Soja orgânica versus soja transgênica
“A dependência resultante da adoção de transgênicos eliminará as chances da soja brasileira no mercado internacional e dificultará sobremaneira as possibilidades de resistência diante da imposição de maiores royalties sobre os insumos a serem adotados”.
É o que defende Antônio Inácio Andrioli, mestre em educação e doutor em ciências econômicas e sociais pela Universidade de Osnabrück/Alemanha. Em entrevista, ele analisa o empobrecimento dos pequenos agricultores com a soja transgênica, a alternativa agroecológica e a ideologia por trás da defesa aos transgênicos.
“A dependência resultante da adoção de transgênicos eliminará as chances da soja brasileira no mercado internacional e dificultará sobremaneira as possibilidades de resistência diante da imposição de maiores royalties sobre os insumos a serem adotados”.
É o que defende Antônio Inácio Andrioli, mestre em educação e doutor em ciências econômicas e sociais pela Universidade de Osnabrück/Alemanha. Em entrevista, ele analisa o empobrecimento dos pequenos agricultores com a soja transgênica, a alternativa agroecológica e a ideologia por trás da defesa aos transgênicos.
Fonte IHU On-line
O conflito em torno do cultivo da soja transgênica e da soja orgânica é discutido e debatido nos meios de comunicação como deveriam?
Antônio Andrioli – A grande mídia tem sido responsável pela difusão dos maiores argumentos favoráveis à expansão de cultivos transgênicos em todo o mundo. Esses argumentos não são novos, pois repetem as promessas da assim chamada Revolução Verde: aumento da produtividade, redução de custos de produção, maior eficiência no controle de pragas, doenças e dos assim chamados inços, maior proteção ambiental e, não por último, o combate à fome.
Nenhum desses argumentos é comprovado a longo prazo e a experiência com o cultivo da soja transgênica tem demonstrado, claramente, que, ao invés de solucionar problemas da agricultura, a transgenia vem provocando novos problemas técnicos, como a crescente resistência de várias ervas daninhas, o surgimento de novas doenças e pragas, menor produtividade, maior contaminação e desequilíbrio nos ecossistemas agrícolas, redução da vida nos solos (em especial, redução na atividade de bactérias fixadoras de nitrogênio).
A soja orgânica vem sendo constantemente apresentada meramente como um nicho de mercado para pequenos agricultores (com maior disponibilidade de força de trabalho familiar), mas com poucas chances de prosperar, considerando a estrutura agrícola hegemônica centrada na agricultura química e volta às exportações. Percebo muita propaganda a favor da soja transgênica na mídia e uma tendência internacional de difusão de promessas não comprovadas nas experiências práticas.
Os pequenos agricultores vão ser obrigados a seguir a estratégia das grandes multinacionais do setor agrário no que se refere ao cultivo da soja?
Andrioli – A existência dos pequenos agricultores como produtores individuais é dificultada pelo uso da transgenia na agricultura na mesma medida em que estes são obrigados a seguir a estratégia das grandes multinacionais do setor agrário, tendo em vista a “silenciosa” contaminação genética que está em curso. Como a soja transgênica está patenteada como propriedade intelectual de uma empresa e sua expansão, em função do risco de contaminação de lavouras vizinhas, tende a impedir o cultivo da soja convencional, a dependência dos agricultores em relação às empresas fornecedoras de insumos passa a ser integral, tendo em vista que seu uso passa a estar programado desde o momento da semeadura. Enquanto o capital (especialmente insumos, crédito, assim como a estrutura de industrialização e comercialização de produtos agrícolas), tende a ser crescentemente monopolizado, os agricultores são tencionados a concorrer entre si pela sobrevivência, o que, obviamente, resulta numa exclusão da maioria dos pequenos agricultores do processo produtivo.
Esta “silenciosa” contaminação genética da soja deflagra o empobrecimento e o endividamento dos pequenos agricultores? O que a sociedade pode fazer contra a transgenia?
Andrioli – A privatização de recursos naturais e de conhecimento em benefício de corporações multinacionais e grandes proprietários rurais aprofunda a desigualdade social na sociedade brasileira, um contexto no qual as possibilidades de resistência por parte de pequenos produtores individuais e de consumidores são significativamente reduzidas. A exclusão tendencial dos pequenos agricultores do processo produtivo intensifica a concentração da terra, acelera o êxodo rural e aumenta o número de sem-terras (que são, ao mesmo tempo, novos desempregados), uma tendência que contribui fortemente para o crescimento da desigualdade social no Brasil.
