Caio Prado Jr – O aristocrata radical

O aristocrata radical

Por Oscar Pilagallo

Inaugurador da análise marxista para explicar a história do Brasil, Caio Prado Jr. (1907-1990), cujo centenário de nascimento se comemora no próximo domingo, viveu sob o signo da adversidade – e é assim que sua obra sobrevive. Quando o comunismo tinha influência, o militante enfrentava o jugo da polícia; agora, que o comunismo perdeu o prestígio, seu legado enfrenta o crivo da intelectualidade.

A adversidade está associada às duas rupturas que marcam sua biografia. Na primeira, Caio Prado, pertencente a uma das famílias mais ricas e tradicionais de São Paulo, corta os vínculos de classe para abraçar a causa da revolução proletária. Na segunda, uma vez instalado no novo ambiente, as fileiras do Partido Comunista Brasileiro, afasta-se da hegemônica ortodoxia stalinista.

O rompimento com a aristocracia causou “frisson” na sociedade paulistana dos anos 30. Para evitar embaraços, Caio Prado até deixou de aparecer nos almoços formais na residência dos avós maternos, para os quais eram expedidos convites impressos.

Pedradas

O jovem comunista tornara-se “socialmente indesejável, quando não temido”, observa Paulo Lumatti numa biografia intelectual de Caio Prado, escrita a partir de sua tese de doutoramento e que neste ano será publicada pela Brasiliense, editora que Caio Prado fundou em 1943. “Eu me lembro de jogarem pedra em nós na rua. […] O pessoal gritava “filha de comunista'”, lembra Yolanda Prado em entrevista ao autor.

A guinada ideológica se deu pouco antes de completar 25 anos. Até então Caíto, como era chamado, tivera a trajetória escolar de um garoto de elite. Estudou em casa sob a tutela de governantas alemãs, freqüentou o rigoroso colégio jesuíta São Luís, ingressou na faculdade de direito do largo de São Francisco.

Na política, seguiu a orientação paterna e filiou-se ao Partido Democrático, onde se refugiava a burguesia descontente com o Partido Republicano Paulista, um dos pilares da política do café-com-leite da República Velha. Na Revolução de 30 esteve ao lado de Getúlio Vargas, mas logo se decepcionou com a inconsistência ideológica do novo governo. Foi então que, em 1931, entrou para o PCB. Seu primeiro livro, “Evolução Política do Brasil”, publicado dois anos mais tarde, já reflete a formação marxista.

Nunca antes o materialismo histórico havia sido usado como instrumento para interpretar o Brasil. Não se tratava da mera transposição mecânica das teses da cartilha soviética. Isso o Partidão, subserviente a Moscou, já fazia.

A grande contribuição de Caio Prado foi adaptar o método de Karl Marx à realidade brasileira, enfoque que ele aprofundaria na década seguinte com “Formação do Brasil Contemporâneo”, considerado consensualmente o ponto alto de sua produção.

Nesse livro, Caio Prado anima o debate intelectual ao rejeitar a noção de que tivesse havido feudalismo no Brasil Colônia. A tese feudal constava da apostila do PCB. Assim era explicada a origem do atraso do Brasil, o que projetava a necessidade de uma revolução burguesa, etapa intermediária para se chegar ao comunismo. Mas, se o Brasil já apresentava traços capitalistas desde o início, então tal revolução seria prescindível. Daí a polêmica.

É mais fácil concordar com o que Caio Prado rechaça do que com o que ele propõe. A concepção de um Brasil feudal está hoje descartada. “Ele destruiu o esquema intelectualmente preguiçoso do Partidão”, afirma o doutor em filosofia Leandro Konder, que também militou no PCB. Mas nem todos estão de acordo sobre o tipo de capitalismo que havia naquele passado remoto, se é que podia ser chamado de capitalismo.

Sentido da colonização

Caio Prado estabelece a diferença entre as colônias de povoamento, como a dos EUA, que reconstituem no Novo Mundo uma sociedade à semelhança do modelo europeu, e as colônias tropicais, como a do Brasil, onde surgirá uma sociedade original.

Ele explica: “A colonização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial (…) destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização”.

