O pedagogo da esperança e da liberdade
Por Ademar Bogo*
Paulo Freire é um daqueles seres humanos que entram na história para nunca mais sair. Pela simplicidade, dedicação, persistência e empenho com que tratou a educação, continua presente em todos os lugares em que se discute a transformação da realidade.
A sua grande descoberta, já no final da década de 1950, foi que aprendemos a ler o mundo que nos cerca, antes mesmo das palavras e frases [1]. A partir daí tornou-se o grande pedagogo, amigo e militante das lutas sociais.
O caminho indicado para aprender a ler o mundo a partir da ótica política seria a luta, por isso não só declarou que “todos sabemos alguma coisa”, como também despertou na geração de seu tempo e posteriores a esperança de mudar o mundo. Conjugou como se fossem verbos as palavras “esperança e liberdade” e as interligou na prática revolucionária de cada dia.
Astuto como educador e militante, percebeu que o mundo das necessidades tem os problemas e, ao mesmo tempo, as soluções. A organização e a luta é que nos fazem sujeitos da história. Assim aconteceu com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
O problema social é o mundo imediato de qualquer ser social que encara a vida com vontade de se tornar sujeito. Ler a existência da exploração e do latifúndio foi a forma embrionária da consciência, ela permitiu que os trabalhadores sem-terra, dispersos, procurassem algum lugar onde pudessem denunciar o que sabiam; isso porque, na luta social, num primeiro momento, o saber se dá na forma de “reclamação”.
A reclamação colocada se estabeleceu como “denúncia”. Era a comparação das condições que havia entre os seres sociais que possuíam os mesmos direitos, mas se diferenciavam nas condições.
Por sua vez, a denúncia se transformou em “crítica” e essa, ainda espontaneamente, avançou para a revolta. A revolta foi o primeiro sinal de que a organização da classe estava se configurando. Agora existia porque aparecia e incomodava.
A leitura do mundo despertou a “imaginação” que, no fundo, era o desejo de mudar. Era a esperança que desabrochava, como o movimento da primavera que não se pode conter.
Depois da leitura do mundo, vieram os documentos, as pautas de reivindicações, as notícias nos jornais onde alguém que aprendera a ler as letras (provavelmente sem ter levado em consideração o mundo em que vivia) discorria diante dos ouvidos atentos, para saberem se as palavras escritas retratavam o que haviam feito.
Dessa forma, o MST, ao nascer e se desenvolver, nada mais fez do que confirmar pela prática, o que Paulo Freire havia descrito em suas reflexões.
A prática ensina, dizia Paulo Freire, mas esse conhecimento não basta, “precisamos conhecer melhor as coisas que já conhecemos e conhecer outras que ainda não conhecemos”[2]. Conhecer, então, é mais do que uma curiosidade, é apreender a realidade como se ela nos pertencesse.
Foi por esse caminho que Paulo Freire nos levou pela mão; nos fez apaixonados pelo conhecimento e pela humanização, pois conhecíamos o latifúndio pela sua extensão antes da ocupação, mas isso não era tudo, as letras e os números traziam, com precisão, o nome, tamanho e proprietário daquele território sem fim.
Ao tomar conhecimento dessas características, compreendíamos as classes sociais, sabíamos o porquê de estarmos em lados opostos e porque éramos inimigos. Compreendíamos não pelas letras, mas porque víamos o proprietário que, sozinho, tinha uma enorme propriedade que não cumpria a função social. Por isso não havia mais terra disponível em nosso país para quem quisesse trabalhar para sobreviver.
O conflito, por essa leitura do mundo e das letras, tornou-se uma saída para resolver as necessidades que motivaram a luta. Então lutar é bom, é um prazer porque nos ensina a ler o mundo melhor e a descrevê-lo como se fosse nosso.
“Estar no mundo e com o mundo”
Paulo Freire nos ensinou o caminho para a formação da consciência na sua forma política. Ensinou-nos que “estar no mundo e com o mundo” é não somente aprender a ler a realidade, mas propor-se a modificá-la, já que alteramo-nos na medida da alteração que provocamos. Acreditava Freire que “o mundo não é, o mundo está sendo”.
Antes de entrar na luta pela terra, as pessoas “estão no mundo”, mas se comportam como se estivessem fora dele. Vêem os problemas, mas se desviam deles. Aparentemente, a fome, a falta de trabalho e moradia etc. não têm causa, e, onde não há causas, não há lutas.
Talvez ninguém tenha entendido e aplicado tão bem quanto Paulo Freire a terceira tese sobre Feuerbach, onde Karl Marx e Friedrich Engels, descreveram que, “o próprio educador tem que ser educado” [3]. Ou seja, educar é buscar formas de modificar as circunstâncias em que vivemos para modificar-nos junto. Separar os sujeitos das circunstâncias em que vivem, é descomprometê-los. E não pode haver jamais um movimento social sem comprometimento.
Paulo Freire percebeu que os problemas sociais não são apenas uma criação humana que diminuem a humanização, mas que eles também são a porta do conhecimento. Então, na ligação entre o ser e as circunstâncias, os problemas se transformam em temas geradores do próprio conhecimento.
