A Via Campesina e a lição de Curitiba
Fonte Comissão Pastoral da Terra
O mês de março deste ano de 2006 entrou para a história da luta camponesa mundial. As mobilizações começaram em Porto Alegre, durante a conferência da FAO sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural, pelas mãos corajosas (todo ato de coragem envolve alguma controvérsia!) das mulheres que ocuparam o viveiro de mudas de eucalipto da empresa Aracruz Celulose e seguiram em Curitiba desde o dia 13, com o encontro Nacional do MAB e as atividades em torno dos eventos de biosegurança e biodiversidade (MOP3 e COP8) realizados pela ONU na capital paranaense.
Na pauta dos movimentos sociais ligados à Via Campesina estavam a denúncia dos crimes ambientais e sociais que vem sendo praticados pelas empresas multinacionais do agronegócio e o anúncio da viabilidade e urgência de um outro modelo de agricultura, baseado na democratização da terra e das águas, num novo modelo energético, na produção agroecológica, na comercialização solidária, nos direitos dos consumidores e no respeito ao meio-ambiente.
Se em termos oficiais os eventos da ONU em Curitiba ficaram bem aquém do possível em termos de avanços na legislação de biosegurança e proteção à biodiversidade (resultados que alguns chegam a chamar de “decepcionantes”), em muitos sentidos porque os países membros se renderam às pressões e aos interesses comerciais de empresas como a Monsanto, a Syngenta, a Bunge, a Cargil, entre outras, mais do que aos interesses sociais e ambientais, em termos da luta popular houve avanços significativos.
O primeiro deles diz respeito à visibilidade: o ato na Aracruz foi a alavanca para uma cobertura importante da impresa para a participação da Via Campesina, enquanto organização internacional de movimentos sociais. A novidade está no fato de que esses movimentos conseguiram se apresentar com bandeiras unificadas, rompendo o tradicional isolamento e fragmentação, que dão margem às caricaturas e preconceitos com os quais a imprensa costuma rotular a luta dos camponeses, aqui e em todo o mundo.
Além disso, essa unificação estratégica dos movimentos colocou definitivamente na pauta da luta social o tema da biosegurança e da biodiversidade a partir do enforque internacional que estas causas exigem. Ao apresentar-se publicamente contra os transgênicos e as empresas de biotecnologia a Via Campesina consolidou sua luta contra o modelo de agricultura que toma conta do mundo neste momento, baseada no esgotamento dos recursos naturais e na expulsão em massa das pequenas comunidades que ainda tentam viver no campo, entre elas os indígenas, negros, quilombolas, faxinalenses, ribeirinhos, quebradeiras de coco, moradores de fundos de pasto e tantos outros. Sendo assim, a Via Campesina chamou para si publicamente a responsabilidade de guardiã das sementes e da biodiversidade, já que o modelo de agricultura defendido pelos movimentos sociais está baseado na distribuição uniforme da terra e na diversidade de produção. Ora, só há diversidade de vida se houver diversidade de cultura. E para isso é preciso garantir a reprodução do modo de vida camponês para que a terra também sobreviva. Se o modelo monocultor do agronegócio destrói e polui, o modelo camponês guarda, cuida e reproduz.
As resoluções que mantiveram a moratória para pesquisas, plantio e comercialização de sementes que usam a tecnologia conhecida como terminator (as sementes estéreis e suicidas desenvolvidas desde 1998) podem ser consideradas um avanço no sentido de garantir as práticas comunitárias as quais envolvem o cultivo e a troca de sementes entre os agricultores e agricultoras em várias regiões do Brasil e do mundo, em experiências que tendem a se consolidar ainda mais como espaços de resistência.
A ocupação do campo experimental da empresa multinacional de sementes Syngenta Seeds, em Santa Teresa do Oeste (536 km de Curitiba), na manhã do dia 14.03, foi um ato explícito desta luta, que exige mais vigilância da parte dos governos sobre os experimentos ilegais com transgênicos. No caso da Syngenta, o Ibama embargou 12 hectares de plantio de soja transgênica por eles estarem localizados na “zona de amortecimento” do Parque Nacional do Iguaçu: a área de pesquisa localizava-se a 6 km do parque, sendo que a lei prevê uma distância mínima de 10 km. A Syngenta é um símbolo da luta contra as empresas de biotecnologia que agem como se estivessem acima da lei, burlando os interesses de toda a sociedade: a empresa é uma das líderes em pesquisas de cultivos e sementes em todo o mundo, empregando cerca de 20 mil pessoas em mais de 90 países, com lucros exorbitantes que a levam ao todo das lista das empresas que atuam hoje na agricultura. A empresa foi multada pelo IBAMA em 1 milhão de reais, num ato louvável do superintendente do Paraná, o advogado ligado à RENAP, Marino Gonçalves.
