Risco do etanol está associado ao modelo de produção

Por Maurício Hashizume,
Repórter Brasil

A euforia que cerca a produção de biocombustíveis é vista com desconfiança pelos povos da floresta. Aos olhos de Júlio Barbosa de Aquino, do Conselho Nacional de Seringueiros (CNS), aquilo que se apresenta como uma oportunidade excepcional para o Brasil diante da demanda internacional por alternativas energéticas menos poluentes é mais uma “ameaça” ao modo de vida das populações tradicionais. “Para nós, o avanço do etanol representa um risco muito grande. Assim como a soja, que continua pressionando as fronteiras da Amazônia”.

A reação de Júlio à expansão das monoculturas expõe o lado mais frágil da proposta de consolidação de um mercado internacional do etanol, que faz brilhar os olhos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de poderosos investidores do agronegócio e de grandes pólos consumidores de energia – como Estados Unidos, Japão e União Européia. Vozes que destoam como a do seringueiro revelam que o desafio da sustentabilidade não se resume apenas ao combustível que queima nos motores dos automóveis. Começam com a regularização fundiária e dependem fundamentalmente de um novo padrão de produção que seja socialmente mais justo e ambientalmente mais equilibrado.

No último dia 30 de junho, o grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) libertou 1108 trabalhadores em situação análoga à de escravos na fazenda da Pagrisa (Pará Pastoril Agrícola S.A), em Ulianópolis (PA), única propriedade daquele estado que cultiva cana-de-açúcar para a produção de álcool combustível e açúcar. De acordo com pesquisas do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), realizadas a partir de dados do Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), monitorado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o município de Ulianópolis ficou em quinto lugar entre os que mais desmataram durante o ano de 2006 no Estado do Pará, com 165 quilômetros quadrados de área devastada. Em número de queimadas, atividade característica da cultura sucroalcooleira, Ulianópolis aparece no terceiro posto (veja quadro abaixo) entre municípios paraenses na aferição a partir do satélite NOAA-12, uma das principais referências utilizadas por pesquisadores da área. [Veja quadro abaixo]

A área de 11,6 mil hectares de plantações de cana-de-açúcar da Pagrisa é mais uma das provas de que a monocultura para produção do etanol já está instalada na Amazônia Legal. No mesmo ano de 2006, a fazenda com sede em Ulianópólis produziu 720 mil toneladas de cana, que renderam 52 milhões de litros de álcool e 106 mil sacos de açúcar. A própria Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), do Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), contabilizou um total de produção de 19 milhões de toneladas de cana-de-açúcar na Amazônia Legal, somando fazendas nos estados do Mato Grosso, de Tocantins, do Maranhão, de Amazonas e do Pará. Isso sem contar a produção da agroindústria Álcool Verde, do Acre, que já se estende por mais de 2 mil hectares ao longo da BR-317.

“É mentira que a cana-de-açúcar não se adapta ao ambiente amazônico”, salienta Sérgio Nunomura, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Ele destaca, por exemplo, a existência das plantações de cana em Itacoatiara (AM) e Presidente Figueiredo (AM). Nesse sentido, a pesquisa “Produção do etanol: uma opção competitiva para o aproveitamento de áreas alteradas no Leste do Pará”, elaborada pelo Pólo Nacional de Biocombustíveis da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq/USP) no ano passado, a pedido do governo estadual do Pará, joga mais água no moinho ao discriminar uma extensão de 9 milhões de hectares com potencial para o plantio de cana, depois de pesquisas sobre itens como clima, solo e estimativativas de custos. Para se ter uma idéia, a área plantada hoje em todo Brasil abarca cerca de 6,6 milhões de hectares.

Entre as vantagens competitivas para a exportação, a disponibilidade de uma infra-estrutura logística, a remuneração da mão-de-obra (cerca de 35% inferior à de São Paulo) e os preços mais atrativos das terras são alguns dos diferenciais favoráveis da região. A decisão de proibir o plantio de cana-de-açúcar na Amazônia foi reiterada pelo presidente Lula na Conferência Internacional de Biocombustíveis, no mês passado, realizada em Bruxelas. O anúncio provocou reações da Federação da Agricultura e Pecuária do Pará (Faepa) e do deputado federal Jader Barbalho (PMDB-PA), que enviou ofício justamente ao presidente da República, “declarando que as populações amazônicas não podem aceitar passivamente as imposições da comunidade internacional, através de organizações não-governamentais (ONGs) ambientalistas, de forma a engessar economicamente a região”, segundo informações disponibilizadas no site da Faepa pela assessoria de imprensa da entidade.

