“A postura típica do PSDB é caracterizada pelo governo FHC: repressão”

Fonte IHU On-Line

Leia abaixo entrevista com Ivo Lesbaupin, sociólogo, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e membro do ISER (Instituto dos Estudos da Religião).

O que o Brasil ganha com a ida das eleições ao segundo turno de Lula e Geraldo Alckmin?

Ivo Lesbaupin – Ganha um pouco mais de democracia. A campanha presidencial até o primeiro turno não teve qualquer discussão de propostas, nenhum dos dois candidatos apresentou seu projeto de Brasil. Lula deveria dizer o que pretende fazer no segundo mandato e Alckmin deveria apresentar seu projeto alternativo. Não houve debate público de idéias, foi uma eleição despolitizada. Relembra a campanha eleitoral de 1998, morna, sem sal. O segundo turno obriga o presidente a ir aos debates, a se apresentar ao público, a se explicar. Até agora, numa postura anti-democrática, ele tinha se recusado a participar de debates. É preciso dizer que a mídia – tão exigente a respeito de certos casos – sempre achou normal o candidato mais bem colocado nas pesquisas faltar ao debate. Nas campanhas eleitorais de FHC, a mídia nunca cobrou sua ausência, achava-a justificada. Portanto, a meu ver, o segundo turno significa debate, politização da campanha. Os eleitores vão escolher o futuro presidente do Brasil, por mais quatro anos: o que podem esperar dele?

O senhor acredita que o PSDB realmente pode rachar com esta aliança com Garotinho?

Ivo Lesbaupin – Sinceramente, partidos como o PSDB, PFL, inclusive o PT atual, são capazes de qualquer coisa para chegar ao poder, manter-se no poder ou aumentar seu poder. Não há mais qualquer limitação ética nos seus cálculos. Eles só não utilizarão meios corruptos se isso for de seu interesse, não por qualquer convicção ideológica. Não estou me referindo aos militantes de cada partido, a alguns parlamentares e ocupantes de cargos executivos: há entre estes muitas pessoas sérias e comprometidas com o bem comum. Mas o partido, a maioria de sua direção, só tem um objetivo: o poder, a qualquer custo. Vejam-se as alianças que Lula está fazendo para conquistar o segundo mandato: Sarney, Jáder Barbalho, Romero Jucá, Newton Cardoso, Sérgio Cabral, Ney Suassuna. Você quer um mandato comprometido com a ética e com o fim da corrupção no Brasil? E o que dizer do Alckmin? Vai de Garotinho, no mínimo. Sem falar das privatizações, do caso Banestado, do SIVAM, etc.

Existe a possibilidade de surgir uma nova esquerda no país?

Ivo Lesbaupin – A esquerda não desapareceu: ela foi duramente atingida pelo governo Lula. O principal líder da esquerda, forjado ao longo de mais de vinte anos de lutas e de partido, ao chegar ao poder, bandeia-se para o outro lado com uma convicção de fazer inveja a qualquer líder de direita. (E provoca inveja real, de FHC). A esquerda ficou perplexa, perdeu um líder, o qual, imediatamente, acionou seus subordinados para submeter o principal partido de esquerda do país, o PT, a seus interesses de poder. O PT deixou de ser o partido anti-neoliberal, comprometido com os interesses dos trabalhadores, para se tornar o partido disposto a apoiar qualquer projeto neoliberal, desde que apresentado pelo governo Lula. O “new PT” expulsou os parlamentares que se mantinham coerentes ao programa do partido, a seus princípios, a seu projeto. Provocou uma grande confusão entre seus militantes, que não sabiam se deviam apoiar ou denunciar o governo e se dividiram. Outros setores de esquerda passaram a criticar fortemente o governo neoliberal de Lula.

As políticas melhores do governo Lula – política externa, ações da polícia federal, bolsa-família e outras – ajudaram a dificultar a análise. Para alguns setores da esquerda, a política econômica neoliberal passou a não ser tão importante, e estas outras políticas – todas secundárias em relação à política econômica – serviram para definir o governo Lula como um governo “de esquerda”. Quando estouraram as denúncias de corrupção, inclusive nos altos níveis do partido, muitos se distanciaram do PT. Mas a agressividade cada vez maior da direita e da mídia levou outros a reconsiderar: “se a direita está contra, só pode ser porque é de esquerda”. Neste momento, é esta a confusão que se está fazendo: dado o comportamento histérico da direita partidária (PSDB-PFL) para retomar o poder, muitos acham que é preciso defender o governo Lula como um governo “de esquerda”.

