Novo capitalismo financeiro

Novo capitalismo financeiro provoca revolução global

Por Martin Wolf, Financial Times – 28/07/2007

É o capitalismo, e não o comunismo, o gerador do que o comunista Leon Trotsky denominou de “revolução permanente”. É o único sistema econômico para o qual o epíteto é verdadeiro. “Destruição criativa” foi como Joseph Schumpeter qualificou o processo. Agora, após o colapso de seu adversário, emerge outro período revolucionário. O capitalismo está novamente em mutação.

Grande parte do cenário institucional de duas décadas atrás-elites empresariais nacionais independentes umas das outras, controle gerencial estável sobre as companhias e relacionamentos de longo prazo com instituições financeiras – está desaparecendo da história econômica. O que temos, em vez disso, é o triunfo do mundial sobre o nacional, do especulador sobre o administrador e do financista sobre o produtor. Estamos testemunhando a transformação do capitalismo gerencial de meados do Século XX num capitalismo financeiro mundial.

Acima de tudo, o setor financeiro, acorrentado após a depressão da década de 30, está novamente livre de seus grilhões. Muitos dos novos fenômenos foram irradiados dos EUA. Mas são cada vez mais mundiais. Com eles, vêm não apenas novas atividades econômicas e novas riquezas, mas também um novo cenário social e político.

Em primeiro lugar, o volume de recursos financeiros explodiu. Segundo o McKinsey Global Institute, a proporção de ativos financeiros mundiais em relação à produção anual disparou de 109%, em 1980, para 316% em 2005. Em 2005, o estoque mundial de ativos financeiros principais totalizou US$140 trilhões (veja tabela).

Esse crescimento na movimentação financeira foi particularmente acentuado na zona do euro: a relação entre ativos financeiros e Produto Interno Bruto (PIB) na região deu um salto de 180%, em 1995, para 303% em 2005. No mesmo período, a taxa cresceu de 278% para 359%, no Reino Unido, e de 303% para 405%, nos EUA.

Em segundo lugar, o mundo financeiro tornou-se bem mais centrado em transações. Em 1980, os depósitos bancários constituíam 42% de todos os títulos financeiros. Em 2005, o percentual havia caído para 27%. Os mercados de capital executam cada vez mais as funções de intermediação do sistema bancário. Este, por sua vez, migrou do terreno dos bancos comerciais, que concedem empréstimos de longo prazo a clientes e mantêm relacionamento duradouro com a clientela, para atividades típicas de bancos de investimentos.

Em terceiro lugar, uma série de novos produtos financeiros complexos foram derivados dos tradicionais títulos, ações, commodities e câmbio. Assim nasceram os “derivativos”, dos quais os mais conhecidos são opções, futuros e swaps. Segundo a Associação Internacional de Swaps e Derivativos, no fim de 2006 o valor de swaps de juros, swaps cambiais e opções de juros no mercado tinham atingido US$ 286 trilhões, aproximadamente seis vezes o Produto Mundial Bruto (PMB), em comparação com meros US$ 3,45 trilhões em 1990. Esses derivativos transformaram as oportunidades de gerenciamento de riscos.

Em quarto lugar, surgiram novos atores, especialmente fundos de hedge e fundos privados de investimento em participações. Estima-se que o número de fundos de hedge tenha crescido de apenas 610, em 1990, para 9.575 no primeiro trimestre de 2007, com um montante de aproximadamente US$1,6 trilhão sob sua administração.

Os fundos de hedge desempenham as funções clássicas de especuladores e arbitrador (aquele que explora desníveis entre mercados), em contraste com os tradicionais fundos com visão de longo prazo, como fundos mútuos, cujos recursos são investidos em ações ou bônus. A captação de recursos por fundos de investimento em participações atingiu níveis recordes em 2006 – a Private Equity Intelligence diz que 684 fundos captaram um total de US$ 432 bilhões.

