O etanol e as populações indígenas
Há duas semana, mais uma criança indígena morreu por desnutrição no Mato Grosso do Sul. Em 2005, na mesma reserva, mais de 20 crianças morreram por subnutrição. Enquanto isso, o governo ressalta que a taxa de mortalidade entre as crianças indígenas reduziu 82% de 2006 a 2007. “Efetivamente não interessa, não é um dado relevante que o governo consiga, momentaneamente, reduzir o índice de desnutrição. O que nos preocupa é que não há qualquer sinal de que se queira efetivamente encontrar uma solução para o problema”, afirmou o pesquisador Antonio Brand em entrevista.
Na conversa, Antonio fala da mortalidade infantil e do problema da fome que assola as comunidades indígenas do Mato Grosso do Sul. Fala também do problema da perda da autonomia dos índios e do evento que está organizando, intitulado Seminário Formação Jurídica e Povos Indígenas. “Com ele, pretendemos contribuir para que os índios possam ingressar, permanecer e concluir bem os cursos escolhidos dentro das universidades”, disse.
Antonio Brand é graduado em História pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande. Tem mestrado e doutorado na mesma área pela PUCRS. É professor da Universidade Católica Dom Bosco, em Campo Grande, MS, onde desenvolve a pesquisa “Território e tradição nos processos históricos dos Kaiowá-Guarani no Mato Grosso do Sul”.
Confira a entrevista, concedida ao portal IHU On-Line
Como o senhor analisa as mortes das crianças indígenas que têm ocorrido por causa da fome?
Aqui no estado, já estamos no quinto ano dessa política de fornecimento de cestas básicas como ação de combate à fome dos Kaiowá-Guarani. No entanto, como a ação do governo tem se restringido basicamente ao fornecimento de cestas básicas, a partir do momento em que há qualquer interrupção ou qualquer problema no fornecimento sistemático regular dessa política, você tem o retorno da fome. Esse é o problema. O que temos criticado e reivindicado muito é que outras ações seriam absolutamente necessárias para combater a fome. O fornecimento do programa é pensar uma política de segurança alimentar, assentada fundamentalmente no fornecimento de cestas básicas. Só que isso realmente é um absurdo quando estamos falando de povos indígenas.
Como o estado tem restringido muito o fornecimento dessas cestas básicas, temos um problema que não se resolve, ou seja, a fome irá retornar sempre, e de forma cada vez mais grave. Por essa razão, sempre temos acentuado de que sem a ampliação das terras e sem um programa de assistência técnica de oferecimento de apoio, no sentido de devolver a esses povos a sua capacidade de produzir o seu alimento, o problema da fome permanecerá. Essa, repito, é a questão. A tendência, atualmente, é que, de tempos em tempos, nós tenhamos que enfrentar essas crises que levam à morte de crianças e muito mais.
Como o senhor analisa as políticas assistenciais do governo Lula em relação aos indígenas brasileiros? O “Bolsa Família” está chegando até essas famílias?
Eu creio que todas as políticas assistenciais do governo são de caráter emergencial e sem qualquer perspectiva de se traduzirem em autonomia. São medidas que aumentam a dependência dessas populações. Nesse sentido, creio que elas não apresentam respostas ao problema. Insistentemente, os povos indígenas têm reivindicado de que, junto com as ações de emergência de combate à fome, é preciso retomar o processo de demarcação de território. E o governo Lula, infelizmente, não tem atendido a esse pedido. O governo Lula tem dado poder, respeitado e atendido às demandas das elites regionais que não querem a demarcação das terras indígenas. Então, o problema das políticas assistenciais vem apenas agravando a situação dos povos indígenas.
E, com isso, como o senhor recebe a afirmação de Lula, quando esteve em Campo Grande, dizendo que a imprensa não deve apenas denunciar, mas também destacar a taxa de 82% da redução da mortalidade das crianças guaranis?
Os órgãos públicos têm insistido muito nesses dados estatísticos em que comparam a situação atual com o ano de 2005, quando morreram não sei quantas crianças. Agora, em 2006 e 2007, há efetivamente melhoras no que se refere à diminuição da desnutrição entre os índios. O problema é que no momento em que ocorre uma interrupção, como aconteceu no início deste ano, por problemas de divergências no governo ou questões administrativas, isso se traduz imediatamente em mortes por desnutrição. Efetivamente não interessa, não é um dado relevante que o governo consiga, momentaneamente, reduzir o índice de desnutrição. O que nos preocupa é que não há qualquer sinal de que se queira efetivamente encontrar uma solução para o problema. Parece que o governo está querendo manter essas práticas, tendo em vista a satisfação das necessidades dele de uma política assistencialista. Como o sujeito que recebe a cesta básica depende totalmente dela, temos indivíduos totalmente dependentes da boa vontade do governante de plantão.
