Livro detalha Massacre de Carajás
Por Felipe Corazza Barreto,
do Terra Magazine
No dia 17 de abril de 1996, 19 integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, foram mortos na Curva do S, trecho da rodovia PA-150, perto de Eldorado dos Carajás, no Pará. Mais de 11 anos depois, todos os policiais que participaram da ação estão impunes, apesar de o laudo do Instituto Médico Legal ter apontado que muitos dos mortos foram executados a sangue frio.
O primeiro julgamento da ação, em 1999, absolveu todos os que participaram do massacre. Os comandantes da ação, coronel Mário Colares Pantoja e major José Maria Pereira de Oliveira, chegaram a ser condenados em julgamento posterior, mas estão soltos. Oliveira apela em liberdade. Pantoja foi solto por determinação do Supremo Tribunal Federal.
Por mais de três anos, o historiador Eric Nepomuceno debruçou-se sobre as quase 20 mil páginas do inquérito policial sobre o massacre e entrevistou 32 pessoas, acumulando 54 horas de gravações. A história transformou-se no livro “O Massacre: Eldorado dos Carajás: Uma história de impunidade”, que será lançado nesta quarta-feira em São Paulo, pela editora Planeta.
Para o autor, a maior dificuldade foi apurar o silêncio dos envolvidos do lado do governo. “Evidente que o coronel Pantoja e o major Oliveira nem pensar, eu conversei com advogados deles. O governador Almir Gabriel, nem pensar”.
Um dos primeiros cuidados que Nepomuceno toma na obra é rejeitar com veemência os termos “Confronto”, “Choque” ou “Incidente” para descrever o que houve em Eldorado dos Carajás. “Aquilo foi uma carnificina brutal, um massacre que permanece impune.”
A questão da terra no Pará, pano de fundo das mortes dos 19 Sem Terra e de muitos outros, segundo estatísticas oficiais, é uma “maluquice”, diz Nepomuceno. No período entre 1971 e 2004, 772 camponeses e ativistas de direitos humanos foram mortos no Pará de forma violenta. O livro, que traz fotos inéditas de Sebastião Salgado do dia seguinte ao Massacre, é “barra-pesada”, segundo o próprio autor. Em entrevista ele dá as pistas que o levaram a essa conclusão. Leia abaixo:
Como foi apurar a história para esse livro?
A idéia desse livro começou de um jeito curioso. O Nilo Batista, aquele grande advogado criminalista lá do Rio, um dia me ligou e disse “você não quer fazer um livro sobre aquela farsa de julgamento?”. E eu me interessei e, conforme eu comecei a mexer com os advogados que foram testemunhas de acusação, que assessoraram o promotor público lá em 96, eu vi que ia precisar saber mais do massacre. Eu sabia o que qualquer brasileiro medianamente bem informado sabe. Aí eu fui pra Marabá, entrevistei muita gente… Toda a informação do livro está no processo da polícia civil…
Que são as 20 mil páginas que você leu…
Isso, e no inquérito. Aquilo ali serviu de pista. Eu também entendi rapidinho que eu não tinha idéia do que é o estado do Pará. E conforme eu fui mexendo em como é o negócio de terra no Pará, as informações vêm. Os relatórios da pastoral da terra, relatórios do Ministério do Trabalho, tá tudo ali. Eu cito alguns casos, uma ou outra família, um ou outro personagem, não dizendo que ele… ele é um exemplo…
Um exemplo do contexto do Pará…
É, eu usei os exemplos mais representativos.
E durante essa apuração você encontrou alguma resistência?
Eu encontrei resistência de quem não quis falar. Evidente que o coronel Pantoja e o major Oliveira nem pensar, eu conversei com advogados deles. O governador Almir Gabriel, nem pensar.
Você chegou a procurá-los e eles se recusaram a falar?
Eu não procurei diretamente, mas eu procurei gente próxima a eles. Algumas pessoas falaram comigo, algumas pessoas que foram assessores ou que conhecem eles. O nome dessas pessoas, evidentemente, não aparecem no livro por razões óbvias. Essas pessoas disseram “olha, nem tenta”. Um tentou sondar, eu tava em Belém do Pará, e ele falou “olha, não só não convém como… esquece”. Eu tentei, por exemplo, averiguar o negócio da Vale do Rio Doce, que é quem reservou os ônibus que levaram as tropas que fizeram o que fizeram. Aí não dá, porque na época era estatal, “nem tem esse arquivo”, “esquece”…
Despistaram…
Mas também nem precisava ouvir a Vale do Rio Doce, porque o que está tá lá, isso aí eu tirei do inquérito policial.
O fato está dado… Você usa, inclusive, a frase “nada, absolutamente nada, do que acontece de importante no estado é alheio” à Vale…
Isso aí me foi dito por um cara que foi diretor da Vale. Ele foi diretor quando era estatal e depois na transição para a privatização e depois se aposentou. A frase é textual. É claro que o nome dele não aparece.
Você, logo de cara, ataca o uso dos termos “choque”, “confronto” e “incidente”. É massacre mesmo, essa é a conclusão?
Sem a menor dúvida, sem a menor dúvida. No tempo em que eu era jornalista, eu era repórter, eu cobri guerra por muitos anos. As fotos que eu vi da necropsia, lá no IML de Marabá… aquilo ali não é resultado de confronto, nem de choque. Aquilo foi uma carnificina.