Em quinto lugar, o novo capitalismo está cada vez mais globalizado. A soma dos ativos e passivos financeiros internacionais em poder de residentes em países de alta renda deu um salto de 50% do PIB agregado, em 1970, para 100%, em meados dos anos 1980, e para cerca de 330%, em 2004.
A globalização do capitalismo financeiro é transparente tanto em seus atores como na natureza de seus ativos. Os grandes bancos operam em nível mundial. O mesmo vem acontecendo cada vez mais com os fundos de hedge e de investimento em participações.

Em 2005, por exemplo, a América do Norte respondia por 40% dos investimentos privados mundiais em participações (uma queda, em comparação com 68% em 2000) e 52% dos recursos financeiros captados (uma queda em relação aos 69%). Por outro lado, entre 2000 e 2005, a Europa ampliou sua participação em investimentos de 17% para 43%, e os recursos financeiros captados cresceram de 17% para 38%. A participação da região Ásia-Pacifico nos fundos de investimento em participações cresceu de 6% para 11 % durante esse período.

O que explicaria o crescimento da intermediação financeira e a atividade do setor financeiro? As respostas são muito semelhantes às que explicam a globalização da atividade econômica: liberalização e progresso tecnológico.

Em meados do Século XX, o setor financeiro era extremamente regulamentado em todo o mundo. Nos EUA, a lei Glass-Steagall separou a atividade bancária comercial da atividade bancária de investimento. Quase todos os países praticavam controles rigorosos sobre a posse de moeda estrangeira por seus residentes e, assim, automaticamente, sobre a participação em ativos estrangeiros. Eram comuns limites sobre juros que os emprestadores poderiam cobrar. O mais famoso desses tetos – o “Regulamento Q”, nos EUA, que proibia o pagamento de juros sobre depósitos à vista -, estimulou o desenvolvimento do primeiro mercado financeiro estrangeiro relevante no pós-guerra: o mercado de euro-dólares em Londres.

Durante o último quarto de século, porém, quase todos esses regulamentos foram abolidos. Desapareceram as barreiras entre as atividades bancárias comerciais e de investimentos. Controles cambiais desapareceram em países de alta renda e foram substancialmente ou, com freqüência, até totalmente liberalizados também em muitas economias de mercados emergentes.

A criação do euro, em 1999, acelerou a integração dos mercados financeiros na zona do euro, segunda maior economia no mundo. Hoje, grande parte do setor financeiro está tão liberalizado quanto estava um século atrás, pouco antes da Primeira Guerra Mundial.

Não menos importante tem sido a revolução na computação e nas comunicações. Esse progresso permitiu a criação e a cotação de um mix de transações complexas, especialmente derivativos. Também permitiu a negociação, 24 horas por dia, de enormes volumes de ativos financeiros. Novos modelos de gerenciamento de risco baseados em computador têm sido empregados em todo o setor financeiro.

O setor financeiro atual é um filho particularmente vigoroso da revolução da informática. Dois desdobramentos adicionais de longo prazo ajudam a explicar o que aconteceu. O primeiro é a revolução na economia financeira, especialmente a descoberta de uma fórmula para estimar o valor das opções de ações por Myron Scholes e Fischer Black, no início da década de 70, que criou o embasamento técnico dos atuais enormes mercados de opções.

O segundo é o sucesso alcançado por bancos centrais na criação de um ambiente monetário estável para a economia mundial – e, portanto também, para o sistema financeiro mundial. O dinheiro “fiat” – criado por governos, sem relação com o padrão-ouro – funcionou bem durante um quarto de século, proporcionando a estabilidade monetária da qual sempre dependeram sistemas financeiros complexos.

Mas existe também uma explicação de mais curto prazo para o recente crescimento explosivo das finanças: a atual enxurrada da liquidez de poupança mundial. Juros baixos e o acúmulo de ativos líquidos, para o que contribuem os bancos centrais em todo o mundo, estimularam engenharia e alavancagem financeiras. Somente saberemos quanto do recente crescimento do sistema financeiro devesse a esses fenômenos de prazo relativamente curto – e quanto se deve a aspectos estruturais de mais longo prazo -, quando as condições relaxadas chegarem ao fim, como vão chegar.

