursos públicos para isso.

Em se tratando das demandas de infraestruturas e de todas as outras necessidades (crédito, moradia, agroindústria, energia disponível em quantidade e qualidades para a atividade agropecuária, mecanização, bioinsumos, espaços comunitários de convivência, lazer e cultura, educação), nos assentamentos de Reforma Agrária, além da necessidade de orçamento e reestruturação do Incra, exige-se também a decisão política de governo de que a Reforma Agrária e Agricultura Familiar são essenciais para resolver problemas estruturais de toda a sociedade.”

Débora Nunes

Segundo a superintendente regional do Incra em São Paulo, Sabrina Diniz, em relação a infraestrutura para os assentamentos e investimentos necessários para o desenvolvimento e a garantia de vida nessas áreas, como a questão da água, a falta de estradas de acesso, entre outros, a autarquia enfrenta a falta de orçamento para o desenvolvimento dessas políticas públicas, que agora é de responsabilidade do Congresso Nacional.

“Hoje, basicamente o que o Incra investe em infraestrutura de assentamento vem por meio de emenda parlamentar. Quando começou esse processo de transferência para o Congresso Nacional o orçamento, a gente teve uma retirada de recurso do orçamento do Poder Executivo e isso foi colocado na mão do Congresso Nacional, dos deputados federais e senadores. Isso faz com que o orçamento do Executivo seja um orçamento reduzido. Então temos hoje um problema muito grande também de orçamento para poder investir na infraestrutura de assentamentos”, lamenta Sabrina.

Essa questão amplia as dificuldades do MST e dos movimentos populares de luta pela terra no país, quanto ao acesso a essas políticas públicas, pois hoje o Brasil conta com um dos Congressos Nacionais mais conservadores da sua história, com grande parte dos parlamentares contrários à Reforma Agrária e que integram a bancada do boi, ruralista, do agronegócio, da bala e bolsonaristas.

A política fascista e de criminalização dos movimentos sociais por parte do Congresso ficou evidente na aprovação do Projeto de Lei (709/2023), pela maioria absoluta da Câmara dos Deputados, que retira direitos das pessoas que participam de ocupações de terra, de participar do Programa Nacional de Reforma Agrária, além de ficar impedido de receber benefícios como créditos rurais, entrar em programas de assistência social como Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada (BPC) e Minha Casa Minha Vida.

Já em relação aos direitos sociais, o Programa Terra da Gente, o governo federal anunciou a suplementação de R$ 20 milhões para o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), em projetos de educação e ensino nas áreas de Reforma Agrária. Entretanto, em entrevista recente ao Joio do Trigo, o dirigente nacional do MST, João Pedro Stedile denuncia que até o momento não há avanços em relação ao Pronera, além da paralisação das desapropriações e créditos para os assentamentos.

Retorno do Incra sobre estagnação da Reforma Agrária

Na primeira parte da reportagem sobre as políticas públicas para as áreas de Reforma Agrária no Governo Lula apresentamos a problemática da falta de orçamento para a criação de novos assentamentos e a falta de orçamento para estruturação de assentamentos criados antes de 2023. Em relação à isso, a superintendente regional do Incra em São Paulo, Sabrina Diniz explica que para avançar na criação de novos assentamentos o Incra precisa obter terras, mas hoje o principal entrave está no limite do orçamento para a obtenção de terras pela autarquia.

Na Jornada Nacional de Lutas em Defesa da Reforma Agrária trabalhadores/as do MST ocuparam Incras em todo Brasil para cobrar a retomada do orçamento para Reforma Agrária. Foto: Leonardo Marinho

O orçamento para obtenção de terras ainda é muito baixo. O Incra hoje tem mais de R$ 900 milhões contingenciados no Congresso Nacional, que poderiam estar sendo utilizados para obtenção de terra. Então, a questão orçamentária de fato é um limite grande para a gente executar essa política pública.”

– Sabrina Diniz

Além disso, a superintendente relata que a autarquia também enfrenta entraves burocráticos e judiciais para criação de assentamentos. “Hoje a gente tem como forma de obtenção de terra a desapropriação e a compra e venda pelo Decreto 433, que são as formas onerosas de obtenção de terras e tem outras formas de obtenção de terras que foram anunciadas no Terra da Gente pelo Governo Lula, que é a adjudicação, obtenção das terras por meio do pagamento dos grandes devedores da União.”

Porém, ela enfatiza que esse processo de adjudicação terras de grandes devedores também é demorado e burocrático por conta do grande poder econômico e das dificuldades judiciais, pois em muitos casos esses devedores são justamente latifundiários e do agronegócio.

“Hoje os grandes devedores da União, no estado de São Paulo, por exemplo, são grandes latifundiários. E que se você for tentar obter essa terra por meio da adjudicação, vai ter recursos para impedir o processo de adjudicação. E isso leva, às vezes, de dez a 12 anos para o Incra, até a emissão de posse. Essa é uma grande dificuldade também pra avançar na obtenção de terras hoje no Brasil”, conclui Sabrina.

*Com informação de Agatha Azevedo, de Minas Gerais, Camila Maria Alves, de Goiás e Fernanda Alcântara, de São Paulo.

**Essa é segunda parte da reportagem sobre a situação das políticas públicas do governo Lula para as áreas de Reforma Agrária. Fique de olho no Site e redes sociais do MST e acompanhe os próximos conteúdos sobre o tema!