Questão agrária ganha os palcos em SP
Por Bel Mercês
Fonte Agência Brasil de Fato
“O intervalo é de 15 minutos”, revela o ator ao se despir de seu personagem. Já é perto das 22h00, o público abandona as cadeiras de um improvisado teatro no 12º andar do Sesc, localizado na Av. Paulista, em São Paulo (SP), e aguarda o elevador. Até então, havia se passado mais de uma hora e meia do primeiro ato de O Círculo de Giz Caucasiano, peça de Bertold Brecht, montada pela paulistana Cia. do Latão, em homenagem aos 50 anos de morte do inspirador de seu teatro dialético, e que também dá início às comemorações de dez anos de atuação grupo. A adaptação brasileira, assinada por Manuel Bandeira, conta desta vez com precisa e fiel direção de Sérgio de Carvalho, um dos fundadores do Latão e estudioso do marxismo, e com a participação de um grupo de atores convidados de outras companhias.
O intervalo, recurso pouco usado no teatro contemporâneo, é pequeno, porém importante para respirar, ir ao banheiro, ouvir comentários de outros espectadores e refletir sobre o que foi contado até então na peça. Quando escreveu O Círculo de Giz Caucasiano, Brecht manteve na narrativa três histórias diferentes, porém complementares. O prólogo é essencial para o estabelecimento da dialética, apresentando o posicionamento político do debate a ser feito nos dois atos seguintes: em uma assembléia, camponeses da União Soviética de 1947 discutem o “direito à terra” no pós-guerra. A questão central levantada é sobre quem tem esse direito: os donos que a abandonaram durante a batalha ou os que ali ficaram e cuidaram do local, tornando-o mais fértil e vivo.
Na encenação do Latão, a aproximação do tema com os tempos atuais transforma o prólogo em um vídeo gravado durante oficina com o grupo de teatro Filhos da Mãe Terra, do MST, em que juntos, os atores buscam interpretações diversas e soluções políticas para o conflito entre os camponeses soviéticos. O consenso é a solução encontrada tanto pelo dramaturgo quanto pelos atores do MST. Segundo o diretor, a escolha de trabalhar com o MST se deve à importância de contextualizar na história o Brasil político de hoje. “Brecht escreveu um prólogo entre agricultores soviéticos em outra época, com tempo e lugar definidos. O MST é um movimento que hoje radicaliza o tema da função da terra”, diz.
Primeiro ato
No texto de Brecht, assim que estabelecido o direito à terra para quem dela cuidou, tem-se uma festa entre os dois grupos camposeses, e dentro dela, um espetáculo é montado para celebrar ao acordo. Aqui, de dentro do prólogo, começa de fato o trabalho de palco do Latão. Os atores, após assistirem ao vídeo junto à platéia, apresentam a história de Grucha (Helena Abergaria), criada da família real que salva o príncipe da morte em meio à revolução e foge com ele para as montanhas. Perseguida por soldados que buscam recompensa, Grucha se vê diante da possibilidade de abandonar a criança em vários momentos. Passando fome e frio, vive a dualidade do desejo de estar só e manter-se segura para esperar o noivo voltar da guerra e da incapacidade de deixar o bebê Miguel no meio do caminho. Quando se depara com uma cabeça decepada, tendo a morte diante de si apresentada, ela assume o filho em definitivo como seu. Carvalho entende que o esforço de Grucha demonstra sua humanidade: “ela é alguém que, diante da perspectiva da morte, escolhe a vida”.
A tensão presente na história parece amenizar na medida em que Grucha assume um casamento de fachada para criar Miguel e tem na criança o conforto do amor. Mas é apenas um breve fôlego para a retomada do debate sobre a questão da propriedade a partir do reaparecimento da rainha Natella Abaschvíli (Deborah Lobo) e sua reivindicação de maternidade sobre o filho.
