Lula: governo amigo do capital financeiro
O crescimento econômico do Brasil, embora pequeno, é conseqüência do crescimento mundial, e não mérito do governo. A opinião é da economista Leda Paulani. Ao analisar a política econômica atual, a pesquisadora afirma que o PAC nada mais é do que marketing político, que não garantirá um crescimento sustentável. Sobre o modelo de crescimento econômico, que não demonstra preocupações com o meio ambiente tampouco com os trabalhadores, ela diz que ele é contraditório e trará dificuldades para os próximos governos.
Leda Paulani é doutora em Teoria Econômica pelo Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, ela é docente da mesma universidade e presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política.
Leia a entrevista publicada pelo portal IHU On-Line
O Brasil tem conseguido recuperar a trajetória de crescimento que teve entre 1930 e 1980? O Lula tem conseguido melhorar a economia do país?
Leda Paulani – Com relação à trajetória de crescimento, isso depende muito do que está acontecendo com a economia mundial. A economia brasileira não é uma das maiores do mundo, mas, de qualquer maneira, não é tão pequena que não seja influenciada pelas questões que estão acontecendo no contexto mundial. Então, esse tipo de análise fica mais correto quando a gente compara a performance de uma determinada economia com o que está acontecendo no resto do mundo. O professor Reinaldo Gonçalves, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem trabalhado nessa direção.
Eu diria que a tendência dada ao crescimento explosivo da economia mundial é de que cresçamos mais do que já crescemos até agora. Mas isso não quer dizer que nós tenhamos retomado o processo de crescimento.
Por que não?
Leda Paulani – Em primeiro lugar, estamos crescendo porque o mundo inteiro está crescendo: é uma conseqüência do que está acontecendo na economia mundial. Assim, não se trata de algo que foi deliberadamente pensado e planejado pela nação brasileira. No nosso caso, particularmente, temos uma economia beneficiada, porque nós exportamos os bens que hoje estão com os preços em alta. E isso nos beneficiou do ponto de vista do equilíbrio externo.
A economia comandada por Lula
É muito complicado dizer até que ponto o governo Lula está efetivamente melhorando a economia do País, em termos absolutos. O que é necessário considerar, é que o Governo Lula foi muito sortudo se comparado com o governo Fernando Henrique Cardoso.
Não estou defendendo o Fernando Henrique, mas a questão é que esse período de 1995 até 2002 foi bastante conturbado na economia mundial. Na época, ocorreram cinco ou seis crises financeiras cavalares, e a economia norte-americana também passou por várias crises na bolsa de valores. O Brasil sofreu todos os reveses desse cenário conturbado da economia mundial, que começou a serenar e ficar mais tranqüila, retomando um crescimento forte que não tinha há 30 anos, justamente a partir de 2002. Quer dizer, o Fernando Henrique governou num período bastante crítico. E o Lula, ao contrário, passou a governar não só num período de “céu de brigadeiro”, em que não havia nenhuma nuvem no horizonte, mas num período de cinco anos, em que a economia mundial estava muito serena e crescente, impulsionada pela China e pela própria economia norte-americana. Então, isso criou um cenário favorável a uma economia como a brasileira. As complicações só começaram nos últimos meses com a ameaça do setor imobiliário dos Estados Unidos. Assim, quando se pensa em tudo que o Lula fez ou deixou de fazer, é necessário levar em consideração esse contexto no qual a economia brasileira está se movendo.
A proposta do PAC é suficiente para o crescimento econômico? Em que medida o programa ajudará no desenvolvimento do país?
Leda Paulani – O PAC é muito mais um marketing político do governo do que um programa para auxiliar no crescimento. Afirmo isso porque, em primeiro lugar, todas essas ações que estão dentro do PAC já existiam antes, só não estavam reunidas sob o mesmo nome. Em segundo lugar, nas áreas de infra-estrutura, os recursos são muito pequenos comparativamente ao que deveria existir. Então, não dá para comparar o PAC com o Plano de Metas, de Juscelino , por exemplo, pois o programa está muito longe de ter uma dimensão como esta.
