Direitos humanos tornam-se arma contra violência no campo
Direitos humanos tornam-se arma contra violência no campo
15/12/2004
Por Patricia Bonilha
Fonte Agência Carta Maior
“A terra é o núcleo articulador de vários direitos fundamentais. Precisamos da terra para comer, morar, trabalhar e produzir, para estabelecermos as nossas comunidades; precisamos da terra para exercer a nossa cidadania”. Com estas palavras, Sofia Monsalve, responsável pela Campanha de Reforma Agrária da FIAN (Food First Information and Action Network), resume a importância da incorporação de questões como soberania alimentar, desenvolvimento sustentável, dignidade do trabalhador rural, enfim, pelo cumprimento dos direitos humanos (declarados ha 56 anos, mas ainda não respeitados pela maioria dos países) na luta pela reforma agrária. Todos estes aspectos foram mais do que nunca inter-relacionados no que foi definido como o novo modelo da reforma agrária para o século 21 no FMRA (Fórum Mundial da Reforma Agrária), evento que aconteceu na semana passada em Valencia, na Espanha.
De acordo com Darlene Braga Martins, representante da CPT (Comissão Pastoral da Terra), o caso do Brasil é exemplar em relação ao aumento da violência sofrida pelos trabalhadores rurais internacionalmente. “Em comparação a 2002, no ano passado houve um crescimento de 263% de atos violentos praticados na zona rural. Como resultado, mais de um milhão de trabalhadores foram atingidos de alguma forma”, afirma ela.
Representantes de inúmeros paises, como Colômbia, Filipinas, Guatemala, Nepal e Moçambique, entre outros, apresentaram relatórios com dados preocupantes da violência sofrida tanto pelos pequenos agricultores como por aqueles que lutam pela conquista da terra. “O mais interessante é observar que as áreas em que o número de assassinatos aumentou coincidem com as áreas onde o agronegócio esta crescendo”, observa Darlene.
Reação
Na raiz da violência, afirmam agricultores e pesquisadores, estão as políticas do Banco Mundial, Organização Mundial do Comercio e da maioria dos governos. “É realmente estarrecedor como esta violência institucional, que vai além da repressão, dos assassinatos, dos genocídios indígenas, pode ser diagnosticada hoje em dia em todo o mundo. O trabalhador rural é massacrado tanto física como estruturalmente, em todo lugar. Por outro lado, você tem a formação de uma aliança em nível internacional que vem como reação a esse fenômeno mundial e que, além de fortalecer a luta pela reforma agrária, elevando o direito ao acesso a terra à condição de direito da humanidade, amplia o debate e traz consigo a necessidade de acabar com a fome, de garantir os acessos aos recursos naturais, de reconhecer a mulher camponesa como produtora na economia agrária e da produção de alimentos saudáveis para todos”, afirma Sofia Monsalve.
Na avaliação de varias organizações presentes no FMRA, globalização da economia, dos modos de produção e do pensamento causou um inesperado resultado positivo que e justamente essa globalização da luta e dos seus modos de atuação.
Segundo a indiana Shalmali Guttal, pesquisadora da Focus on the Global South, maior entidade de luta por desenvolvimento sustentável e direitos humanos da Ásia, “existe agora uma percepção muito mais forte e melhor fundamentada a nível internacional de que a reforma agrária e um instrumento essencial para atingir as mudanças necessárias na vida dos trabalhadores rurais em todo o mundo. Somente com o fim da concentração de terras e possível acabar com a fome no mundo”.
Baseando-se em uma recente divulgação feita pela FAO, órgão das Nações Unidas para alimentação e agricultura, Shalmali aponta a incoerência do atual sistema de produção e distribuição de alimentos. “A quantidade de comida produzida hoje e suficiente para alimentar a população de todo o planeta, no entanto ha atualmente 840 milhões de pessoas passando fome, sendo que 80% dos famintos moram na zona rural, onde a comida e produzida”, conclui.
Em sua avaliação, Lies Craeynest, representante da War on Want, ONG que trabalha com alguns dos movimentos rurais representados no FMRA, ressalta que, apesar do direito de comer ser um direito humano, a fome vem crescendo na Ásia, África e América Latina devido as políticas de livre comercio, tanto nacionais como internacionais. Segundo ela, a intensa troca de informações e experiências proporcionada pelo FMRA tem sido crucial para a formação desta rede mundial de atuação conjunta e para aumentar a solidariedade. “Agricultores testemunharam que o acesso da população a água tem sido reduzido para que companhias a engarrafem e a vendam. Sementes tem sido monopolizadas por grupos agroquímicos. Muitos trabalhadores rurais são retirados de suas terras para a efetivação de mega-projetos de agronegócio. Ha uma clara similaridade entre a realidade deles”, avalia Lies.
Solidariedade
Com o objetivo de fazer com que a sociedade urbana tenha mais informações sobre essa realidade enfrentada pelos pequenos agricultores, especialmente no que se refere as diferentes formas de violência sofridas no campo, os movimentos sociais pretendem lançar uma campanha em nível internacional contra a violência.
Uma das principais causas apontadas pela falta de solidariedade do cidadão urbano ao trabalhador rural e a alienação do consumidor, que não consegue perceber a estreita relação que existe entre o alimento que ele consome e o produtor. “E um fenômeno muito estranho. Nas cidades, quem consome não se identifica de forma alguma com a pessoa que preparou a terra, plantou a semente, acompanhou o crescimento, e colheu o alimento que esta ali na mesa. Para muitas crianças, quem produz o leite é o supermercado, e não a vaca”, esclarece Shalmali, garantindo que mesmo os adultos não se sentem de forma alguma dependentes da produção do homem rural. Segundo ela, essa alienação faz com que o cidadão urbano não tenha nenhum senso de responsabilidade coletiva ou solidária com o homem do campo.