A relevância de “Formação do Brasil Contemporâneo” não é objeto de disputa. O livro colocou Caio Prado ao lado de Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre como um dos grandes intérpretes do Brasil.

Tornou-se um clássico, no sentido de obra que ainda é viva e que, portanto, dialoga com historiadores contemporâneos. O reconhecimento da enorme importância do autor, entretanto, não inibe as críticas. O cientista político Carlos Nelson Coutinho, um dos fundadores do PSOL, apontava, no início dos anos 90, uma limitação no enfoque de Caio Prado.

“Ele quase nem percebeu a industrialização e, quando o fez, foi para subestimá-la, tratando-a como uma aparência que não alterava a essência colonial”, afirmou, no resumo de José Carlos Reis em “As Identidades do Brasil” (ed. FGV).

Florestan Fernandes, que daria continuidade à sua obra, lhe faz crítica semelhante. Na introdução a “História e Desenvolvimento”, um livro menor de Caio Prado, do final dos anos 60, Florestan ressalva que o historiador ignora a metamorfose que engata o capital mercantil da Colônia ao capital industrial. “Aí, fica patente que Caio se prende demais à lógica dos conceitos que são essenciais em seu esquema descritivo e interpretativo.”

Mercado colonial

Alguns historiadores são de opinião que Caio Prado falha ao não identificar a importância de um mercado interno na Colônia. Para Pedro Puntoni, professor da USP, sua obra, que permanece conceitualmente, foi superada por trabalhos posteriores sobre mercados regionais. João José Reis, autor de “Rebelião Escrava no Brasil” (Companhia das Letras), vai na mesma linha.

Ao prever o resgate do historiador, Reis diz, numa entrevista que integra o livro “Conversas com Historiadores Brasileiros” (editora 34): “Eu só espero que não seja retomado o famoso sentido da colonização, que não permitiu a algumas gerações de historiadores perceber a importância do mercado interno, da acumulação endógena, dos setores sociais que foram se formando ao lado de senhores e escravos”.

Mas não há consenso. No mesmo livro, Fernando Novais, considerado o principal herdeiro de Caio Prado, afirma: “Caio diz que a economia não consegue produzir para a exportação sem fazer crescer o mercado interno ao mesmo tempo. Logo, o mercado interno é um pressuposto do sistema”.

Mais polêmico ainda que “Formação do Brasil Contemporâneo” é “A Revolução Brasileira”, de 1966. Aí o debate foi além do meio acadêmico. O que estava em jogo era a estratégia da esquerda no período que precedeu a derrubada do governo de João Goulart, em 1964. O Partido Comunista é o alvo principal.

Segundo Caio Prado, o Partidão identificava uma aliança entre o proletariado e a burguesia progressista, que supostamente faria frente a interesses imperialistas e latifundiários. Em nome dessa aliança, interpretou como avanço revolucionário o período pré-64. A burguesia progressista, porém, mostraria ser sócia menor do imperialismo. Assim, aquele “período malfadado” teria servido apenas para preparar o golpe. Com uma retórica agressiva, Caio Prado desautoriza os pseudo-revolucionários perdidos em “abstrações inspiradas em modelos apriorísticos”.

Resistência

Apesar das polêmicas, ou talvez por causa delas, o historiador Caio Prado continua sendo estudado. O mesmo não se pode dizer do filósofo, que escreveu, entre outros livros, “Notas Introdutórias à Lógica Dialética” e “O Estruturalismo de Lévi-Strauss, o Marxismo de Louis Althusser”. São obras sem ressonância.

Só o historiador resiste. Ele resiste à comparação desfavorável com os dois grandes estilistas de seu tempo, Freyre e Buarque de Holanda. Resiste à crise da historiografia marxista. Resiste ao desprestígio da história econômica, “diante do ataque avassalador da história cultural”, como diz o historiador José Murilo de Carvalho.

Resiste, enfim, ao tempo, embora possa não estar na moda. Como diz Carvalho: “Provavelmente será recuperado em algum momento, quando as coisas se reequilibrarem”.

Oscar Pilagallo é jornalista e autor de “A História do Brasil no Século 20”, “O Brasil em Sobressalto” e “A Aventura do Dinheiro”.
Texto originalmente publicado no jornal Folha de São Paulo de 04/02/2007