Quais foram, então, as conseqüências dessa vasta expansão das atividade financeiras, grande parte delas cruzando fronteiras internacionais? Uma das conseqüências é que as famílias agora podem manter uma carteira mais ampla de ativos e podem também tomar empréstimos mais facilmente, tornando seu consumo mais constante ao longo de suas vidas. Entre 1994 e 2005, por exemplo, a dívida das famílias britânicas deram um salto de 108% do PIB para 159%. Nos EUA, os passivos dispararam de 92% para 135%. Até mesmo na conservadora Itália, o endividamento cresceu de 32% para 59% do PIB.

Analogamente, é cada vez mais fácil empresas serem adquiridas ou fundirem-se com outras. O valor total envolvido em fusões e aquisições em todo o mundo em 2006 foi US$ 3,861 trilhões, o mais alto valor já registrado, com 33.141 transações individuais. Em ano tão recente quanto 1995, o valor de fusões e aquisições era de apenas US$ 850 bilhões, com apenas 9.251 negócios fechados. Tendo em vista a enorme dimensão dos novos fundos de investimento em participações e a escala de financiamento via bônus organizado pelos grandes bancos, até mesmo as companhias maiores e mais estabelecidas são alvo potencial de aquisição e desmembramento, a menos que gozem de proteção especial.

O mercado controlador de empresas, para o qual os fundos de investimento em participações são um contribuinte ativo, ampliou substancialmente o poder de seus controladores (acionistas) sobre o poder da administração corrente.

O novo capitalismo financeiro representa o triunfo dos negociantes de ativos sobre os produtores de longo prazo. Fundos de hedge são exemplos perfeitos dos negociantes que se dedicam a especulação e arbitragem. Fundos de investimento em participações são conglomerados que negociam empresas com o objetivo de obter ganhos financeiros.

Da mesma forma, o novo sistema bancário é dominado por instituições que negociam com ativos, em vez de mantê-los por longos períodos em suas carteiras. O foco voltou-se para contratos explícitos (em vez de acordos implícitos), para contratos e acordos centrados exclusivamente em interesse financeiro, em vez de relacionamentos de longo prazo. Os denominados “contratos relacionais” deixaram de valer o papel em que não são escritos.

Estão sujeitos à solvência de novas oportunidades de lucro. Não é de surpreender, portanto, que tenham evaporado tanto as participações cruzadas do capitalismo do pós-guerra no Japão como o controle acionário proprietário dominado pelos bancos no pós-guerra alemão.

Além disso, há grande número de estrangeiros possuidores de ações – e plenamente dispostos a exercer seus direitos de controle proprietário – que não se sujeitam a laços sociais e políticos nacionais, transformando, assim, a maneira como as companhias operam: a bem-sucedida revolta de acionistas contra os planos da administração da Deutsche Bôrse (bolsa de valores alemã) de adquirir a London Stock Exchange (bolsa britânica) é um excelente exemplo. Assim, o capital financeiro global está minando a autonomia do capital nacional.

Outra conseqüência foi a emergência de dois centros financeiros internacionais dominantes: Londres e Nova York Não é acidental o fato de ambos estarem em países de língua inglesa com uma longa história de capitalismo financeiro. Não é também por acidente que Hong Kong, e não Tóquio, seja de modo geral considerada centro financeiro internacional líder na Ásia, apesar de o Japão ser o maior país credor no mundo. A herança de Hong Kong é britânica. A tradição legal e as atitudes dos países de língua inglesa parecem ser de grandes influência no desenvolvimento de centros financeiros.
Como deveríamos avaliar essa mais recente transformação do sistema capitalista?Trata-se de “algo bom?”