Tanto os consumidores, aos quais é negado o direito de escolher produtos no momento em que as condições de produção de soja não transgênica são reduzidas, como os pequenos agricultores, ameaçados de exclusão pelo endividamento e empobrecimento advindo do maior custo de produção da soja transgênica, poderiam unir-se, constituindo áreas livres de transgênicos, seja na produção, seja no consumo. Essa auto-organização cooperativa de produtores e consumidores atingidos pela expansão de transgênicos eu avalio como a melhor estratégia de resistência possível. E, se considerarmos que 70% dos consumidores brasileiros rejeitam alimentos transgênicos, esse potencial existe concretamente, carecendo de iniciativas de organização social. O assim chamado livre mercado capitalista, como podemos ver na história, não permitirá o acesso a produtos de melhor qualidade, pois está centrado na produção em massa, baixando preços ao externalizar os custos ambientais e sociais.
Sabemos pela imprensa que a soja transgênica vem sendo cultivada em áreas cada vez maiores no Estado. Tem como estipular quanto da soja plantada no Rio Grande do Sul já é transgênica?
Andrioli – As estimativas existentes são de 95% de soja transgênica no Rio Grande do Sul. Como a semente dessa soja foi contrabandeada, esses números nunca foram precisos, pois se trata de um cultivo ilegal. Na Região Fronteira Noroeste, a qual eu delimitei para meu estudo, posso apresentar dados da minha pesquisa de campo: 71% dos agricultores entrevistados afirmam que cultivam soja transgênica.
O cultivo da soja convencional vai se restringir apenas aos pequenos agricultores?
Andrioli – A soja convencional apresenta uma maior produtividade em relação à soja transgênica (resistente a herbicida) e um menor custo de produção a longo prazo. O preço da soja convencional é de, no mínimo, 4% maior ao da soja transgênica. Por isso, ela é economicamente mais viável. Um grande dilema advindo do contrabando da soja transgênica e da posterior legalização do seu cultivo é a menor disponibilidade de semente de soja convencional, uma vez que a coexistência entre ambos cultivos não é possível e há uma tendência de tornar as melhores variedades de soja disponíveis (resultado de décadas de pesquisa com dinheiro público) resistentes a herbicida (transgênicas, com tecnologia patenteada). Como vários problemas ambientais da soja transgênica já estão sendo evidenciados e sua viabilidade a longo prazo passa a ser negada, há uma boa probabilidade de retorno ao cultivo convencional, considerando os altos riscos da soja transgênica.
Mas, ao contrário da agricultura química, onde um reequilíbrio ambiental é possível, o uso da transgenia na agricultura não permite muitas possibilidades de retorno, pois as mudanças na reprodução de um ser vivo estão fora de controle da ciência (as características hereditárias se reproduzem sozinhas). Embora os pequenos agricultores ainda constituam a maior parcela de produtores de soja convencional, a sustentabilidade e a competitividade da produção da soja brasileira dependem de uma mudança de opção também dos grandes produtores e isso enquanto ainda há tempo (ainda contamos com cerca de metade da produção de soja sendo convencional). A dependência resultante da adoção de transgênicos eliminará as chances da soja brasileira no mercado internacional e dificultará sobremaneira as possibilidades de resistência diante da imposição de maiores royalties sobre os insumos a serem adotados.
A agricultura tende a ser completamente dominada pelo capital e virando um mero ramo da indústria?
Andrioli – O aumento da concentração no setor alimentício em nível mundial, a monopolização do complexo agroindustrial e a tendência de ampliação do livre mercado no setor agrícola intensificam a concorrência e colocam em risco a viabilidade dos pequenos agricultores. Nessa perspectiva, os agricultores tendem a ser “empregados disfarçados” do complexo agroindustrial que controlará o processo de produção de acordo com seus interesses de acumulação de maior capital. Os agricultores são tencionados a assumir maiores riscos e a produzir de acordo com as normas da indústria, interessada em vender mais insumos e adquirir matérias-primas mais baratas.
O resultado é uma maior exploração dos agricultores e do meio ambiente e a destruição da soberania alimentar de povos inteiros. A sobrevivência dos pequenos agricultores ainda poderá durar temporariamente em função da auto-exploração das famílias no processo produtivo. Em função dos seus maiores custos de produção por unidade de produto os pequenos agricultores são explorados no momento da venda de seus produtos no mercado e, enquanto ainda existir uma maior procura do que oferta, estes continuarão subsistindo.
