O grito dos necessitados
Por Sergio Xavier Ferolla
A democracia no Brasil ainda passa por um natural processo de amadurecimento e, como uma planta tenra, necessita de cuidados especiais por parte dos diversos segmentos da sociedade, de forma a crescer e consolidar suas bases de sustentação, oferecendo saudáveis frutos a todos que se abrigam sob sua sombra protetora e acolhedora.
Por razões diversas, vivemos em um país com população econômica e culturalmente assimétrica, no qual milhões vivem abaixo do nível de pobreza contrastando com uma parcela muito pequena de cidadãos posicionados no mais elevado patamar de riqueza e ostentação.
Nossos pobres e miseráveis, como verdadeiros párias da sociedade, sobrevivem sob o terrível espectro da fome, do desemprego e de um justificado sentimento de abandono pelas autoridades, sendo levados a exacerbar o grito dos excluídos contra os que consideram ser a causa de todos os males que os afligem. No seu seio afloram lideranças que buscam, a seu modo, interpretar e transmitir as pretensões do grupo, organizando e definindo um rumo para o movimento caótico da turba insatisfeita.
É nesse contexto que falham algumas autoridades responsáveis pela ordem e pela paz da família brasileira, incapazes de pressentir e interpretar o lado justo das reivindicações, bem como coibir, nos limites da lei, os desvios de conduta que possam estar ocorrendo. Que, em geral, também acontecem com os de cima.
Como movimento popular de maior destaque na vida nacional, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) muito se presta para uma análise pontual desse complexo quadro social, cuja origem pode ser sintetizada em dois fatores preponderantes.
1) Na esperança de uma vida digna, muitos integrantes das faixas mais pobres e despreparadas do interior do Brasil migram para os grandes centros urbanos, nos quais se defrontam com um ambiente severamente adverso que os leva, de vez, à periferia da convivência social.
2) Paralelamente, a estrutura fundiária do país, com grandes áreas agrícolas improdutivas e sob o domínio de reduzido número de proprietários não vocacionados para os empreendimentos agrícolas, maximiza ainda mais a existência de homens do campo sem emprego e sem acesso à posse da terra, compondo um crescente grupo de excluídos do meio rural.
Emerge desse caos a justa pretensão de unir esses deserdados da terra e da sociedade para reconduzi-los a uma vida digna e com futuro para seus filhos, formando assentamentos e cooperativas de pequenos agricultores -tão importantes para a sociedade como são os pequenos empresários urbanos.
Houvesse o governo federal, no princípio, entendido o significado estratégico da oportunidade que se oferecia e conduzido a bandeira desfraldada, promovendo assentamentos em terras agricultáveis, com o suporte de agrônomos, administradores e financiamentos adequados para a organização de pequenas cooperativas, estaria nosso país comemorando o resultado benéfico de uma reforma agrária eficiente, com a convivência harmoniosa entre pequenos e grandes empresários do campo, cada qual atuando em seu modelo próprio de agricultura na dimensão das áreas exploradas e, o que é mais importante, se integrando em muitas atividades complementares.
No turbilhão dos movimentos sociais, de forma surpreendente, diversas lideranças legítimas e seus seguidores têm demonstrado uma crescente consciência sobre a natureza de importantes questões da política nacional e internacional que afligem a todo povo.
Concordemos ou não com suas posições, eles têm exercido um papel mais importante que o da maior parte das classes média e superior da sociedade brasileira, ainda amorfa e alienada em relação a temas como Alca; privatização, desnacionalização de empresas estatais; política econômica e petrolífera do governo brasileiro; agressões armadas perpetradas por potências militares etc.
Já é passado o tempo dos verdadeiros líderes dos três Poderes da República, políticos, religiosos, militares e toda a inteligência nacional se debruçarem sobre o estudo das causas motivadoras dos sofrimentos e desencantos do povo e da nação brasileira, buscando, antes de manifestar suas opiniões e críticas, equacionar soluções em busca da tão almejada paz com justiça social, tema presente em todos os discursos vazios dos que se consideram representantes do povo brasileiro.
Sergio Xavier Ferolla, 72, tenente-brigadeiro do Ar reformado, é engenheiro eletrônico pelo ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica) e ex-ministro do Superior Tribunal Militar. Foi comandante e diretor de estudos da Escola Superior de Guerra (1993-94) e chefe do Estado Maior da Aeronáutica (1995-96).
Publicado originalmente na Folha de S. Paulo (06/11/2006)