Parece que é isso que está se pensando: ter um universo de pessoas que dependam absolutamente da boa vontade de um governante, seja ele quem for. Nesse sentido, a continuidade desse assistencialismo depende do voto, ou seja, é uma massa de manobra, tendo em vista as eleições, porque não há como explicar de outra maneira a atitude do governo. O dinheiro gasto nestas políticas é elevado: não são poucos os recursos que o Governo Federal vem investindo nas populações aqui no estado. Nós precisamos reconhecer que o volume de recursos vem aumentando, mas com essa característica da qual falei. Hoje, as populações Kaiowá-Guarani estão totalmente dependentes do fornecimento de cestas básicas e do salário que recebem das usinas das usinas de açúcar e álcool. Os indígenas formam um povo que não temos o direito de reduzir a pedinte.
Como o senhor analisa, então, a questão da autonomia dos índios quanto aos seus territórios?
O grande problema, hoje, dos povos indígenas, especialmente aqui no estado de Mato Grosso do Sul, diz respeito à perda dos territórios. São povos que estão confinados. Eles têm áreas de terra absolutamente insuficientes para sua vida. Portanto, não há terra que garanta a autonomia econômica e a produção de alimentos. Há uma outra questão, muito mais grave, decorrente deste processo histórico de confinamento, que diz respeito à organização social dessas populações. Veja só: nos últimos anos, nós verificamos um aumento assustador da violência interna nessas comunidades. Levantamentos feitos pelo Cimi – Conselho Indigenista Missionário – sobre mortes violentas em comunidades indígenas dão conta de que, no Mato Grosso do Sul, a grande maioria delas decorrem de conflitos internos. Isso mostra um profundo mal-estar e, ainda, que os mecanismos internos da comunidade e sua organização social não conseguem mais dar respostas aos problemas que enfrentam.
Essa certamente é a conseqüência mais nefasta, mais grave desse processo de perda da terra, e diz respeito diretamente à questão da autonomia. Não podemos mais pensar nos povos indígenas como povos isolados. Eles são povos integrados, participam do cotidiano da sociedade, têm relações econômicas e tudo mais. O problema da autonomia econômica diz respeito fundamentalmente à possibilidade de eles decidirem seu destino e sua vida. Para isso, é fundamental a organização social de cada povo. É necessário que ele possa seguir se orientando e decidindo suas questões a partir de sua forma própria de organização social.
Nesse sentido, eu entendo que o radical confinamento a que os Kaiowá-Guarani estão submetidos hoje está inviabilizando a vida e a organização social dessas populações. O sintoma mais grave desse problema é o crescimento da violência, mas também o de outros problemas, como, por exemplo, o consumo de álcool, de drogas, os suicídios, entre outros. Então, todos esses problemas são muito mais graves do que a própria falta de alimentos e, por isso, gerou-se essa crítica ao governo, que só tem buscado atender a demanda por alimentos. A situação, no entanto, é muito mais complexa.
E o que o senhor pensa da política de demarcação de terras deste governo?
Nós, na verdade, estamos mais preocupados porque o Mato Grosso do Sul tem se destacado como o estado que oferece, na opinião dos empresários e do governo, as melhores condições para a produção de álcool combustível. Então, nós já temos funcionando no estado 11 usinas de açúcar e álcool. Esse número deve saltar para algo em torno de 70 usinas em poucos anos. Em conseqüência disso, a terra, logicamente, está muito valorizada e, assim, a pressão contra a demarcação das terras indígenas tende a crescer bastante.
Então, nós, que trabalhamos com os povos indígenas, estamos profundamente preocupados com isso, pois o governo não só tem se omitido frente aos problemas, como tem sinalizado, e está oferecendo todo o apoio à indústria de açúcar e álcool, isso antes de definir a questão dos indígenas. A tendência é que esse problema se agrave. Enquanto isso, os povos indígenas estão se movimentando e pressionando cada vez mais. A esperança é que a indústria, a sociedade brasileira e setores do governo não queiram que, por muito tempo, siga uma situação que possa ser caracterizada em dois tipos de manchetes que nós encontramos hoje na imprensa regional, nacional e fora do país. Existe um tipo de manchete dando conta que o Mato Grosso do Sul é o melhor lugar para se investir na produção de açúcar, mas ao lado dela existe outra, dando conta de que os índios estão morrendo de fome.
