Militante haitiano denuncia militarização do Haiti

Pedro Carrano
Brasil de Fato

“Se nos vêm ajudar, por que não mandam doutores, engenheiros? Por que não nos mandam cooperação, por que ao invés disso nos mandam o exército?”.

Esta foi apenas uma das perguntas feitas pelo haitiano Didier Dominique, militante da organização haitiana Batay Ouvriye (Batalha Operária), ao falar sobre a presença da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah), que desembarcou no país desde 2004. O arquiteto e professor universitário e a pesquisadora Rachel Beauvoir Dominique estão no Brasil para encontrar movimentos sociais em 10 diferentes cidades e denunciar a barbárie imposta ao país, além de articular marcos de ação e solidariedade.

Na leitura de Dominique, a missão das Nações Unidas está inserida em um projeto econômico definido pelos Estados Unidos para os países do Caribe. O Haiti que, em 1804, num legítimo movimento dos escravos, deixou de ser a mais abundante colônia francesa, logo resistiu a um embargo de 60 anos promovido pelos EUA, agora têm que driblar a repressão ditada pelas fábricas têxteis, instaladas em zonas francas.

E, por absurdo que pareça, o braço militar deste projeto é comandado por países da América Latina, como o Brasil, Argentina, Chile e Uruguai. Porém, por trás do véu do discurso oficial da missão da ONU, que prega a paz para a região, as incursões das tropas nos bairros da capital causam a morte de trabalhadores e mulheres inocentes.

Dominique contou, durante passagem por Curitiba, que a organização Batay Ouvriye (Batalha Operária) promove uma articulação entre associações de pequenos camponeses, associações de bairros e pequenas vendedoras. O país vive um intenso processo de “proletarização”, por conta da política de transformar o Haiti em fornecedor de mão-de-obra barata para a indústria têxtil, por isto o Batay Ouvrive se articula sobretudo com comitês clandestinos de operários.

O militante – que também viveu em Porto Rico, onde teve contato com os movimentos de independência do país, atual colônia estadunidense – começou sua análise pelo capitalismo no contexto global. “Sabemos que estamos vivendo um momento insuportável frente à ofensiva imperialista, que tem o objetivo de dominar o mundo (…) São ofensivas militares, roubos de nossos recursos naturais e tesouros da humanidade, como acontece no Iraque”, expôs.

A agressão aos povos atingiu um patamar insuportável. Ele diz que os movimentos sociais vivem uma encruzilhada, levando em conta que não há um contexto como aquele apontado pelo Che, em meados dos anos 60, quando falava em criar um, dois Vietnãs. Por conta disso, Dominique aponta que os movimentos sociais enfrentam a contradição de trilhar a via pacífica em meio ao que chama de “radicalidade declarada do inimigo”.

Citou países que nos últimos anos sofreram intervenções armadas dentro da lógica capitalista, não só o Afeganistão e o Iraque, mas também países africanos como o Congo e a Costa do Marfim. Ao descrever a investida contra o Haiti, em nome de um projeto econômico, o sindicalista sensibilizou a todos os presentes no debate.

Como no século XVI

Segundo o ativista, o Haiti está inserido em um projeto definido pelos EUA para a América Central, México e Caribe, iniciado a partir do governo de Ronald Reagan (1981-1989). Hoje em dia, a região está ocupada pelas chamadas “zonas francas” ou ZPEs (Zona de Processamento de Exportação). Dentro da muralha que as envolve, as zonas francas possuem em torno de 20 ou 30 fábricas de manufaturados onde as trabalhadoras e trabalhadores se submetem a relações desumanas de produção.

A indústria têxtil predomina. O segmento pouco se mecanizou e não se informatizou, então o uso do trabalho braçal e barato continua necessário para a confecção de roupas, bolas, etc. A produção muitas vezes se dá como “no século XVI”, compara Dominique. Na conversa com a reportagem do Brasil de Fato, ele afirmou: “Hoje as zonas francas não dependem dos consumidores locais, então a produção logo é enviada para o Canadá, EUA e França”. Os trabalhadores vivem empilhados, nas cidades em volta dos muros que protegem a produção. Se eles se organizam, as fábricas têm uma mobilidade que as permite ir embora e deixar o local às mínguas.

Apenas na República Dominicana, país fronteiriço com o Haiti, existem 56 zonas francas. O militante do Batay Ouvriye chegou a ironizar, lembrando um senador estadunidense e a sua proposta para que todo país se tornasse uma única zona franca. O Haiti, por sua vez, é a mão-de-obra mais barata da América e a terceira mais barata do mundo. Tem a moeda desvalorizada, assim o salário é pago em dinheiro local, enquanto as manufaturas são vendidas em dólares. A situação é tal que os trabalhadores haitianos não comem ao meio-dia, assim voltam com algum trocado para casa.

“É necessária uma miséria generalizada, para que qualquer um esteja disposto a trabalhar. A miséria total serve para manter o salário baixo (…) a vantagem do Haiti, segundo a própria burguesia, é a sua mão-de-obra barata”, critica. A repressão é feroz, segundo o relato de Dominique. De acordo com o código de trabalho local, o trabalhador é quem deve provar a inocência em caso de demissão.

São poucas as notícias sobre a organização das trabalhadoras e trabalhadores nas zonas francas, embora na verdade ela existe, e é clandestina. Dominique conta que as transnacionais costumam migrar quando farejam a presença de algum sindicato. Então a organização não pode se dar no chão da fábrica, e sim nos bairros de periferia.

Que apoio é este?

O Haiti já provou do colonialismo francês e das invasões dos EUA (uma delas se estendeu de 1915 a 1934), mas poucos esperavam ver as tropas de países como Argentina, Uruguai, Chile, lideradas pelo Brasil, do presidente Lula, assassinando trabalhadores nas periferias da capital Porto Príncipe. Dominique faz a ressalva de que não estamos falando do povo destes países – ele lembrou a importância dos sem-terra, no Brasil, ou das fábricas ocupadas, na Argentina. São, na verdade, projetos econômicos apoiados por forças reacionárias das forças armadas. “Trata-se de lutar em contra deste projeto”, ressalta.

Na narrativa de Dominique, a situação está beirando o teatro do absurdo. Recentemente, um político da elite haitiana chegou a tentar acalmar a população garantindo que haveria indenização para as pessoas inocentes que fossem mortas nas incursões da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustha) pelos bairros da periferia.

Do ponto de vista do militante, a solidariedade deve se dar no campo da ação (algo muito além da paz proposta pelos EUA e Europa, por meio de “marcos de cooperação”, um nome light para os tratados de livre-comércio). Ele fez referência à atuação cubana pela libertação de Angola (1975), quando 50 mil homens foram dar apoio à libertação do país africano. Ele acredita que é preciso sentar e debater projetos em comum entre os países, projetos de solidariedade, como os que estão realizando agora mesmo agrônomos e médicos venezuelanos no Haiti.

Para ele, a ação tem que ser articulada conjuntamente entre os trabalhadores explorados, pois, como se vê, a resistência isolada tende à derrota. “Já não se trata de eu ser haitiano, ou hondurenho, ou guatemalteco, estamos vivendo o mesmo processo”, pensa.