Numa situação de superprodução, entretanto, que é típica na economia capitalista, os pequenos agricultores não terão mais condições de competir, seja no mercado “convencional” ou orgânico. Essa é uma tendência em curso que tende a se aprofundar nos próximos anos, caso não apareçam maiores iniciativas de organização social unindo agricultores e consumidores para resistir, ao constituírem outras formas de produção, industrialização e comercialização de alimentos.
Em que medida a tecnologia pode modificar ou fomentar a agricultura familiar?
Andrioli – A tecnologia pode modificar ou fomentar a agricultura familiar, intensificar ou reduzir as estruturas de dependência, aumentar ou diminuir as oportunidades dos pequenos agricultores. A introdução da soja cumpre uma função importante no desenvolvimento do Rio Grande do Sul, mas está relacionada a interesses de grandes corporações multinacionais, as quais têm sido beneficiadas com o processo de difusão de determinadas “inovações tecnológicas”.
O aumento dos custos de produção na agricultura familiar, em função da introdução de tecnologias de caráter destrutivo (do ponto de vista ambiental, social e cultural), constitui uma explicação para o endividamento, empobrecimento e o crescente êxodo rural. A dependência decorrente da expansão da soja transgênica demonstra claramente a incompatibilidade social e ambiental da transgenia para os agricultores familiares, pois ela tende a aumentar os problemas técnicos e despreza o fator econômico mais importante nas propriedades familiares: a disponibilidade de força de trabalho.
A monocultura da soja não representa uma alternativa viável aos pequenos agricultores, seja em sua forma convencional, transgênica ou orgânica, pois ela exige altos investimentos e crescentes áreas de terra para expandir. Nesses fatores, os pequenos agricultores têm as maiores dificuldades, seja em função da sua baixa capacidade de investimento, das menores condições de acesso a crédito e do fato de a terra ser um recurso limitado, que não pode ser simplesmente reproduzido.
A agroecologia pode ser vista como uma medida de redução dos custos de produção, preservação dos recursos naturais e melhor remuneração do trabalho dos agricultores em propriedades familiares?
Andrioli – Diante das condições objetivas existentes, as possibilidades de afirmação da soja orgânica são muito pequenas e, considerando as condições subjetivas, ou seja, a predisposição dos agricultores em cultivá-la decididamente, a probabilidade se reduz ainda mais. Apesar dos melhores preços e dos menores custos de produção da soja orgânica, a absoluta maioria dos agricultores passa a cultivar a soja transgênica.
Para compreendermos essa situação nos ocupamos intensivamente com a análise dos efeitos da tecnologia orientada pelos interesses do capital sobre a agricultura, especialmente com relação à supostas (e reais) reduções e facilidades de trabalho e a conseqüente tendência de adaptação e destruição da agricultura familiar e dos recursos naturais. A mera utilização de uma nova tecnologia ou de uma nova forma de produção, mesmo que estas sejam ecologicamente mais sustentáveis que os anteriores, tem uma pequena importância diante da problemática social dos pequenos agricultores.
Todo o complexo agroindustrial poderia se adaptar à produção orgânica, fornecer insumos “ecológicos”, adequar sua estrutura de industrialização e comercialização a produtos orgânicos sem que, com isso, a estrutura de dependência seja superada. Mas, considerando a existência de uma dualidade da agricultura familiar, ou seja, a interação entre produção e consumo, pode ser percebida uma crescente atenção dos pequenos agricultores com relação à qualidade dos alimentos e suas conseqüências à saúde da família. Essa relação entre produção de valor e necessidades humanas, contraditória com o modo de produção capitalista, constitui uma particularidade importante da agricultura familiar com relação à agroecologia, podendo servir de base para o desenvolvimento de tecnologias socialmente e ecologicamente mais apropriadas às necessidades dos agricultores.
É possível mostrar aos grandes agricultores que a agroecologia é uma boa alternativa de plantio?
Andrioli – Quanto mais a agricultura química continuar sendo incentivada através do complexo agroindustrial, quanto mais os solos forem sendo contaminados e sua fertilidade estiver ameaçada, quanto mais rápida for a expansão de organismos transgênicos e uma massiva deteriorização da estrutura de produção agrícola estiver em curso, maiores serão as dificuldades para uma transição agroecológica.