E não houve baixa do lado dos policiais…
Pois é. Teve policial ferido com pedrada… até teve policial ferido com tiro. Agora, você nunca vai saber de onde veio o tiro, porque as armas que a PM apresentou como sendo apreendidas com o pessoal do MST, o MST nega peremptoriamente. E nega dizendo mais: “nós tínhamos três revólveres e esses três revólveres ficaram no acampamento e depois no assentamento”. E nunca foram apreendidos. Eles argumentam que, sobretudo o que chamam de arma artesanal, de carabina, que é negócio de caçador pego dentro da área da Vale do Rio Doce. Um dos policiais que estava num ônibus, o cara tava no ônibus que ficou parado na estrada enquanto estava tendo o tiroteio, quando ele viu ele desceu, foi pra lá, e depois volta e continua a viagem. E esse cara disse a uma professora que estava dentro do ônibus: “aquilo lá tá um perigo porque tá todo mundo atirando em todo mundo”. Eu não tou dizendo isso, mas não é uma hipótese absurda que tenham sido balas perdidas entre eles ali. Mesmo porque as armas nunca foram periciadas…
Jamais foram periciadas?
Nunca.
Não se fez exame de balística?
Não. Porque eles saíram sem aquele negócio chamado cautela. Você, quando sai do quartel, recebe o fuzil número tal e 20 balas. Quando você volta pro quartel você devolve o fuzil e oito balas porque usou 12.
E isso é registrado?
Isto fica num livro de registro. No caso de Parauapebas não houve esse registro. Nem de saída, nem de entrada. Teoricamente, era uma cautela volante, ou seja, eu te dou a arma, você me dá um papel. Quando você me devolve a arma, eu te devolvo o papel. Que tipo de registro é esse? Então, você nunca vai saber que tipo de arma foi usado por cada soldado, quantas balas, se era arma da corporação, se era arma vinda de pistoleiro… você nunca vai saber. E, curiosamente, pela cautela de Marabá e pelo que ficou registrado em Parauapebas, tinha menos arma do que homem. Eu nunca vi você ir pra um confronto armado, violento, desarmado.
Mandar homem desarmado…
Ou com um cassetete. Então, houve uma perícia que foi descartada, porque o que adianta?
Se não há o registro…
Você mostra que foi usado um fuzil, mas como é que eu vou saber? Não teria um morto pela tua arma, mas como é que eu vou saber que tua arma foi usada? É uma pantomima.
Uma cena armada desde o começo?
Desde o começo. Os caras saíram pra matar mesmo, eu não tenho dúvida.
E os líderes do MST, o que lhe disseram?
O que mais me interessou ali foi eles terem reconhecido que não podiam supor que a reação seria tão violenta. Eles jamais puderam supor que ia sair gente atirando a torto e a direito.
Eles esperavam uma reação…
Eles esperavam que a polícia fosse lá, que tivesse porrada, prisão, porrada e prisão, o tratamento habitual das cadeias brasileiras. Eles temiam pela vida de alguns coordenadores, tanto que os coordenadores foram retirados, porque eles sabiam que eram caras procurados por fazendeiros. Eles tomaram alguma precaução para que ninguém fosse preso e aparecesse morto na cadeia. Mas eles não podiam supor que fosse acontecer o que aconteceu, porque eram duas mil e tantas pessoas, é uma maluquice. E aí tem um outro dado interessante: é curioso que nenhuma mulher e nenhuma criança tenha sido morta. Um tiroteio desse, no meio de uma multidão dessa, é muito difícil que você não matasse alguém que não queria matar. Então, a conclusão a que eles chegam é que houve uma coisa meio…
Execuções…
Dirigida mesmo. Quando eu digo que houve execução a sangue frio não é uma dedução minha. Isso aí está no laudo do perito do IML. Eu não conheço ninguém que leva dois tiros na perna, cai no chão e leva dois tiros na nuca. Isso pra mim se chama execução. Eu não entendo como é que alguém morre com golpe de foice no coração.
Mas se isso está no laudo e o julgamento aconteceu da maneira que aconteceu…
Quando eu era garoto, tinha aqueles filmes sobre o sul dos Estados Unidos em que um negro era acusado de ter olhado pra uma branca. Aí eu lembro daquela imagem do negro entrando num tribunal branco, jurado branco, um deus branco, um juiz branco, o cara já entrava condenado. Em Eldorado dos Carajás aconteceu o contrário. Os caras já entraram absolvidos. As provas interessam hoje, pra história, mas ali não teve essa, não. A tese da defesa é uma tese fantástica, e é parte do direito romano: se você não tem um culpado, você não tem culpado. E eles chegaram a essa conclusão que dos 153 que foram levados ao tribunal era impossível você individualizar a culpa de cada um. Portanto, absolve-se todos. É uma maravilha, né? É uma maluquice.
Você fala da “fúria dos grandes proprietários” contra quem não se submete ao sistema de trabalho muitas vezes escravo no campo no Pará. Há uma “caça ao insubordinado”?
Ah, com certeza. Na verdade, depois de Eldorado dos Carajás, depois do 17 de abril, as mortes continuaram, mas eu acho que se mata menos do que se mataria. Não menos do que já se matou, continua tudo igual. Mas eu tenho certeza de que seria muito pior se não fosse a repercussão que isso teve na época. O perigo é isso cair no esquecimento. Porque isso é um país tão maluco que de repente a gestante, como diz lá o Renan, vira uma prova de corrupção. Não é. Isso é uma banalidade em Brasília, acontece todo ano. A corrupção, a impunidade séria, é essa. Tem uma parte do livro em que eu conto como é o negócio de terra no Pará e é uma coisa maluca, eu nunca vi isso. Se eu escrevesse isso como romance, o editor ia me mandar suavizar um pouco, porque é caricato, é exagerado. Mas, é uma reportagem, não é um romance. É uma coisa muito doida, muito terrível. Mas, é o que é, né?
E é incrível.
E é incrível.