Pequenos produtores

Em contraste com a reverberação dada ao potencial para a produção do etanol nas áreas degradadas do Leste da Amazônia, o capítulo do mesmo estudo da Esalq sobre modelos de produção que integram pequenos e médios produtores, assinado por Luiz Fernando Satolo, não mereceu tanta atenção. “Durante a década de 70, em um cenário de tendências à inflação e a problemas no Balanço de Pagamentos – devido aos sucessivos choques do petróleo – foi criado o Programa Nacional do Álcool (Proálcool). Em sua origem, o programa serviu preferencialmente aos plantadores de cana-de-açúcar, aos produtores industriais e à indústria montadora de automóveis: dos quase um milhão de empregos gerados, a maioria ocorreu sob a forma subempregos – mal remunerados, sazonais e de alta periculosidade”, descreve o estudo.

O pesquisador lembra que a produção de cana – tanto para álcool como para açúcar – está ancorada em ganhos de escala. “Os pequenos produtores dificilmente entram por causa dos custos de produção e pelo tamanho de suas terras. Para competir neste mercado, é preciso muita organização social”, condiciona. De acordo com ele, a intervenção do poder público é indispensável para fortalecer o cooperativismo e outras formas organizacionais entre esses pequenos produtores e capacitá-los nos diversos estágios produtivos.

“O atendimento das demandas sociais não virá do mercado”, continua Luiz Fernando, que aposta também na certificação de produtos Fair Trade (Comércio Justo) como espaço de inserção da produção originária de pequenos produtores. Ele cita o selo social do biodiesel concedido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário como um exemplo a ser seguido e observa que, conforme o grau de adaptabilidade para cada região do país, outras variedades para a produção de biocombustíveis como o dendê e a palma também podem incentivar a criação de empregos. “Você gera um emprego por duzentos hectares de soja, um emprego por dez hectares de dendê. E tendo todos esses critérios em vista, além dos critérios tradicionais do custo-benefício, é que deveriam ser tomadas as medidas para autorizar ou não autorizar tais ou tais projetos da expansão da produção da bioenergia. E ainda entra em conta o problema da desnacionalização de um setor da economia que, bem ou mal, era 100% nacional. Hoje empresas internacionais estão comprando e instalando usinas… Onde vamos parar neste processo?”, questiona o socioeconomista Ignacy Sachs, uma das figuras mais respeitadas quando o assunto é sustentabilidade, em entrevista à Carta Maior.

“Por enquanto, o que vale é a lei do mercado. A única saída é criar uma alternativa econômica que mantenha a floresta em pé. O poder público deveria estimular alternativas econômicas sustentáveis, com vistas ao desenvolvimento regional com inclusão social, como atividades extrativistas de pequeno porte”, ressalta Sérgio Nunomura, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Essa é a essência do Programa de Aceleração ao Crescimento (PAC) Socioambiental, uma das reivindicações da Aliança dos Povos da Floresta, que reúne entidades como o CNS de Júlio Barbosa, o Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). “Existem várias possibilidades como os pescados – para consumo alimentar e ornamentais – no Amazonas, mas nenhuma delas geram escala. Ou seja, não enriquece. E todo mundo quer enriquecer”, anota, pedindo o aperfeiçoamento de instrumentos de compensação pelo mercado de carbono como o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). Se o mercado se tornar muito atrativo, essas práticas que geram renda também podem acabar provocando problemas decorrentes da concentração populacional desordenada. “As alternativas sustentáveis também têm um certo limite”.

Mudança de paradigmas

Na opinião de Marcelo Acuña Coelho, consultor do setor sucroalcooleiro e editor do blog ethanolbrasil, uma regulamentação geral do setor por parte do Estado está no cerne da superação de pelo menos quatro paradigmas distintos. Primeiro, a forma de tratamento dos cortadores de cana, defende o consultor, precisa mudar para garantir melhores condições de trabalho (Leia entrevistas: Pesquisador prega extinção do trabalho por produção e Especialista associa sucesso do etanol à pressão sobre cortador). “Eles não são tratados como deveriam ser. É preciso qualificá-los para uma produção mecanizada. Isso agrega valor para o país e para ele próprio”.

Outro paradigma que precisa ser superado, segundo Marcelo, é o ambiental. “Há um alarde exagerado principalmente na mídia, mas é verdade que existe uma ameaça ambiental indireta [por causa da expansão da cana] que precisa ser levada em consideração”, admite. O padrão logístico é outro “gargalo” apontado pelo consultor da área, para quem o preço dos produtos brasileiros acaba “encarecendo” por causa dessa deficiência. A definição de dispositivos e normas para a garantia de aproveitamento dos mercados internos e externos (como a formação de estoques estratégicos) aparece na lista de Marcelo como complemento à melhoria dos outros padrões.