“A leitura do mundo”, de acordo com Paulo Freire, nada mais é do que uma leitura de nós mesmos e das circunstâncias que nos rodeiam. Através dessa leitura reconhecemos que, aquilo que parecia estar somente fora de nós, está também dentro, como cicatrizes. O educador nos ajudou a descobrir-nos, porque ele já tinha se descoberto anteriormente e, em si, processou a modificação enquanto pedagogo.
Daí que, o “professor” da tese de Marx e de Engels, no movimento social, pode ser entendido como a liderança. Organizar a luta é um conhecimento político que precisa de habilidade, inteligência e astúcia. Logo, a formação política procura combinar formas e conteúdos. Assim, atinge-se o estágio de liderança quando o fazer e o dizer não estão em desacordo; quando as relações expressam a lógica das combinações e das contradições. Nessa perspectiva Freire afirma que:
“A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é o fazedor. Vai temporalizando os espaços geográficos. Faz cultura…”. [4]
O processo de estabelecer relações políticas entre as pessoas e dessas, organizadas com a realidade, defendidas por Paulo Freire, é a base fundante da proposta pedagógica do MST, pois para o Movimento, fazer uma ocupação ou construir uma escola são atividades de igual importância.
Sair de inóspitos recantos, de acampamentos e assentamentos, para construir, com trabalho voluntário, a Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema, no Estado de São Paulo, para, depois do espaço preparado, participar dos cursos de formação de militantes, é a dinamização do mundo, agora sendo criado e recriado pelo fazer das novas relações brotadas da afirmação da auto-estima. É o valor da solidariedade elevando o ser humano a uma nova categoria, a de sujeito do velho mundo, só que lido e interpretado com os olhos do novo sonho.
Assim estar com o mundo é querê-lo e desejá-lo. Os olhos que viam e descreviam, agora sentem que, ao ler o mundo, pulavam pedaços na leitura, porque não entendiam a totalidade da mensagem oferecida pelas contradições da realidade. Ser militante é ler o mundo por inteiro. É relacionar-se com ele através da economia, da política, da ideologia, da cultura, da arte etc.
O fio que liga os passos desse conhecimento é o tema gerador, que aparece com facilidade, como se viesse ao encontro no caminho que se vai a pé. A diferença é que, quanto mais tempo se anda na militância, sem abandonar os temas iniciais, os que aparecem são cada vez mais complexos e surpreendentes. Ou seja, se o primeiro tema motivador da discussão e do aprendizado era latifúndio, com espaço determinado, agora é imperialismo, espaço mundial, que tem a cara curtida pela guerra. Lê-lo, significa interpretá-lo, nunca temê-lo.
Aprendemos com Paulo Freire e na luta que a leitura crítica do mundo amplia o próprio mundo. E ao lê-lo conscientemente, evita-se cair em enganos e cometer desatinos.
A prática política e a democrática
Nos princípios organizativos extraídos da experiência da luta de classes na história, a democracia e a participação possuem grande importância. Paulo Freire não deixou de percebê-las e recomendá-las. Para ele, o sectarismo além de ser uma doença é um ato de desamor. “O povo não conta nem pesa para o sectário, a não ser como suporte para seus fins…”.[5]
Não seria possível organizar um movimento social impondo idéias e desmerecendo as idéias amigas. Um movimento social é filho da solidariedade política da sociedade. Esquecer desse detalhe é isolar-se e provocar a própria derrota. Um movimento social é uma obra coletiva, tanto dos que diretamente participam quanto daqueles que admiram a sua construção. A leitura favorável dos fatos cria as circunstâncias para os passos seguintes. O olhar amigo é sempre uma trincheira de autodefesa.
É esse sentido que se pode extrair das palavras de Paulo Freire, que a força jamais deve desconsiderar a inteligência. Em oposição ao sectário, pôs o radical. Enquanto o primeiro se coloca como o único fazedor da história, o radical “rejeita o ativismo e submete sempre a sua ação à reflexão” [6], por isso não detém nem antecipa a história. O sectário afasta, não permite aproximação e desconsidera a ajuda. Por isso, “nada cria porque não ama”.
Estuda, mas nada aprende. Fazer política é um exercício afetivo. A criatividade depende da afetividade e do respeito. A raiva e a arrogância só podem servir aos inimigos, pois ambas são forças que nos destroem por dentro.
O sectarismo pode se manifestar em qualquer aspecto da convivência social e política. Perceber os seus aspectos é conter a tempo a desarmonia interna.
Nesse sentido, aprendemos que todas as manifestações culturais, sejam elas artísticas ou religiosas, são idéias e práticas que, ao invés de serem discriminadas, reprimidas e proibidas, devem ser interpretadas e incentivadas. As festas e a alegria não podem ficar distantes das atividades políticas, porque a sociedade que pretendemos construir não pode ser triste e descorada.
No contexto da luta cotidiana, a leitura correta do mundo nos permite ver que a sociedade se organiza e se divide em classes sociais, não em credos religiosos, nem tampouco em etnias e gênero. E que nos movimentos sociais, a participação é motivada pela condição e posição de classe. Mulheres e homens aparecem como sujeitos fazedores da obra da emancipação. É pela participação política que aprendemos a ler o mundo politicamente.
