O combate ao trabalho escravo
Por Frei Xavier Plassat
Chegou a um ponto crítico a queda de braços travada por expoentes da bancada ruralista visando acabar de vez com o poder de fogo da fiscalização do trabalho escravo nas terras do agronegócio. O campo escolhido é simbólico: o da produção de etanol. Poderia ter sido o da carne ou da soja – que apresentam novamente perspectivas mundiais euforizantes, ou o do carvão vegetal para a produção do ferro-gusa, também dopado por uma demanda externa explosiva.
Mas, enquanto o presidente Lula percorre continentes oferecendo contratos de fornecimento do novo maná energético, a bancada ruralista quer nos mostrar o setor sucro-alcooleiro como a vítima expiatória de uma fúria anti-brasileira conduzida por elementos irresponsáveis, descontrolados e até criminosos, do Ministério do Trabalho e seus aliados.
O alvo das críticas é a fiscalização da Usina Pagrisa, em Ulianópolis, no Pará, realizada no final de junho passado, quando 1064 cortadores da cana foram retirados por conta das condições degradantes de trabalho às quais eram submetidas. Com o apoio de lideranças paraenses e nacionais, sob o comando do senador Flexa Ribeiro, e ajudado por atitudes equivocadas de lideranças sindicais locais, foi sendo engrossado um movimento de contestação com objetivo evidente. Por novos meios, trata-se de alcançar o que a (vetada) “Emenda 3” não conseguiu viabilizar, meses atrás: o fim da atuação eficiente do grupo móvel de fiscalização do trabalho escravo. Para tal, torna-se necessário fazer do grupo móvel o vilão de uma farsa onde o produtor rural, provedor de empregos e de divisas, assume o papel do herói injustiçado.
Como relatou Leonardo Sakamoto, “a Petrobras e a Ipiranga, entre outras distribuidoras de combustíveis signatárias do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, afirmaram que estão deixando de comercializar com a empresa até que seja regularizada sua situação trabalhista. E aí está a provável razão para o desespero dos proprietários da usina e de seus representantes políticos no Congresso”.
Ilustração desse desespero são as sucessivas tentativas empreendidas para detonar a fiscalização do Ministério do Trabalho: pressões diretas sobre os integrantes do grupo móvel, na própria Pagrisa, no próprio dia da fiscalização, visando paralisá-la; audiência conturbada, em seguida, no Gabinete do Ministro do Trabalho, com ataques virulentos contra a Dra. Ruth Vilela, Secretária da Fiscalização do MTE; aprovação de requerimentos no Senado organizando a visita in loco de uma comissão de senadores – visita realizada neste último dia 20/09 – e programação de uma audiência, a pedido da senadora Kátia Abreu, para inquirir o coordenador da operação de fiscalização na Pagrisa, Humberto Célio, intimado a comparecer sozinho em meio a “leões”, todos declaradamente hostis ao princípio mesmo da fiscalização.
É bom que se diga que o Ministro do Trabalho, Carlos Lupi, defendeu abertamente a operação de fiscalização na Pagrisa em reunião da Conatrae, no dia 31 de julho, quando os ministérios, demais órgãos públicos e organizações da sociedade civil que compõem a Comissão divulgaram uma nota pública reafirmando o apoio às ações do grupo móvel e criticaram as pressões sobre o combate ao trabalho escravo. Diz a Nota: […] “Entre 1995 e julho de 2007, mais de 25 mil pessoas ganharam a liberdade devido à ação dessas equipes. No total, 1.789 propriedades rurais passaram por fiscalização em 568 operações em todo o território nacional.
A erradicação do trabalho escravo no Brasil não é uma política de governo, mas de Estado, na sua missão constitucional de efetivação dos direitos humanos. Mais que uma preocupação de um grupo político que está no poder, é uma aspiração de toda a sociedade brasileira. Desde sua criação, o grupo móvel, que verifica denúncias e resgata trabalhadores, é considerado o mais importante executor dessa política. É importante lembrar que suas fiscalizações obedecem à lei e são amplamente documentadas, garantindo plena oportunidade de defesa administrativa e judicial para os empregadores rurais em cujas propriedades se encontre trabalho escravo.