Já há setores fora do país se movimentando, no sentido de exigir que o governo atenda minimamente às questões ligadas ao meio ambiente e aos povos indígenas. Há outros setores da sociedade civil, e até de fora do País, que certamente se sensibilizam com essas questões, diferentemente do Governo Federal. Eles vêm se posicionando favoravelmente às demandas indígenas, porque não podemos esquecer com quem estamos lidando, olhando o volume de terra e a riqueza que está sendo produzida. Se levarmos em conta os enormes investimentos que estão sendo feitos neste momento, tendo em vista a expansão sucroalcooleira e a regularização das terras indígenas, saberemos o quanto isso representa um quantidade de recursos mínima e que não há qualquer argumento razoável para que não se faça essa demarcação, essa ampliação territorial.
A reivindicação dos Kaiowá-Guarani é de pequenas parcelas de seu território original que, em absoluto, inviabilizam o desenvolvimento regional. Os tecnocratas do governo hoje parecem estar mais encantados com a possibilidade de exportar álcool e esquecem dos povos indígenas. Confesso que minha percepção, atualmente, não é tão otimista, embora os povos indígenas estejam se articulando um pouco melhor, especialmente aqui no estado. Nos últimos dois anos, os índios estão buscando se capacitar melhor, buscando acesso às universidades com muita determinação. Nós temos hoje, no estado, um número já bem elevado de acadêmicos índios e podemos destacar como esses acadêmicos já vêm com uma preocupação clara de retorno às suas comunidades. Há sinais, demandas, posicionamentos, por parte dos povos indígenas, que eu creio que sejam extremamente significativos e que sempre abrem um caminho em termos de soluções.
Um dilema que tem preocupado os indígenas são as coincidências entre terras indígenas e unidades de conservação…
Mato Grosso do Sul tem uma área que está bastante preservada: a região do Pantanal. Os Kaiowá-Guarani ocupam a região sul do estado, que é a parte em que, desde o início da colonização, se estruturou a agricultura mais moderna. É uma região extremamente propícia à agricultura e onde os recursos naturais foram completamente destruídos. Nela, inclusive, não há unidades de conservação preservadas. Até hoje, isso é um dado muito interessante: as regiões onde ainda se conserva a maior biodiversidade são, efetivamente, aqueles que compreendem as terras indígenas. Mesmo que tenhamos hoje uma população intensa nesses espaços reservados aos povos indígenas, é neles que encontramos uma maior diversidade ambiental ainda. Novamente, vemos aí a necessidade de demarcação de terras, como uma estratégia de buscar preservar a biodiversidade. O fortalecimento das culturas em extinçao que temos no estado é um fator que favorece também a biodiversidade. Porque, sob a ótica do agronegócio, o meio ambiente está perdido, mas se hoje há restos ambientais, neles estão os povos indígenas.
E qual é a relação que você faz entre a produção de etanol e os povos indígenas?
Poucas áreas têm espaço para plantar cana. Mas, certamente, essa será a proposta naquelas poucas áreas indígenas onde há certa disponibilidade de terras. É difícil você se posicionar contra isso, porque os povos indígenas estão numa situação em que não há qualquer alternativa. Então, o plantio de cana-de-açúcar, mesmo nos restos de suas terras, será algo bastante certo e difícil de ser questionado, no contexto em que as coisas estão agora. Porque, como já falei, a única sinalização que o governo tem dado aos povos indígenas, nos últimos anos, é no sentido de fornecer esse tipo de programa. Agora, ao introduzir nas aldeias o eventual plantio da cana-de-açúcar, já sabemos todos, inclusive o Governo Federal, que isso trará problemas, pois irá comprometer a biodiversidade dentro dessas áreas.
Já se descobriu os motivos pelos quais uma mulher e um líder indígena foram assassinados na região de Dourados neste anos? Qual é o significado dessas mortes para o povo indígena do Mato Grosso do Sul?
