Crescimento chinês, exploração chinesa: duas faces do etanol
André Barrocal
Agência Carta Maior
A produção de álcool combustível no Brasil vai crescer 14% e atingir a marca histórica de 20 bilhões de litros na safra 2007/2008. O plantio de cana avançará 11% e também será recorde. Os números divulgados pelo ministério da Agricultura na última quinta-feira (31) mostram que, graças ao aumento do consumo de etanol no Brasil e no mundo, por razões ambientais ou econômicas, o setor canavieiro vive um momento “chinês”, expressão que virou sinônimo de altos índices de expansão.
Mas não são só os negócios canavieiros que merecem o carimbo. Os números grandiosos escondem – quando não dependem de – uma “chinesa” exploração dos trabalhadores. Como no país asiático, que deve muito de sua fama de competitivo e seu elevado crescimento a salários baixos e desproteção da mão-de-obra, os canavieiros brasileiros submetem os cortadores de cana a condições desumanas, como se viu, por coincidência também na quinta-feira, durante uma audiência pública na Comissão de Direitos Humanos do Senado.
Segundo sindicalistas, fiscais e procuradores do trabalho, as jornadas dos cortadores são muito longas, enfrentadas sem direito a descanso, sem água mesmo sob sol forte, sem equipamento adequado de segurança. A imposição de pesadas cotas de corte leva os trabalhadores a um esforço superior ao que o corpo suporta, causando lesão por esforço repetitivo (LER) e distúrbio osteomuscular relacionado ao trabalho (DORT).
Em São Paulo, Estado campeão na produção de cana, cada trabalhador corta em média 10 toneladas por dia, em troca de R$ 24. Para dar conta do serviço, percorre 9 km a pé, desfere 72 mil golpes de facão, faz 36 mil flexões de perna e carrega 800 montes de 15kg de cana, de acordo com estudo da Universidade Federal de São Carlos (UFScar).
No Mato Grosso, o Ministério Público do Trabalho (MPT) já flagrou fazenda cobrando 30 toneladas dos cortadores. “É difícil imaginar o que é isso. E é tudo feito com exposição a intempéries, jornadas extensas, geralmente sem pausas, sem reposição de água, sem abrigos”, disse o procurador Alessandro Miranda, coordenador nacional de defesa do meio ambiente do trabalho do MPT.
“O que se exige do cortador de cana é digno de um atleta, mas sem o mesmo cuidado, o mesmo preparo, o mesmo descanso”, afirmou Valdiney Arruda, vice-presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait).
Acidentes e mortes
As condições de trabalho dos cortadores são propícias para acidentes não raro fatais. De cada 100 acidentes com gente que tem carteira assinada, cinco ocorrem no setor sucro-alcooleiro. De 2002 a 2005, foram 83 mil casos. No período, houve 312 mortes no setor. “No Brasil, está diminuindo a taxa de mortalidade dos trabalhadores, mas neste setor há um aumento significativo”, disse Remígio Todeschini, presidente da Fundacentro, órgão do Ministério do Trabalho responsável por estudos na área de segurança e saúde no trabalho.
Para melhorar a vida dos cortadores, Todeschini defende que se reforce a aplicação de uma norma do ministério (NR 31) que impõe regras de segurança de trabalho à agricultura. E a redução da jornada para seis horas. São duas idéias polêmicas. Os fazendeiros rejeitam a primeira, e os trabalhadores têm medo da segunda.
“A NR 31 é a norma mais exigente do mundo, queremos que ela seja mais amena”, disse Clovis Veloso de Queiroz Neto, técnico da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). A aplicação da norma também esbarra na insuficiência de fiscais do trabalho. São pouco mais de 3 mil, menos da metade do que a Organização Mundial do Trabalho (OIT) recomenda para o Brasil (7 mil).
Os trabalhadores, por sua vez, receiam a diminuição da jornada porque pode provocar queda de renda, uma vez que existem cotas de produção. Seria necessário um improvável tabelamento salarial. Ou, o que também parece improvável, uma instantânea conscientização social por parte dos fazendeiros de que lucros não deveriam nascer da exploração.
“Não se conhece usineiro pobre, só trabalhador miserável”, afirmou o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Manoel José dos Santos. E completou: “Etanol produzido à base de profunda exploração, é uma energia limpa? Não queremos um combustível limpo simplesmente para os carburadores, mas também para os trabalhadores.”
Arrocho salarial
A tese de que a exploração dos trabalhadores sustenta lucros dos patrões canavieiros tem o endosso de dados do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
Nos últimos 12 anos, o salário mínimo aumentou 280%, mas o valor pago pela tonelada de cana cortada subiu bem menos, 118%. O custo de produção do álcool no Brasil é a metade do que se vê em países concorrentes como Índia e Tailândia. “O Brasil é um país competitivo porque tem um baixo custo de produção e isso tem relação não só com a tecnologia que o país domina, mas também o baixo salário do trabalhador”, disse o supervisor técnico do Dieese, José Silvestre Prado de Oliveira.
Mais identificado com o lado patronal do setor rural, o Ministério da Agricultura reconhece o arrocho. “O salário do cortador de cana é maior do que em outras áreas rurais, mas tinha de ser melhor”, afirmou Alexandre Betinardi Strapasson, coordenador-geral de açúcar e álcool do Ministério.
Apesar disso, Strapasson acredita que não se deve satanizar o setor sucro-alcooleiro, mas sim resolver os problemas por meio de uma agenda positiva. Apostar no setor, disse ele, vale à pena pelo impacto ambiental positivo do etanol como combustível e pela geração de empregos – a atividade emprega um milhão de brasileiros. Para ele, aos poucos haverá um “processo de amadurecimento empresarial” que mudará as relações capital-trabalho no setor. Mas fica a dúvida: quantas mortes ainda vão necessárias para que haja “amadurecimento empresarial”?