A direita partidária quer mesmo retomar o poder, mas isto não significa que o governo Lula seja de esquerda. Lembro de uma análise que foi feita em março de 2003 (três meses de governo) por Reinaldo Gonçalves, economista que era do PT: ele dizia que Lula estava fazendo as políticas da direita, as políticas neoliberais (reforma da previdência, etc.), que ia satisfazer a direita durante algum tempo e que, depois, a direita iria procurar de volta o poder – que havia deixado temporariamente -, como quem joga fora o bagaço da laranja, já totalmente sugada; e que, neste momento, Lula iria buscar novamente o apoio daqueles a quem havia abandonado; no entanto, para muitos, já seria tarde demais. Parece profético, não?

Concluindo: a esquerda está em boa parte desarticulada, mas já está se reconstituindo, se articulando, se reorganizando. E não necessariamente sob a forma de partido.

Como o senhor avalia a posição da Igreja Católica com relação à política nacional?

Ivo Lesbaupin – De modo geral, a Igreja católica manteve-se, ao longo do governo Lula, com uma posição crítica. Nas manifestações públicas, sempre cobrou do governo uma postura mais decidida frente à questão social, sempre explicitou sua decepção pelo abandono das posições originais do presidente eleito. A adesão ao neoliberalismo não agradou à maior parte das lideranças da Igreja que, há vários anos, vinha denunciando as conseqüências negativas da submissão ao capital financeiro. O documento preparado pela CNBB para as eleições – uma espécie de cartilha – é bastante contundente. Ele apresenta os elementos principais de um projeto de nação, onde está claramente dito que a política econômica precisa ser mudada: “rever o modelo econômico e o processo de mercantilização da vida”. Neste documento, é preciso chamar a atenção, discute-se um projeto de Brasil – o que os dois candidatos mais votados não discutiram até agora nesta campanha.

Cabe aqui uma referência à atuação lamentável de um setor minoritário de católicos com relação a uma candidata ao senado no Rio de Janeiro, no que se refere à questão do aborto.

Estes setores divulgaram panfletos onde chamavam a candidata de “assassina de crianças”, numa campanha caluniosa e ofensiva. Evidentemente, esta campanha contribuiu para retirar votos desta candidata e transferi-los para seu principal oponente. Temos de reconhecer que há setores da Igreja que não sabem lidar com o pluralismo de opiniões em nossa sociedade e que não respeitam a liberdade de expressão. Colocados diante de uma questão como esta, são capazes de fazer campanha para um candidato conservador, claramente identificado com as políticas neoliberais. Para estes setores, esta postura é mais adequada à defesa da vida, mesmo que tais políticas causem a morte – efetiva – de milhões de crianças no mundo. Para uma pessoa de bom senso, é difícil entender um raciocínio como este.

Qual sua opinião sobre os movimentos sociais e as candidaturas de PSDB e PT?

Ivo Lesbaupin – Este foi outro setor em que o governo Lula gerou enorme confusão: no meio dos movimentos sociais. Parte destes movimentos considerou que o governo Lula, apesar de suas políticas neoliberais, continuava comprometido com os trabalhadores; em função disso, manteve-se em sua defesa por todo o decorrer do mandato. Outra parte ficou algum tempo perplexa e desmobilizada, mas pouco a pouco passou a criticá-lo e a cobrar mudanças. É preciso dizer que o governo Lula tudo fez para manter os movimentos sociais do seu lado: mantendo sempre abertas as portas ao diálogo, não criminalizando suas manifestações e, no caso do movimento sindical, procurando cooptá-lo, das mais diversas formas. É evidente, por exemplo, a postura fraca da direção nacional da CUT desde o início do governo: ao invés de defender os interesses dos trabalhadores, defende sistematicamente o governo. Mas manter os movimentos do seu lado não significou atender a suas reivindicações: a reforma agrária, por exemplo, até hoje é um sonho ainda não realizado. A demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, demorou dois anos para ser homologada – e, mesmo assim, com modificações no texto original. O governo, na verdade, foi um grande despolitizador e desmobilizador dos movimentos sociais: ele não quer que haja debate, não quer que haja crítica, o que ele busca é submissão. Quanto ao PSDB, nunca buscou qualquer relação com os movimentos sociais. Sua postura típica é caracterizada pelo governo FHC: repressão.

