Mídia precisa ter controle público
A cobertura da grande mídia está longe de ser imparcial. Pelo contrário, tem como premissa divulgar assuntos que são apenas de seu interesse. Durante o 1° turno dessa eleição, ficou evidente que as empresas de comunicação tinham um lado e o favoreciam.
Para a jornalista Beatriz Barbosa, “vivemos uma situação em que a possibilidade de participar da esfera pública de debates é totalmente controlada por um número muito restrito de empresas, enquanto a imensa maioria da população tem seu direito à comunicação cerceado cotidianamente e é excluída dos espaços de decisão das políticas de comunicação”.
Diante desse quadro, como a população pode contestar a atuação dos meios de comunicação?
Leia abaixo a entrevista com Beatriz Barbosa, que é integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, sobre o tema.
Podemos considerar que a comunicação no Brasil é democrática?
Beatriz Barbosa: A comunicação no Brasil está longe de ser um espaço democrático. O país ainda não tem mecanismos claros que impeçam o monopólio dos meios e a concentração dos veículos nas mãos de um número muito pequeno de famílias. Atualmente, seis redes privadas nacionais de televisão aberta e seus 138 grupos regionais afiliados detêm a propriedade de 667 veículos de comunicação, entre emissoras de TV, rádios e jornais. Os dados são do estudo “Os Donos da Mídia”, realizado pelo Epcom – Instituto de Estudos e Pesquisa em Comunicação. A pesquisa mostrou que o campo de influência dessas redes privadas se capilariza por 294 emissoras de televisão VHF que abrangem mais de 90% das emissoras nacionais. Somam-se a elas mais 15 emissoras UHF, 122 emissoras de rádio AM, 184 emissoras FM e 50 jornais diários. Somente as Organizações Globo têm 32 concessões de TV e possuem 113 afiliadas no país. Com isso, conseguem 54% da audiência e da verba publicitária (R$ 1,59 bilhão em 2002) disponível para o mercado. Somadas, Globo e SBT controlam 75% da audiência nacional. O restante é dividido entre a Igreja Universal do Reino de Deus (21 concessões distribuídas entre as emissoras Record, Rede Mulher e Rede Família), TV Bandeirantes (12 concessões próprias e 57 afiliadas) e Rede TV! (43 concessões).
E, já que não há uma legislação que responsabilize o Estado brasileiro pelo fortalecimento e viabilização de veículos de pequena circulação e de caráter público e comunitário, as verbas publicitárias do governo federal continuam a ser distribuídas tendo como critério os índices de audiência ou circulação, o que reforça a concentração.
Outro problema é o processo de concessões de rádio e TV, que também não conta com regras democráticas. Um estudo feito pelo professor Venício Artur de Lima revelou que 10% dos deputados federais da última legislatura eram controladores de empresas de radiodifusão, algo proibido pela nossa Constituição. Em 2004, por exemplo, a Comissão da Câmara, que é o órgão responsável por examinar as outorgas, era composta por 33 deputados. Destes, 15 estavam na lista do Ministério das Comunicações como concessionários de 36 emissoras de rádio e três canais de televisão. O próprio Ministro das Comunicações é sócio de uma rádio FM em Minas Gerais.
Ou seja, vivemos uma situação em que a possibilidade de participar da esfera pública de debates é totalmente controlada por um número muito restrito de empresas, enquanto a imensa maioria da população tem seu direito à comunicação cerceado cotidianamente e é excluída dos espaços de decisão das políticas de comunicação. O exemplo mais recente foi o processo de escolha do padrão que será utilizado na implantação da TV Digital no Brasil. Sem ouvir a sociedade civil e atendendo ao lobby dos grandes grupos de comunicação, o governo escolheu o padrão japonês, ignorando a possibilidade de desenvolvimento de tecnologia nacional e a necessidade de democratização dos meios de comunicação.
Se todos têm direito à comunicação, como a população pode reivindicar esse direito?
Barbosa: Há várias formas de reivindicação, que vão do campo político ao jurídico. Nos últimos anos, por exemplo, algumas ações civis públicas conseguiram garantir direitos de resposta de comunidades que sentiram seus direitos violados pelos meios de comunicação. Foi o caso do programa Direitos de Resposta (www.direitosderesposta.com.br), que foi ao ar no final do ano passado, na Rede TV!, no horário do programa Tardes Quentes, do João Kléber, depois que seis ONGs e o Ministério Público Federal em São Paulo entraram com uma ação contra a emissora por violações de direitos humanos. O mais importante, no entanto, é a organização e mobilização da sociedade para uma reivindicação política deste direito. Reivindicação que deve ser feita, sobretudo, junto ao governo federal e ao Congresso Nacional, que é responsável pela regulação do setor. Esta, aliás, é uma das reivindicações mais urgentes que precisam ser colocadas em prática: uma nova regulamentação para as comunicações no Brasil. O marco regulatório em vigor hoje no Brasil, além de ultrapassado (é da década de 60, do período da ditadura militar), é totalmente anti-democrático, permitindo que essa situação de monopólio da mídia se perpetue.