Mercado

O presidente da Petrobrás, José Sérgio Gabrielli, já declarou que a estatal energética aceita uma regulamentação para o etanol, principalmente para atender as necessidade de proteção dos trabalhadores e do meio ambiente. A estatal, por meio da Transpetro, trava uma das disputas mais acirradas do setor com a União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica) em torno da construção de dutos que transportarão álcool das regiões produtoras – Interior de São Paulo, Triângulo Mineiro e pontos da Região Centro-Oeste, até os portos do litoral, passando pela Refinaria de Paulínia (Replan).

O setor sucroalcooleiro está em polvorosa. Projeções do mercado estimam que a soma de aplicações deve chegar a US$ 19 bilhões até 2012. Apenas os empréstimos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) devem chegar a R$ 10 bilhões ao longo deste mesmo período. O Banco Mundial (Bird) mantém uma reserva de US$ 997 milhões para o financiamento de projetos na área de biocombustíveis. O Banco Europeu de Investimentos (BEI), instituição financeira da União Européia (UE), também reservou € 3 bilhões para apoiar projetos que contribuam para sustentabilidade energética fora do próprio continente. Para a Única, a produção de álcool pode aumentar em 114% nos próximos cinco anos. Marcelo explica que, independentemente das negociações internacionais, ainda existe um espaço enorme a ser ocupado no próprio mercado interno. “Todo mundo quer ter um carro flex”, emenda. Os automóveis movidos tanto a gasolina como a álcool representam 83,6% das vendas de novos, mas compõem apenas 12% da frota nacional.

A produção de plástico a partir da cana-de-açúcar também atrai os tubarões do mercado. A Dow Chemical, dos EUA, maior fabricante mundial de resina de polietileno anunciou que deve dividir um investimento de US$ 2 bilhões dividido com a brasileira Crystalsev. O complexo industrial de plástico “verde”- especialistas apontam que até 70% da produção de plástico a partir do petróleo pode ser substituído pela cana – será construído a partir de 2008 e começará produzindo 350 mil toneladas ao ano de polietileno a partir de 2011. Primeiro presidente do Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (Cade), o advogado Ruy Coutinho fez um estudo recente em que o setor do etanol aparece como um dos mais suscetíveis à concentração por meio de fusões e aquisições.

Polêmica dos alimentos

Em artigo recente intitulado “Necrocombustíveis”, o escritor Frei Betto lembrou que os preços agrícolas ficarão acima da média dos últimos 10 anos. “Os grãos deverão custar de 20% a 50% mais. No Brasil, a população pagou três vezes mais pelos alimentos no primeiro semestre deste ano, se comparado ao mesmo período de 2006”, ilustra no texto. E alfineta: “Vamos alimentar carros e desnutrir pessoas. Há 800 milhões de veículos automotores no mundo. O mesmo número de pessoas sobrevive em desnutrição crônica. O que inquieta é que nenhum dos governos entusiasmados com os agrocombustíveis questiona o modelo de transporte individual, como se os lucros da indústria automobilística fossem intocáveis”. O principal economista do Fundo Monetário Internacional (FMI), Simon Johnson, também avalia que os preços dos alimentos têm subido mais que o esperado em muitos países, em parte devido à mudança na produção para o etanol.

Existem evidências de que o flagelo da fome não se dá pela falta de produção de alimentos (mas da concentração de renda que avilta o direito básico à alimentação dos pobres ao redor do mundo). Esse, aliás, tem sido o argumento do presidente Lula contra aqueles que classificam o biocombustível como ameaça ao abastecimento de gêneros alimentícios. Mas também não há como ignorar o fato de que não haverá ciclo virtuoso e ganho socioambiental real se a riqueza gerada pela febre do etanol não for distribuída.

Neste contexto, emerge a posição defendida por Ignacy Sachs, na mesma entrevista à Carta Maior. Ele sublinha a importância do conceito de “revolução duplamente verde”. “Tivemos a primeira revolução verde, que vocês [no Brasil] chamam aqui de agricultura produtivista. A produtividade aumentou muito, mas aumentou através do ganho por insumos de agrotóxicos, fertilizantes e dispêndio de capital. E, num dado momento, a gente andava dizendo que a revolução verde ajuda aqueles que não precisam ser ajudados, porque já têm aquele capital que permite entrar na produção, marginalizando os pequenos. Daí surgiu o conceito da revolução duplamente verde. Um dos grandes teóricos desta revolução é o agrônomo indiano mundialmente conhecido M. S. Swaminathan [presidente da Comissão Nacional para Segurança na Agricultura, Alimentação e Nutrição na Índia], que diz: maior produtividade, total respeito à natureza e orientada para o agricultor familiar. E o Brasil tem condições, mais do que qualquer outro do mundo, de avançar neste caminho”.