A luta pelos Direitos Humanos é essencial à construção da democracia
* Discurso do Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos na solenidade de abertura da X Conferência Nacional de Direitos Humanos, 31/05/2006 – Auditório Nereu Ramos, Câmara dos Deputados, Brasília-DF
Chegamos à décima edição da Conferência Nacional de Direitos Humanos com a certeza de que valeu a pena nossa luta e com consciência de temos ainda muito a caminhar. Nesses últimos onze anos avançamos muito em nossa capacidade de organização. A Comissão de Direitos Humanos e Minorias, da Câmara dos Deputados, é um órgão respeitado e ativo, antes era uma subcomissão subordinada à temática do consumidor, hoje mostra quão importante é o tema dos direitos humanos para a construção da democracia brasileira. A Câmara dos Deputados, nesse período, criou a Comissão de Legislação Participativa, para reforçar os vínculos com a sociedade e facilitar o acesso da população ao processo legislativo. Mais recentemente tivemos outra vitória institucional e política importante: o Senado Federal criou a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, por meio da qual o Senador Cristovam Buarque está levando ao Senado as temáticas dos direitos humanos. Nesses anos de luta o Ministério Público Federal se abriu às organizações da sociedade civil e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão passou a ser nossa companheira importante na luta pelos direitos humanos. No Poder Executivo a institucionalidade dos direitos humanos também avançou e esperamos que continue a se afirmar, pois não há como construir um país democrático sem o respeito e a proteção aos direitos humanos. Na sociedade civil também avança a luta, a organização e a consciência dos direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Nos últimos anos, a maioria das organizações da sociedade civil criadas têm como seu principal eixo de ação a luta pela implantação, execução e monitoramento de políticas de respeito aos direitos humanos. A sociedade civil está mais organizada e, mesmo com todas as dificuldades, está avançando. Nosso papel é empurrar os governos e instituições para frente, por isso somos críticos e impertinentes. Se não o fôssemos, estaríamos deixando de cumprir o nosso papel político e civilizatório.
Fazíamos nossas conferências nacionais todos os anos. Na nona conferência o plenário decidiu que esta instância deliberativa se reunirá de dois em dois anos. Essa proposição, que recebeu o apoio quase unânime da assembléia final, foi posta com o objetivo de se construir uma institucionalidade das conferências, incluíndo-a na lei de criação do Conselho Nacional de Direitos Humanos e passando a Conferência Nacional a ser ponto principal de deliberação do Sistema Nacional de Direitos Humanos. Organizada de dois em dois anos, teremos condições de fazer conferências municipais, conferências estaduais, eleger delegados e delegadas e ter representação democrática de todos os seguimentos sociais e de defensores e defensoras de direitos humanos e debater, com tempo suficiente, nossas resoluções e proposições.
Não conseguimos, porém, nesta primeira edição bianual realizar o que desejara o plenário final da IX Conferência Nacional de Direitos Humanos. O Poder Executivo federal esteve nesse período impermeável ao debate com as entidades da sociedade civil e a organização da X Conferência acabou não sendo levada a termo como desejávamos. Só recentemente, com a nomeação de novo ministro para a Secretaria Especial de Direitos Humanos, retomamos os debates, com a expectativa de que, depois desta Conferência, possamos verdadeiramente avançar tanto na formulação de uma agenda política nacional para os direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais, assim como na sua institucionalização a partir de princípios democráticos e de valorização da cidadania. A lei de criação do Conselho Nacional de Direitos Humanos não foi tratada com a devida importância pela base do governo e por suas lideranças – e ninguém aqui poderia esperar que a oposição de direita fizesse a defesa de novas políticas de direitos humanos – e acabou tomando um rumo insuficiente, é uma proposição fraca, não reflete o estado dos acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, não propõe ser representativa da luta pelos direitos humanos, nem abarca a responsabilidade pela convocação e organização das conferências nacionais de direitos humanos.
Enquanto não conquistamos uma lei adequada e a devida institucionalização de nossas instâncias deliberativas, continuamos nossa caminhada. Entre as conferências nacionais, realizaremos também de dois em dois anos Encontros Nacionais de Direitos Humanos. Proposta nesse sentido, feita pelo deputado Orlando Fantazzini, foi acatada pelo Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos e pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. No ano passado fizemos nosso primeiro Encontro Nacional. Debatemos temas relacionados ao direito humano à comunicação. Foi um sucesso, o tema da comunicação como direito, direito humano à manifestar, a existir com sua expressão cultural e política, ao acesso aos meios e à construção de conteúdos, são questões que hoje começam a estar presentes na agenda dos movimentos e entidades de direitos humanos. Avaliando o Encontro Nacional de 2005 vemos que idéia de termos uma instância mais voltada à reflexão de novas temáticas, de temas que precisam ser melhor analisados e debatidos por todos os segmentos e áreas da militância de direitos humanos mostrou-se acertada.