Uma transformação deste cenário é essencial pra construção de uma sociedade mais democrática. Nos últimos 20 anos, os meios de comunicação se tornaram cada vez mais centrais para a realização dos debates públicos, para a produção de idéias e formação de valores, na definição daquilo que será discutido ou não pela população no seu cotidiano. O que não passa pelos meios de comunicação está fora, portanto, da agenda social. Por isso, garantir o direito de todos e todas de serem informados, de exercerem sua liberdade de expressão, de terem voz para participar do mundo midiático é essencial para a construção de um país mais democrático.
O caminho da luta pelo direito passa pelo controle público dos meios?
Barbosa: Certamente. O controle público dos meios seria uma maneira da população ser ouvida e participar do que é veiculado nos grandes veículos de comunicação. O caso recente da cobertura da mídia da campanha eleitoral é um bom exemplo. No final do primeiro turno, ficou claro como os jornais, revistas e a televisão ocuparam seus espaços de informação de uma maneira nada equilibrada, favorecendo indiretamente uma das candidaturas. De um lado, se explorava em detalhes dos fatos. De outro, se omitiam informações. E a população, por mais que se sinta prejudicada no seu direitos de receber uma informação plural, não tem à sua disposição mecanismos para impedir este processo. Não se trata de censura, de maneira alguma. Mas as empresas de comunicação – sobretudo o rádio e a TV, que são concessões públicas – prestam um serviço de interesse público. Portanto, a população deve ser ouvida e ter formas de mudar o resultado deste serviço se ele não estiver sendo prestado de forma democrática.
Em alguns países, há instâncias reguladoras capazes de receber as manifestações da sociedade, analisá-las e, se for o caso, cobrar das emissoras as modificações necessárias, com poder de sanção. Mas aqui ainda não conquistamos este espaço. A iniciativa mais difundida de controle social da mídia hoje é a campanha “Quem financia a baixaria é contra a cidadania”, que nasceu dentro da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados como uma resposta da sociedade à queda de qualidade da programação da televisão. A estratégia da campanha é responsabilizar as empresas patrocinadoras dos programas considerados ofensivos à dignidade humana denunciando-os como financiadores de ações contra a cidadania. Os resultados em termos do cancelamento de contratos de publicidade são positivos, mas o público em geral ainda trata com certa indiferença ações de controle social deste tipo. Ainda estamos longe, infelizmente, de construir uma forte participação social no acompanhamento da mídia. É preciso que um número cada vez maior de pessoas, organizações e movimentos se envolvam neste processo.
E as rádios comunitárias, também são instrumentos de luta e reivindicação?
Barbosa: Claro. As rádios comunitárias são um exemplo exatamente do outro lado deste processo. Não basta apenas reivindicar junto ao governo mudanças na regulação da nossa comunicação ou fazer o controle público dos meios de comunicação de massa. É preciso criar e colocar em funcionamento instrumentos que garantam o exercício, por toda a popular, de seu direito à comunicação, mecanismos que ampliem a pluralidade e diversidade de meios, fontes e conteúdos; que dêem voz a outras vozes. E é isso que as rádios comunitárias proporcionam. O grande desafio hoje é criar condições para que as rádios se espalhem pelo Brasil e sejam verdadeiramente “ocupadas” pela população. A Lei 9.612 que, em 1998, regulamentou o funcionamento da radiodifusão comunitária impõe uma série de limites à sua operação. Por exemplo: a autorização só pode ser dada a fundações e associações comunitárias, sem fins lucrativos, com sede na localidade de prestação do serviço. A rádio ainda deve ter potência máxima de 25 watts e a antena não pode ter mais do que 30 metros de altura. Em 2004, o governo federal criou um Grupo de Trabalho Interministerial para estudar a situação das rádios comunitárias e propor mudanças na lei. Mas nenhuma alteração aconteceu até agora. Enquanto isso, as emissoras que funcionam sem autorização continuam sendo violentamente reprimidas e lacradas pela Polícia Federal. É mais do que urgente, portanto, que toda a sociedade participe da defesa das rádios comunitárias e lute pela sua ampliação e fortalecimento.
Para mais informações, acesse: www.intervozes.org.br