Argumentos sólidos podem ser arrolados a seu favor: investidores financeiros ativos identificam rapidamente bolsões de ineficiência e os atacam; ao agir assim, melhoram a eficiência do capital em todo o mundo; impõem a disciplina do mercado aos administradores responsáveis por empresas; financiam novas atividades e alocam atividades velhas e ineficientes àqueles capazes de melhor explorá-las; criam melhor capacidade mundial para lidar com riscos; aplicam seu capital onde este funcionará melhor em qualquer parte do mundo; e, nesse processo, proporcionam a cidadãos comuns a capacidade de administrar suas finanças com maior êxito.

Mas é igualmente evidente que a ascensão do novo capitalismo financeiro cria novos e enormes desafios sociais, políticos e de regulamentação. Otimistas tendem a argumentar que o novo sistema financeiro combina eficiência com estabilidade em grau sem precedentes. Bancos segurados pelo Estado não apenas assumem menos riscos do que no passado como também administram muito melhor os riscos que assumem.

Otimistas também destacam a facilidade com que o sistema financeiro mundial enfrentou o colapso do estouro da ‘bolha no mercado acionário em 2000 e os ataques terroristas em 200, em especial, a não-ocorrência de nenhuma grande colapso bancário nesses momentos. Otimistas enfatizam também diminuição na freqüência das metas crises financeiras mundiais nesta década.
Os pessimistas podem argumentar que as condições monetárias têm sido tão benignas há tanto tempo, que enormes riscos estão sendo acumulados, não identificados e não controlados, no interior do sistema.

Pessimistas também argumentam que o novo capitalismo financeiro mundial ainda não foi submetido a nenhum teste. A regulamentação e fiscalização de um sistema tão complexo e mundial é tarefa nova para as agências reguladoras, ainda predominantemente nacionais. A cooperação rnelhorou. Relatórios, como o Global Financial Stability Report, do Fundo Monetário Internacional (FMI), e seus equivalentes nacionais, fornecem úteis avaliações dos riscos. Novos grupos, especialmente o Financial Stability Forum, fundado em 1999, congregam autoridades fiscalizadoras. Mas apenas pressões severas podem testar efetivamente o sistema.

Os problemas com que se defrontam as agências reguladoras são bastante grandes. Mas estão longe de ser os únicos. A hostilidade de do ex-premiê socialista francês Lionel Jospin ao que ele denominou uma sociedade de mercado” é amplamente compartilhada. Poderosas coalizões políticas estão se formando para limitar o impacto dos novos atores e dos novos mercados. São sindicatos, administradores de empresa, políticos nacionais e centenas de milhões de pessoas comuns que se sentem ameaçadas por uma máquina de fazer lucros considerada remota e desumana – até anti-humana. Por fim, embora não menos importante, há também problemas para o próprio terreno da política.

Em todo o mundo, ocorreu uma considerável migração de renda do trabalho para o capital. Administradores de empresas, estimulados por incentivos e imunes a inibições, sentem-se no direito a ganhar múltiplas vezes o salário de seus empregados. Especuladores financeiros ganham bilhões de dólares, não durante uma vida inteira, mas num único ano.

Esse tipo de situação levanta questões políticas na maioria das sociedades. Nos EUA, o cenário parece ser tolerado. Em outros países, porém, tais desigualdades são menos toleradas. A política democrática, que confere poder à maioria, certamente reagirá contra as novas concentrações de riqueza e renda.

Muitos países continuarão resistindo ao capitalismo financeiro desenfreado. Outros admitirão seu funcionamento somente em íntima coexistência com poderosos interesses nacionais. A maioria dos países buscará maneiras de domar suas conseqüências. Todos permanecerão preocupados com a possibilidade de grave instabilidade.

Nosso admirável mundo novo capitalista tem muitas semelhanças com o do início da década de 1900. Mas, sob diversos ângulos, foi muito além. Esse mundo cria oportunidades empolgantes. Mas é também um mundo em larga medida não testado. E está criando novas elites. Essa mutação contemporânea do capitalismo tem amigos leais e inimigos ferozes.Mas ambos os lados concordam que seu surgimento é um dos acontecimentos mais importantes de nosso tempo.

*Martin Wolf é colunista-sênior de economia do “Financial Times” e foi economista do Banco Mundial (Tradução de Sergio Blum)