Realizamos esta X Conferência Nacional ainda sob a emoção da barbárie que envolveu o crime organizado e o sistema policial do Estado de São Paulo entre os dias 12 e 20 deste mês de maio. Nesse período foram encaminhados ao Instituto Médico Legal os corpos de 132 pessoas mortas por arma de fogo, algumas atingidas por mais de vinte tiros!
A violência de São Paulo, que amedrontou milhões de seus habitantes, paralisou a maior cidade do país e ameaçou parar todo o estado de São Paulo, mostrou, de forma inequívoca que a questão da segurança pública no Brasil é um elemento chave da construção da cidadania e interfere diretamente na consolidação da democracia brasileira.
Neste contexto reaparecem as respostas fáceis, que conquistam rapidamente as mentes entorpecidas pelas ideologias políticas dominantes, que pregam mais e mais violência como forma de eliminação física dos pobres, homossexuais e excluídos e vêem na implantação do terror do Estado, por meio da polícia violenta, das prisões infectas e dos esquadrões da morte a maneira de preservar a propriedade de uns poucos. Pedem a pena de morte, mas esquecem que ela já existe, na prática, no Brasil. Milhares de jovens, notadamente os negros, são mortos todos os anos por ações violentas da polícia, mortes seletivas, dirigidas à eliminação de um segmento da população.
Mas os policiais não ficam livres da brutalidade, também são vítimas do mesmo modelo violento e da lógica do extermínio e do genocídio. Quanto mais violenta e letal é a política de segurança, mais brutal é a reação dos criminosos. Círculo vicioso que não se rompe com mais violência. É necessário mudar a lógica reinante. O encarceramento não é solução, mas o Judiciário brasileiro parece que só crê nesse método, incha penitenciárias e as transforma em locais de tortura permanente, infectas e desumanas, criam o ambiente ideal para a proliferação do crime, do ódio e do rancor que se organizam em facções e “partidos” e ameaçam a sociedade.
Sabemos que as causas da violência são várias, têm laços com a escravidão, que dominou a política e a economia brasileiras por séculos, são produto e fermento dos modelos políticos excludentes, clientelistas, patrimonialistas e antidemocráticos que dominam a história do Brasil, têm relação direta com a opção por não dar à educação a prioridade necessária e estão relacionadas, de modo especial, aos modelos de desenvolvimento econômico implementados no Brasil nas últimas décadas. Crescimento econômico baseado na exclusão, na migração em massa de mão-de-obra desqualificada, na preservação de um mercado de trabalho desumano, na manutenção de um desemprego alto que pressiona os salários para baixo e mantêm as reivindicações dos trabalhadores sob controle. Crescimento econômico que mantém o Brasil como o país mais desigual do mundo. Modelo econômico que privilegia o agronegócio, que explusa gente do campo e engorda somente as multinacionais e ameaça definitivamente a biodiversidade brasileira. Modelo econômico tido pelos últimos governos como a única alternativa ao Brasil!
A prevalência das prioridades econômicas direcionadas especialmente ao pagamento de dívidas e à manutenção de elevadas taxas de lucros dos bancos e das empresas transnacionais, em detrimento de políticas sociais emancipatórias, reforça um modelo econômico concentrador e excludente que atenta contra os direitos humanos.
A opção neoliberal deste governo, seguindo a mesma política de seu antecessor, retira recursos essenciais de políticas públicas que poderíam ser voltadas aos pequenos, aos pobres, às mulheres, às crianças, aos idosos e os destina a outros fins. Mas não é só isso. A lógica que privilegia o lucro alcança todas as demais. Na educação, em vez de uma reforma educacional que valorize a escola pública e laica, o governo prefere uma ação que salva os empresários do ensino superior da crise de super-oferta de vagas. O dinheiro público salva empresários que usam a oferta de um ensino de péssima qualidade como meio de enriquecimento.