Sem os grupos móveis de Fiscalização, a legislação brasileira e as convenções internacionais das quais o Brasil é signatário não teriam sido aplicadas, e milhares de trabalhadores continuariam reduzidos à condição de escravos. Criticar sua atuação neste momento, com base em desinformação, não serve à imagem exemplar conquistada pelo Brasil no combate a esse crime”.
Também de acordo com a Repórter Brasil, a Coordenação Nacional do Combate ao Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho (Conaete) e a Polícia Federal endossaram o relatório da fiscalização produzido pelo grupo móvel. Por sua vez, o Ministério Público Federal no Pará ajuizou ação penal por trabalho escravo contra os proprietários da Pagrisa: são acusados de frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho (artigo 203 do Código Penal), expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente (artigo 132) e reduzir alguém a condição análoga à de escravo (artigo 149).
O ponto ao qual se chegou agora é crítico: como era de se prever, o resultado da visita senatorial ao local, dois meses e meio após o ocorrido, só podia revelar um cenário de relações trabalhistas idílicas e resultar em mais um round de deboche contra a atuação dos fiscais.
O cúmulo é o requerimento apresentado pelos senadores à Polícia Federal para instauração de inquérito contra os fiscais, visando apurar vários crimes, entre eles os de abuso de poder e falsidade ideológica. E a compreensível reação da Secretaria de Fiscalização do Trabalho a essa clara ameaça dirigida à atuação de seus funcionários: a suspensão sine die de todas as ações de fiscalização do trabalho escravo no Brasil.
A crise atual é deliberadamente provocada por setores que não pouparam esforços para descreditar e derrotar a política nacional de combate ao trabalho escravo (Adin contra a “Lista Suja” dos proprietários flagrados com escravos; bloqueio de mais de 12 anos contra a aprovação da PEC do confisco das terras onde for constatada a prática da escravidão) e que hoje confirmam seu intento de aprovar “possíveis mudanças na legislação que dispõe sobre trabalho em condições degradantes” (Kátia Abreu), ou seja: apresentar novos projetos visando enfraquecer o combate ao trabalho escravo.
O auge do enfrentamento ocorre exatamente no momento em que vários estados, também interessados em se livrar da mancha vergonhosa da escravidão moderna associada à sua principal pauta de exportação, têm anunciado planos para se juntarem à política federal de combate ao trabalho escravo e, com ela, somar forças, casos de Maranhão, Tocantins, Bahia, Pará, Piauí e até Mato Grosso.
Com uma média anual de mais de 100 estabelecimentos denunciados por trabalho escravo e mais de 10.000 trabalhadores libertados da escravidão desde 1995 (sendo 7.000 nos últimos 5 anos: um terço do total nacional), o estado do Pará, como bem reconhece seu atual governo, deveria ser o primeiro a intensificar a vigilância, a prevenção e a repressão a essas práticas.
É hora de denunciar e recusar a opção enganosa imaginada pelos detratores do combate ao trabalho escravo entre produzir a contento e garantir a dignidade do trabalho. O momento atual é decisivo para a definição dos rumos a serem seguidos daqui para frente: ou, em nome dos imediatos interesses mercantis do crescimento do agronegócio, tudo passa a ser permitido e o combate à escravidão também entra na onda da “flexibilização”; ou o Brasil lança mão das oportunidades que se lhe apresentam hoje no mercado mundial para corrigir de vez as conhecidas mazelas do seu modelo de desenvolvimento, buscando compatibilizá-lo com as universais exigências de dignidade no plano do trabalho e de sustentabilidade no plano ambiental.
Artigo originalmente publicado na Agência Repórter Brasil, em 24 de setembro de 2007.