Simbolicamente, os eventos de Curitiba foram antecedidos pelo encontro do MAB. Ficou claro, assim, que a luta da água não só é parte, como é a base da luta maior pela biodiversidade. Água é vida e se ela for ameaçada, poluída e privatizada, a vida estará em risco. O que a Via Campesina disse em Curitiba pela boca do MAB é que a água é um bem precioso não porque tenha valor econômico, mas porque tem valor biológico essencial para a vida. A destruição das águas compromete a biodiversidade, provocando um desastre ambiental e social sem precedentes. Além disso, a expulsão das comunidades tradicionais que têm sido historicamente guardiãs das águas e da biodiversidade e a sua substituição pelas empresas capitalistas, representa um grande perigo para toda a humanidade. A Via Campesina luta por políticas de conservação e preservação dos rios e lagos e das águas do subsolo e ao mesmo tempo, de apoio às comunidades para que manejem de forma sustentável a água, a terra e a biodiversidade.
Poderíamos afirmar que a presença da Via Campesina foi fundamental para que os participantes das Conferências da ONU sentissem a preocupação da sociedade e dos camponeses, de maneira especial, com os temas em questão. Internamente, a participação dos movimentos sociais do Paraná intensificou a posição do Estado como área livre de transgênicos e como a primeira unidade da federação a regulamentar a lei de rotulagem dos organismos geneticamente modificados. Esta postura do Estado do Paraná em muito se apóia na pressão e nas posição da Via Campesina, desafio que ainda persiste na esfera do governo federal.
O processo das lutas, que chegou a envolver cerca de 5 mil pessoas nesta última semana, foi também e sobretudo um processo de aprendizagem. Foram inúmeras as palestras e debates realizados, possibilitando aos participantes a compreensão ampla do problema da biodiversidade e dos mecanismos de luta necessários para o enfrentamento desta situação. Certamente a luta dos movimentos sociais deverá refletir, nos próximos meses, a força e a animação experimentadas em Curitiba.
Além disso, depois deste março, muitos desafios se apresentam para a Via Campesina, principalmente no que diz respeito à sua consolidação enquanto articulação de movimentos do campo que lutam em conjunto por causas comuns sem perder a especificidade de cada organização. Outro desafio diz respeito ao aprofundamento da compreensão sobre o campesinato, levando em conta a conjuntura que o liga a toda a reflexão da biodiversidade e da biosegurança, numa perspectiva inter-continental que englobe a riqueza e a diversidade das comunidades tradicionais, dos indígenas, negros e todos os demais grupos que vivem no campo. Sobre este camponês é preciso perguntar: o que quer, como se organiza, como resiste e de que forma se relaciona entre si e com a natureza no seu jeito próprio de trabalhar e produzir.
A aliança camponesa, tal como foi vivenciada nesses dias, prepara para o enfrentamento do modelo de sociedade no seu conjunto, não apenas para política reivindicatórias de cunho assistencialista e/ou demasiadamente locais e pontuais. Sendo assim, outro desafio parece ser a articulação da Via Campesina com os movimentos urbanos, além das organizações ambientais e indígenas, que somam na defesa da terra como espaço de vida e não de negócio, reafirmando um projeto de soberania de cada população, no qual a biodiversidade é garantida como patrimônio do povo a serviço da humanidade. Neste sentido, faz-se urgente a ampliação da campanha das sementes como patrimônio dos povos, lançada e defendida pela Via Campesina, sem que seja necessário certifica-las ou privatiza-las, já que devem transitar livremente pelas mãos e práticas dos trabalhadores/as.
Formar agentes e trabalhadores/as é uma premissa fundamental neste processo, para que a ação dos movimentos sociais não seja apenas ornamental ou acessória nos processos de decisão como os da ONU, mas se efetive a partir de proposições e estratégias concretas. Para isso, o fortalecimento do trabalho de base e a afirmação da mística e da espiritualidade apresentam-se como fatores indispensáveis de articulação e celebração da unidade camponesa.
Enfim, a lição de Curitiba ensina que a luta é global e só globalmente a esperança faz sentido.