O assistencialismo substitui políticas emancipatórias; a reforma agrária se arrasta devagar e sem rumo, o meio ambiente é relegado a segundo plano, em seu lugar está o interesse da transgenia, das multinacionais do agronegócio; a demarcação de terras indígens pára, estanca, a violência contra indígenas cresce e agentes públicos começam a falar que eles têm terra demais! A Constituição, que defende os povos indígenas, é rasgada todos os dias. Há, em vários estados, ações genocidas claras e sistemáticas contra povos indígenas. Populações inteiras são ameaçadas por barragens e políticas hídricas que têm no cálculo do lucro imediato e fácil sua única equação respeitada pelas autoridades federais. Recursos para a infância decrescem e o Estatuto da Criança e do Adolescente não é implantado.
A Controladoria Geral da União anunciou, dias atrás, que de cada quatro prefeituras deste país, três estão envolvidas em situações graves de desvio de recursos públicos. A corrupção atinge todos os Poderes da República e deixa de ser exceção. Seu combate é fundamental, é uma questão ética primordial, mas também é condição para que o Estado se transforme em instrumento de proteção e garantia dos direitos humanos. Não se pode mais permitir que recursos da merenda escolar, da saúde pública, da educação infantil sejam desviados para enriquecer pessoas e empresas, mantendo na miséria milhões de brasileiros e brasileiras, na miséria material e na miséria política.
Os que defendemos os direitos humanos somos ameaçados e ameaçadas por ideologias e crenças fundamentalistas, autoritárias e retrógadas, que pregam a violência e o extermínio. Não só isso. As autoridades do Executivo, especialmente dos executivos estaduais, e do Judiciário preferem continuar a criminalizar os movimentos sociais e os defensores e as defensoras de direitos humanos. No Brasil ainda se manda prender ativistas políticos porque se os acusa de planejar alguma mobilização no futuro. Ativistas que são presos e presas injustamente são mantidos e mantidas em cárcere até que o moroso judiciário não encontra mais meios de manter essas pessoas detidas.
No Brasil, o Judiciário foi construído e se mantém sob a lógica da proteção da classe dominante e de seu patrimônio. Ricos, abastados e poderosos são protegidos. A classe média se beneficia das migalhas dessa lógica, especialmente quando é branca. Pobres, negros, negras, são tratados de forma discriminada, racista e excludente. Seus processos são julgados com rapidez, condenados sem dúvida e jogados em calabouços. O racismo, a homofobia e o espírito de classe impera no Judiciário, mas se teima em dizer que no Brasil não há racismo, é só uma coincidência estatística que negros e negras pobres sejam a quase totalidade dos encarcerados.
Os defensores e as defensoras de direitos humanos, apesar do anunciado Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, continuam submetidos a grande vulnerabilidade, mais ainda agora com os acontecimentos de violência de São Paulo, onde se reafirmou que defensor e defensora de direitos humanos é só “defensor de bandido”.
Há solução para isso? Há sim. E nós, defensores e defensoras de direitos humanos, participantes e ativistas e militantes de entidades da sociedade civil e de movimentos sociais que defendemos a justiça, a democracia e o desenvolvimento com igualdade, somos os primeiros e as primeiras a dizer que há outro mudo possível, que há outros caminhos possíveis e os necessários; que o mundo precisa de outro Brasil.
Nosso encontro de 2005 e as nove Conferências que precederam a esta estão cheios de proposições que podem ajudar a encontrar outros caminhos possíveis e necessários. Nesta Conferência outras propostas aparecerão, algumas antigas serão reforçadas. Sabemos que há alternativas ao modelo econômico neoliberal. Sabemos também que é necessário existir uma política firme de direitos humanos, que respeite as pessoas, a Constituição, os acordos e protocolos internacionais, e que se estabeleça de forma participativa e de impacto efetivo sobre a qualidade de vida dos cidadãos e cidadãs, especialmente aqueles e aqueles hoje vulneráveis.
Nos próximos dois dias vamos aprofundar o diagnóstico e refletir sobre alternativas. Nossa luta é por direitos humanos, viemos aqui para lutar, não nos intimidamos diante da violência, da injustiça, da prepotência, da arrogância do poder, do crime organizado e do terrorismo de Estado, não nos detemos diante dos fundamentalismos, religiosos, políticos ou econômicos, queremos avançar, vamos avançar. Além disso, somos pessoas otimistas, acreditamos na capacidade de renovação e criação. Apesar da frustração e do sentimento de ter perdido três anos de caminhada com uma Secretaria de Direitos Humanos que não correspondeu às expectativas da sociedade, esperamos que neste momento ela possa assumir o seu papel de articuladora e coordenadora de políticas transversais de defesa e garantia dos direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Quem defende e luta pelos direitos humanos pode ter certeza: aqui estão defensores e defensoras que querem avançar, construir, produzir um mundo novo, justo, solidário e humano.