Na labuta do dia-a-dia, constatamos que os textos mais difíceis de serem lidos na luta social são aqueles produzidos pelos sectários, porque nos forçam a romper com sentimentos que deveriam ser preservados. A democracia, então, nada mais é do que incentivar que cada um leia o mundo com seus próprios olhos e se proponha, junto com os demais membros da classe, a transformá-lo.
Exemplo de ética revolucionária
Pensava Paulo Freire que a grande preocupação com a transformação do mundo é se ela contribui para a emancipação, para a humanização ou não. Afirmava que “mesmo que não percebamos, nossa práxis, como educadores, é para a libertação dos seres humanos, sua humanização, ou para a domesticação, sua dominação”.[7] Ele nos desafiou a segui-lo, não somente na educação, como também nas atividades políticas e nas lutas sociais. Freire nos instigou a sermos agentes da transformação.
Mas ser agente da transformação exige discernimento de que conteúdo se deve desenvolver para que as pessoas se transformem juntas e para melhor. Não deixamos de ver isso nos escritos de Paulo Freire, que não faz outra coisa a não ser declarar que todos somos capazes e que temos dentro de nós a capacidade de fazer-nos diferente do que somos. Mas, para tanto é preciso ter o cuidado para diferenciar-nos dos opressores. Não temos apenas uma separação de classes com eles mas, acima de tudo, uma profunda diferença de caráter e de comportamento com a classe burguesa. Nesse sentido, alertou-nos Freire: “É necessário que os revolucionários dêem testemunho, mais e mais, da radical diferença que os separa das forças reacionárias”. [8]
E esse testemunho é o fazer propriamente dito da libertação. Entretanto, o testemunho não se dá sem conflito, pois a ética torna-se necessária para que se possa avaliar os métodos utilizados nas relações políticas internas ou no trato com os inimigos.
É nesse contexto que se pode extrair do pensamento de Paulo Freire a importância dada à cultura. Para ele, as ações tornam-se cultura na medida em que, no fazer histórico, a realização do possível de hoje deva viabilizar para amanhã o impossível de hoje. Querer inverter ou impor a inversão dessa ordem é atentar-se contra as possibilidades históricas. O impossível de hoje terá que se tornar o possível de amanhã. É preciso trabalhar para isso, com um pé no presente e o outro procurando a base do futuro, para que os sonhos não cansem e adormeçam.
Na sua relação com o MST, Paulo Freire nunca escondeu o seu entusiasmo, por perceber que a obra da alfabetização e da formação das consciências, iniciadas por ele na década de 1950 no Nordeste do Brasil, continuava viva no cotidiano da luta por terra, escola e dignidade; e na formação política de nossa militância. Externou seu contentamento em um depoimento gravado em vídeo, em novembro de 1996, que dedicou aos educadores e educadoras do MST, ao dizer, no encerramento de sua fala: “Vivam por mim, já que não posso viver a alegria de trabalhar com crianças e adultos que, com sua luta e com sua esperança, estão conseguindo ser eles mesmos e elas mesmas”.[9]
A persistência de Paulo Freire e sua profunda crença no povo, na capacidade de organizar-se e buscar as formas da própria libertação, fez dele uma grande referência para os movimentos sociais que aprenderam, mais do que imitá-lo, a tê-lo como companheiro da formação política.
No MST, são inúmeras as homenagens prestadas a ele, seja na mudança de nomes das antigas fazendas em novos assentamentos, nos centros de formação ou em escolas de ensino fundamental. Sua obra é lida em todos os cursos de formação de educadores, do ensino médio à graduação, e nos de formação política; seu rosto aparece nos murais e pinturas feitas pelos artistas que lutam pela terra e pela emancipação de toda a classe trabalhadora; seus ensinamentos aparecem nas palavras de ordem, nas místicas e nas músicas feitas pelos educandos da terra de todos os cantos do Brasil.
Não é, mas poderia ser de Paulo Freire, a célebre frase “Proletários de todo o mundo, uni-vos”, pois esse era o seu sonho, ainda vibrante por todos os países por onde militou e ensinou.
Por toda a sua trajetória histórica e política é que para os educadores e educadoras do povo e movimentos sociais Paulo Freire vive como pedagogo, mas acima de tudo como militante da esperança e da liberdade.
Texto publicado originalmente na Cartilha Paulo Freire Vive! Hoje, 10 anos depois… [clique aqui e baixe]
* Membro da coordenação nacional do MST.
1.FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 41.ed. São Paulo: Cortez, 2001
2. FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1982.
3. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Centauro, 2002, pág. 108.
4.FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 15. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1983, pág. 43.
5.Ibid, pág. 52.
6.Ibid, pág. 50.
7. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 41.ed. São Paulo: Cortez, 2001, pág. 69.
8. FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1982, pág. 79.
9. Paulo Freire em MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Paulo Freire: um educador do povo. São Paulo: Associação Nacional de Cooperativa