Os últimos anos de paciência

Por Luis Fernando Veríssimo
Fonte Agência Carta Maior

Sempre que penso num arqueólogo abrindo uma dessas caixas em que se põem documentos, jornais, objetos e curiosidades da nossa época justamente para serem descobertas no futuro, imagino que ele pode ter duas reações: uma que nos condena e outra que nos elogia. Elogio é o hipotético arqueólogo sacudir e a cabeça e dizer “Bons tempos aqueles” porque o seu tempo será muito pior do que o nosso. O contrário é ele sacudir a cabeça e comentar o nosso atraso, e perguntar-se como conseguimos sobreviver e – mais espantoso ainda – como sua sociedade superior pode ter evoluído desta insensatez e deste caos. Ou ele nos invejará ou nos desprezará.

Alguns itens da caixa por certo o deixarão perplexo. Jornal, por exemplo. O que é isso? dirá ele. E dará boas risadas com os telefones celulares, resquícios de uma época em que as pessoas ainda não tinham transmissores e receptores implantados no crânio ao nascer.

E o Brasil? O que ele pensará do Brasil? Que interpretação do Brasil deveria ser incluída na caixa para ele entender o que ocorria no país naquele longínquo começo do século 21? Minha contribuição começaria com um episódio real, que aconteceu comigo. Nada demais, uma pequena cena do cotidiano que só serviu como mote para uma crônica que escrevi.

Eu caminhava por uma calçada e veio uma bola na minha direção. A bola tinha escapado do controle de um garoto que, de longe, gritou: “Devolve!” Não era um pedido, era uma ordem. A mãe do garoto ouviu e perguntou se aquilo era jeito de falar com alguém. O garoto então se corrigiu. Gritou “Adevolve!” Por alguma razão, achou que, colocando um “a” no início da palavra, o pedido ficava mais educado. Na crônica, eu dizia que, de certa maneira, a sociedade brasileira estava fazendo o contrário do garoto.

Todas as manifestações de inconformidade com a crise social brasileira, culminando com a eleição do Lula, tinham sido educados pedidos para que a minoria que nos domina adevolvesse o país à sua maioria excluída. E que não dava para imaginar como seria quando acabasse a boa educação, quando uma sociedade desesperada exigisse o fim da incompetência criminosa que lhe sonega saúde, segurança, educação e emprego há anos, para dar lucro a banco, garantia a especulador e boa vida a poucos. Quando “devolvam!” virasse um grito de guerra.

O Brasil sempre foi de uma minoria autoperpetuada, mas nunca, no passado, a maioria teve como agora uma noção tão nítida do seu banimento interno, do seu exílio sem sair do lugar. A eleição do Lula significou, entre outras coisas, isso. O neoliberalismo triunfante, além da revolução semântica que transformou insensibilidade social em virtude empresarial, tinha trazido uma espécie de redenção história para o nosso patriciado, que afinal só abolira a escravatura para imitar os outros e para não ser chamado de retrógrado.

Como ser retrógrado passou a ser moderno, nos oito anos de governo Fernando Henrique, a distância entre minoria e maioria aumentou. E como Lula, frustrando esperanças, continuou a política econômica do governo anterior, o que eu poderia dizer ao arqueólogo do futuro é que talvez estejamos vivendo no Brasil os últimos anos de paciência. Embora ninguém pareça ter o menor temor de que o que não adevolverem por bem terão que devolver por mal.