A mulher morreu em janeiro e o homem mais recentemente. No Brasil, nós temos duas justiças: se o agressor é uma pessoa pobre, ele vai preso sob todos os rigores da lei; se o agressor é um não-índio, uma pessoa com poder, um grande proprietário, nada acontece. Então, nós tivemos alguns casos aqui onde os índios aparecem como agressores, e então os rigores da lei se fazem sentir de toda maneira. Por sua vez, nenhuma pessoa dita poderosa, pelo que sei, está presa. Os únicos que estão presos ainda são as lideranças indígenas da comunidade, acusadas de estarem roubando um trator. Mas os que mataram não estão presos. Normalmente, o que nós verificamos é que matar um índio ainda segue como um crime de menor importância.
A polícia em área indígena precisa de preparo diferenciado?
Teoricamente, é a Polícia Federal que deve dar conta das questões ligadas aos povos indígenas, segundo a Constituição. Mas, quando envolve os crimes comuns, a Polícia Civil não tem preparo nenhum. Então, há muitos problemas porque eles vêm marcados por um forte preconceito. O maior deles é que as relações entre os povos indígenas e não-indígenas nessa região são perpassadas historicamente pelo conflito da terra.
Como o senhor analisa os programas de permanência para os estudantes indígenas nas universidades?
Nós estamos muito engajados em projetos dessa linha. Eu penso que é uma demanda das comunidades. Agora, de novo, só isso não será solução. Nós sabemos que hoje não basta a universidade garantir muita coisa em termos de “espaço ao sol”. Se o acesso à universidade significar que não se precisa demarcar terras, à medida que os índios vão disputar o mercado de trabalho, pouca coisa será alterada. O acesso deve significar a vontade de eles construírem melhores condições de vida e de recuperarem a sua autonomia.
Na prática, muitos projetos já se orientam nesse sentido. Outros não. Na nossa equipe, estamos muitos engajados em diversos projetos desse tipo. Essa é uma perspectiva importante enquanto estiver articulada com o esforço das populações indígenas. O acesso às universidades por parte dos indígenas não é um projeto individual de um ou outro deles em busca de um emprego.
O que se pretende com o Seminário Formação Jurídica e Povos Indígenas, que o senhor está coordenando?
Esse curso tem a duração de um ano, com mais de 300 horas de atividade. O programa está dentro de um projeto mais amplo, que se denomina Rede de Saberes. O Rede de Saberes é um programa bastante amplo, desenvolvido com a Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, que tem como meta apoiar a permanência de indígenas nas universidades. Ele faz parte de um conjunto maior de ações direcionadas para os acadêmicos índios. Com ele, pretendemos contribuir para que os índios possam ingressar, permanecer e concluir bem os cursos escolhidos dentro das universidades.
Esse projeto específico de estudo do direito indigenista tem como objetivo oferecer aos acadêmicos índios que pretendem formar-se advogados nas diversas instituições de ensino superior do estado uma informação sobre uma área do direito que normalmente os cursos formais ignoram, que é o direito indígena. O evento também tem como objetivo suprir uma lacuna grave dos nossos cursos de direito. Ele pretende, ainda, contribuir para que esses estudantes se articulem e desenvolvam reflexões a partir da sua visão e das suas comunidades. Também para que, ao concluirem o curso superior, consigam fazer uma diferença enquanto grupo de advogados indígenas. Nós temos, no estado, 24 acadêmicos índios que estão fazendo direito. Nossa perspectiva é estender esse tipo de iniciativa para outros campos, para que eles possam retornar às suas comunidades e prestar um serviço eficaz.
O senhor tem noção de quantas lideranças indígenas são, hoje, pesquisadores e professores/as nas universidades brasileiras?
Não. Esse dado geral eu não tenho como te dizer, mas eu sei que são muito poucos. Nós temos na pós-graduação aqui do estado um índio que é doutor em agronomia e que trabalha na Embrapa. No Brasil todo, não chega a dez o número de índios que estão cursando doutorado, mas já temos um número maior de mestrandos. Aqui, na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, há três índios que concluíram mestrado em desenvolvimento local e educação, além de outros três ou quatro que estão cursando nesse momento. Então, ainda o número é muito reduzido. Essa busca pela universidade é um fenômeno muito recente, mas ela tende a crescer. No entanto, inserir os índios nas universidades da forma como elas estão organizadas hoje traz alguns problemas, pois a questão não é só o acesso e a permanência. As universidades precisam saber lidar com as lógicas indígenas e as suas formas específicas de produção de conhecimento.