José Martí
Salvador Arias*
Há pouco mais de cem anos, em Nova lorque, um homem de estatura pequena, mas de vontade férrea, finalizava os planos para conquistar a independência de sua ilha natal, Cuba, do domínio colonial que a Espanha exercia sobre ela há quatro séculos. José Martí era filho de espanhóis e culturalmente se torna grande expoente de valorosa tradição milenar, da qual vislumbra o futuro inquestionável: a América era terra de grandes potencialidades humanas e materiais, que esperavam por sua incorporação plena à vanguarda do progresso humano.
Precisamente o que ele chamava de “o fiel da América” – geográfico e político – as ilhas antilhenses de Cuba e Porto Rico constituíam, no final do século 19, os últimos territórios coloniais do que havia sido o vasto império espanhol na América. O passo prévio e imediato era conseguir a liberdade das ilhas para garantir o equilíbrio continental. Nos Estados Unidos, num esforço grandioso contra incompreensões políticas e humanas, Martí resgata as melhores tentativas anteriores e organiza uma revolução que não só cumprirá com seus propósitos imediatos de independência, mas que se projeta radicalmente no futuro mundial. Apenas há quatro meses de haver recomeçado a luta armada em Cuba, Martí se incorpora ativamente a ela, para morrer numa pequena batalha, em 19 de maio de 1895.
Um escritor surpreendente
A vida militante de Martí, de entrega total a uma causa, numa luta obstinada contra obstáculos externos quase insuperáveis e de profundas rupturas pessoais, em sua busca de verdade e ternura, nos proporciona uma conduta exemplar, na prática desse heroísmo cotidiano que, às vezes, vai sendo esquecido com o passar do tempo. Entretanto, a transcendência deste herói fica patente no que foi, talvez, sua mais natural necessidade: fundamentalmente estamos diante de um escritor, um homem que precisava expressar-se continuamente através da língua – escrita e falada – e que como tal resultou em um dos mais vibrantes e perduráveis cultivadores do idioma em toda a sua história.
Martí precisava se comunicar e se expressar, seja na urgência cotidiana e funcional da carta, no diário íntimo, no discurso, no artigo informativo ou no vôo, aparentemente mais alto, do ensaio. Soube fazer versos ternos e delicados no Ismaelillo, dedicado, em 1882, a seu pequeno filho; ásperos e sombrios nos que chama Versos Livres e profundamente cristalinos, os que publicou corno Versos Simples, em 1891. Porém, uma de suas qualidades mais surpreendentes é a permanente qualidade e grandeza de intenções com que se manifesta em todos seus escritos, não importa a presumida humildade de suas funções. E não é que não saiba adaptar-se ao meio utilizado, pois pôde aproximar-se do universo das crianças em sua inigualável publicação A Idade do Ouro, soube inflamar humildes fabricantes de tabaco com seus discursos patrióticos, foi capaz de convencer ao descrente com sua clareza expositiva epistolar. Adaptado ao meio e à função, o segredo em Martí é sua integridade, pois sempre permanece fiel a si mesmo e até no mais sublime fragmento que produziu, pode se reconhecer o escritor original e inigualável.
Um contemporâneo
Vivendo no final de um século de grandes transformações, estando durante os últimos quinze anos de sua vida numa Nova Iorque convertida em centro do mundo moderno, Martí soube ir mais além das contingências cotidianas para penetrar nos problemas que já germinavam esse século 20 e que ele não pôde conhecer. Por isso, em sua abundante obra escrita – reunida em não menos de 25 volumes – surpreende, mais que o testemunho de sua época, a antecipação de uma problemática que ainda é a nossa.
Do desenvolvimento da ciência e da técnica e sua incidência em todas os aspectos da vida, Martí tira conclusões que o levam a delinear panoramas econômicos e políticos que ainda hoje surpreendem por sua sagacidade, como pretende ser a busca de vias libertadoras das injustiças da modernidade industrial. Entretanto Martí preocupa-se, sobretudo, pelo desenvolvimento ético do homem, e nesse sentido, nos tem legado armas que constituem um instrumento inestimável para nosso atual desempenho.
*Salvador Arias é pequisador do Centro de Estudos Martianos Havana – Cuba. Extraído do livro José Martí, vida e obra
Eu sou um homem sincero
Por José Martí
Eu sou um homem sincero
De onde cresce a palmeira,
E antes de morrer eu quero
Tirar meus versos da alma.
Eu venho de toda partes,
e a todas partes vou:
arte sou entre as artes,
Nos montes, monte sou.
Eu conheço nomes raros
Das ervas e das flores,
E de mortais enganos
E de sublimes dores.
Eu vi na noite escura
Chover sobre minha cabeça
Os raios de lume puro
Da divina beleza.
Asas vi nascer em meus ombros
Das mulheres formosas:
E sair dos escombros,
Voando as mariposas.
Vi viver um homem
Com o punhal no costado,
Sem dizer jamais o nome
Daquela que o havia matado.
Rápida, como um reflexo,
Duas vezes vi a alma, duas:
Quando morreu o pobre velho,
Quando ela me disse adeus.
Eu vi a águia ferida
Voar ao azul sereno,
E morrer em sua guarida
A serpente do veneno.
Oculto no meu peito bravo
A mágoa que o fere:
O filho de um povo escravo
Vive por ele, cala e morre.
Tudo é formoso e constante,
Tudo é música e razão,
E tudo, como o diamante,
Antes que luz é carvão