Essa é uma situação que deveria preocupar a todos os agricultores interessados na sustentabilidade da produção agrícola, na preservação da soberania alimentar e na viabilidade dos sistemas produtivos futuros. Infelizmente, a estrutura agrária brasileira, historicamente marcada pelo latifúndio, pelas exportações agrícolas e pela desigualdade no acesso aos recursos naturais tem desprezado a preservação ambiental.
O solo é visto como um substrato gratuito, do qual se espera infinitas condições de expansão. A atividade agrícola em grandes áreas, hegemonicamente centrada em monoculturas, esgota a capacidade produtiva dos imensos recursos naturais disponíveis no Brasil. A produção ecológica é possível em grandes áreas, mas ela implica numa mudança qualitativa na forma de produzir, o que envolve, principalmente, a combinação de fatores de produção, tecnologias sustentáveis e uma outra relação com a natureza e o trabalho. Essa perspectiva parece não ser muito atrativa para os grandes proprietários rurais brasileiros, historicamente acostumados a investir um mínimo necessário na expectativa de remunerar o capital ao máximo possível, desprezando a natureza e o trabalho, os fatores que conferem valor à produção agrícola.
Por que os governos têm adotado uma política agrícola que favorece os grandes produtores rurais? Existe algum avanço ou projeto de conscientização em favor da agroecologia?
Andrioli – A propriedade da terra constitui uma das formas históricas de poder no Brasil. Por isso, não é por acaso que nos parlamentos, no Poder Judiciário e em muitos governos os latifundiários (que, em sua maioria, vêem a terra como reserva de valor) estejam presentes, seja diretamente ou através de seus representantes e suas organizações. Mesmo governos contrários à forma destrutiva, injusta e mesmo ilegal com que os grandes proprietários rurais operam passam a ficar mais sensíveis às demandas propostas por estes em função dos compromissos assumidos para assegurar a governabilidade.
A base da estratégia econômica do atual governo é a política de altos juros e o apoio às exportações. O incentivo às exportações permitiu um superávit na balança comercial da ordem de 24,8 milhões de dólares em 2003, 33,7 milhões em 2004 e 44,8 milhões em 2005, que serviram, prioritariamente, ao pagamento de dívidas do país. Assim, se fecha um ciclo de interesses conciliatórios entre latifundiários e governos que marca a maior parte da história brasileira. Nesse contexto, os grandes produtores rurais são apresentados como progressistas, uma inversão da realidade, difundida pelos grandes meios de comunicação e aceita pela maioria da população.
O Brasil poderia ter aproveitado muito melhor seus recursos naturais, sua enorme biodiversidade, seu potencial de produção de alimentos de qualidade. Houve avanços no atual governo nessa direção. Especialmente através da ação do Ministério de Desenvolvimento Agrário, fomentando a produção ecológica (através da concessão de crédito facilitado, a formação, capacitação e a assistência técnica), a boa participação em feiras como a Biofach (em Nürembergue, na Alemanha, a maior feira internacional de produtos orgânicos), e o incentivo à constituição de redes de comercialização e industrialização de alimentos ecológicos.
O dilema é que esse potencial deixa de ser aproveitado exatamente pela prioridade do governo brasileiro nas exportações agrícolas vinculadas a monoculturas, a desigualdade na distribuição dos recursos em favor do modelo destrutivo de agricultura proposto pelos grandes produtores rurais (motivada pelas alianças no interior do governo e no Congresso Nacional), e o corte de recursos para a agricultura familiar e a Reforma Agrária em função da política econômica restritiva, neoliberal e compensatória.
Por que o debate sobre inovações tecnológicas na agricultura pode adquirir uma dimensão política?
Andrioli – O debate sobre inovações tecnológicas na agricultura pode adquirir uma dimensão política, ao unificar agricultores atingidos por tecnologias de caráter destrutivo, servindo como ponto de partida para a construção de um novo processo de consciência. A possibilidade de desmascarar o caráter explorador da agricultura capitalista através da experiência com a agroecologia e de associar a necessidade da organização política dos agricultores com outras forças anticapitalistas na sociedade pode conferir uma dimensão revolucionária a um movimento ecológico e cooperativo dos pequenos produtores.
Isso, entretanto, depende da possibilidade de desvelamento das contradições da economia capitalista, partindo de uma experiência de produção socializadora do seu interior, de maneira que as estruturas de dependência tecnológica, econômica e social deixem de ser ocultas e passem a ser conscientes, conduzindo à formação de movimentos sociais mais amplos.