Que futuro os partidos pequenos devem encontrar pela frente no país?

Ivo Lesbaupin – Há alguns anos atrás, organizei um seminário sobre política no Brasil. Um dos cientistas políticos presentes, Jairo Nicolau, do IUPERJ, defendia que a discussão sobre o número de partidos políticos é absolutamente inútil. Não é o parlamento que deve decidir quantos partidos devem existir: quem deve decidir é o cidadão, o eleitor. Pode haver mais de vinte partidos políticos, mas o eleitor decide que só sete serão grandes e fortes. Não cabe à lei determinar que só os atuais partidos grandes é que devem continuar grandes. Porque isto significa privilegiar os atuais partidos grandes. Ora, todo partido de oposição começa pequeno – é tipicamente o caso do PT: hoje, ele é grande, é a segunda maior bancada da Câmara, mas já foi a menor. Quem decidiu seu crescimento foi o eleitor. Isto é democrático, não a cláusula de barreira, que estabelece o privilégio de alguns em detrimento de outros e bloqueia o aparecimento de novos partidos. E, cá entre nós, quem disse que o melhor sistema partidário é o dos Estados Unidos?

O Brasil precisa de um “choque de gestão” ou a questão é política apenas?

Ivo Lesbaupin – Para retomar esta expressão, poderíamos dizer que o Brasil precisa, sim, de um “choque de vergonha”. A elite domina este país há quinhentos anos, a elite financeira domina há dezesseis anos e, por causa disso, nós temos a maior desigualdade social do mundo. Deixamos para trás a Índia, que hoje é menos desigual que nós. Temos recursos naturais incríveis, temos riquezas imensas, temos todas as condições para promover o desenvolvimento do nosso povo, promovendo o crescimento com geração de empregos e distribuição de renda e riqueza. Mas, até hoje, nenhum governo se dispôs a isso. Cada governo que chega ao poder se compromete com a elite e abandona a grande maioria do povo à própria sorte. É verdade que o governo Lula melhorou os programas sociais, ampliou muito a cobertura do Bolsa-Família e a própria bolsa. Mas isto são migalhas ao lado do que o mesmo governo Lula transfere, em termos de renda e riqueza, para a nossa elite, para o 1% mais rico do país. Para dar uma pequena idéia: em 2005, o governo gastou 7 bilhões de reais com o Bolsa-Família, atendendo a 8 milhões de famílias pobres; e gastou 157 bilhões de reais em juros das dívidas externa e interna, agraciando os banqueiros, os credores e 20 mil clãs de famílias muito ricas. Para quem este governo trabalha de fato?

O senhor acredita na política brasileira e no sistema partidário?

Ivo Lesbaupin – Só se houver uma profunda reforma política neste país. E não se trata de uma reforma meramente partidária e eleitoral, como pretendem os partidos majoritários. No Fórum Social Brasileiro, realizado em Recife, um conjunto de entidades e de movimentos sociais começou a discutir uma proposta de Reforma Política e esta discussão segue agora avançada, já tendo produzido um documento-síntese: ela inclui a adoção de mecanismos de democracia direta, com a regulamentação de plebiscitos e referendos, entre outros, de mecanismos de democracia participativa e de mecanismos de aperfeiçoamento da nossa democracia representativa. É preciso adotar o financiamento público das campanhas, se quisermos que nossos políticos deixem de estar a serviço dos grandes financiadores de suas campanhas (empresários e banqueiros). O sistema atual não é democrático: o povo vota no candidato para que ele defenda seus interesses, mas ele defende os interesses dos empresários e dos banqueiros que contribuíram para sua campanha eleitoral, não os interesses de seus eleitores. E o candidato, para se eleger, faz as alianças mais espúrias possíveis, sem base em programa e, sim, em concessões, que inviabilizam qualquer política de desenvolvimento do país, qualquer política a serviço da maioria do povo: estas alianças tornam o governo dependente dos seus aliados, aqueles que, de fato, vencem as eleições, não o povo que elegeu o candidato.