Segundo ato
Dá-se então o intervalo anunciado pelo ator. Na subida do elevador, ainda há tempo para pensar sobre as contradições postas em cena e fora dela: O Círculo de Giz Caucasiano apresenta uma reflexão sobre a propriedade, numa perspectiva de esquerda. O grupo de teatro dependeu de financiamento da questionável Lei Rouanet de Incentivo à Cultura, que alivia as instituições capitalistas de impostos caso elas invistam naquilo que acharem conveniente. No mundo da cultura que é ditada pelas empresas, a Cia. do Latão estreou sua montagem de Brecht no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro (RJ), antes de seguir para o Sesc de São Paulo.
O julgamento sobre a “propriedade da criança” será feito por Azdak, juiz beberrão que é empossado pelo próprio povo em momento de transição e caos político. Azadak é um personagem de constante ambivalência, um fanfarrão que quer se dar bem a todo o momento, mas nutre sentimentos revolucionários por influência de um avô. Virando a lógica burguesa pelo avesso, de modo a absolver os pobres e condenar os mais poderosos, o juiz lança mão de qualquer artifício para reverter o conceito de justiça estabelecido pela ordem dominante. Carvalho vê Azdak como catalisador de todas as contradições históricas apresentadas, “um cara que, por um instante achou que estava acontecendo uma revolução”, disse, “e aproveitou essa brecha histórica para trabalhar. Ele é verdadeiro, não é um herói, já que por vias tortas acaba ajudando os excluídos”.
Quando o menino Miguel está no centro da disputa entre sua mãe natural e aquela que o criou, Azdak começa seu jogo em busca de brechas que possam subverter a lógica do sangue. Em vários momentos, a contradição vem à tona com força, como quando ele aceita o suborno da rainha, deixando se estender longamente a dúvida sobre como se dará seu julgamento. O fato é que ,sem ter encontrado um artifício suficientemente convincente e procurando não trair seu ideal de mudança, Azdak se utiliza de um recurso que o fará por fim na própria carreira, a arbitrariedade, e inventa uma prova: desenha um círculo de giz em torno de Miguel e pede para as duas mães o puxarem. Nas duas tentativas, Grucha não consegue encontrar forças, pois não pretende machucar o menino. Então o juiz dá o argumento final, aliviando a tensão do momento. O filho, para quem entende a justiça como o que ela deveria ser, e não como foi instituída, é de quem o criou, assim como a terra, no prólogo.
Para o diretor, a peça cria panoramas de contradições o tempo inteiro, sobre as quais o publico atua ativamente: “as contradições fazem o público se sentir ativo na peça. Brecht obriga as pessoas a um prazer produtivo, a fazer parte da história”. “O importante é que a narrativa joga a pessoa para pensar o quanto nosso conceito de justiça é formado pelo modo de produção dominante. Isso causa uma crise ideológica no espectador”, comenta. Ele conta que, no Rio de Janeiro, assim que a peça estreou, uma senhora protestou contra o prólogo, alegando não existir movimento como o MST na época de Brecht, e ser a favor da propriedade, causando tensão.
Por isso, sem o prólogo, a peça não provocaria, pois não faria o debate político e nem permitiria a análise dialética a partir da realidade do momento. É uma virtude não deixar o público com dúvidas quanto a sua intenção de apresentar um posicionamento por meio da arte, principalmente quando se tem o complemento da sutileza poética, do trabalho sensível com a interpretação, a música que rima com o texto, figurino e cenário caprichados. Assim era Brecht, um militante de esquerda que suavizou a dureza da política. E assim se firma a Cia. Do Latão, um dos poucos grupos que, mesmo dentre todas as contradições da globalização, se assume sem medo como teatro militante.
Serviço
O CÍRCULO DO GIZ CAUCASIANO
Sesc Avenida Paulista – Av. Paulista, 119
Telefone: 3179-3700
Sexta a domingo, às 20h. Até 21/1
Preço: R$ 15