Eu até escrevi um artigo sobre essa discussão, avaliando a declaração da Ministra Dilma Rousseff, que disse que o programa injetava dinheiro público direto na veia. Ela quis dizer que era uma injeção de demanda agregada na economia e que isso iria puxar o crescimento. Só que isso está errado, porque não importa se o dinheiro é público ou privado. Ele sempre terá o mesmo efeito. O que faz a diferença, nesse caso, é que é uma demanda direta na veia. O fato do governo se dispor a gastar vários bilhões em infra-estrutura significa um aumento direto de demanda no sistema econômico como um todo. Mas não dá para dizer que o PAC vai garantir as condições para o crescimento sustentável posterior.
Como a senhora avalia a obsessão pelo crescimento econômico, que ultrapassa as questões ecológicas e sociais?
Leda Paulani – Esse é um dos grandes nós do problema, mas não é apenas no Brasil que isso ocorre. Essa é uma discussão mundial. De fato, um dos entraves maiores do crescimento é a questão dos recursos naturais. Por isso, o termo do desenvolvimento sustentável, hoje, tem tanto sentido. Mas o que existe é um modelo contraditório, porque, de um lado, é necessário fazer a economia crescer, porque sem o crescimento não tem como recuperar empregos. Mas, de outro lado, há uma limitação dada pela questão ecológica. Então, todo esse crescimento tem que ser feito com muito cuidado. Por isso, essa não é uma questão fácil para nenhum governo. Eu tenho a impressão que esse tipo de discussão vai ganhar uma importância cada vez maior. Assim, os próximos governos vão enfrentar esse dilema de um modo ainda mais marcado, do que o governo Lula.
No que diz respeito ao consumo e à energia brasileira, eu diria que o País ainda é privilegiado, pois nós temos o combustível mais barato para produzir energia, que é a água. Agora, para que esse diferencial que nós temos em relação a outros países se transforme numa possibilidade de crescimento mais saudável, sem problemas ecológicos, precisaria recuperar algumas funções do Estado. O discurso neoliberal acabou esterilizando um papel fundamental que o Estado tem, e que nessas circunstâncias se tornam ainda mais importantes.
Hoje em dia, sabemos que boa parte das empresas se livram dos direitos trabalhistas contratando os próprios empregados como pessoas jurídicas. Então, todo mundo vira empregado de si mesmo. De modo que a própria importância de uma atividade como a de fiscalização do Ministério do Trabalho, vai se reduzindo e aí se abre espaço para todos os tipos de exploração selvagem do trabalho. Como exemplos, temos os porões de bolivianos em São Paulo, nas oficinas de jeans, e no interior, as carvoarias, por exemplo. Criou-se um contexto em que, ao invés de se valorizar o papel do Estado e a importância dos direitos do trabalho, se desvalorizou isso tudo.
O que a senhora pensa da proposta de desenvolvimento do ministro Roberto Mangabeira Unger , que afirma que o país precisa incentivar os empreendimentos da classe média e pesquisas universitárias ao invés de continuar investindo na política industrial?
Leda Paulani – Uma coisa não exclui a outra. Para mim, essa idéia é simpática. É possível tirar o foco do grande capital, porque ele tem todas as condições de se manter, transferindo, então, o foco para os negócios de médio e pequeno porte. Mas com isso não estará se deixando de fazer política industrial, porque é possível, mesmo com o foco nesse capital médio e pequeno, privilegiar alguns setores em detrimento de outros e fazer política industrial, também com esse capital.
Com o avanço da plantação de eucaliptos, a monocultura de alguns commodities poderá se tornar um problema para o País, gerando aumento no preço dos alimentos, por exemplo? Como a senhora percebe esse processo?
Leda Paulani – Se analisarmos a história da economia brasileira, perceberemos que essa situação pode ser classificada como “um andar para trás”, pois nós já vivemos de monocultura por 400 anos. Foram mudando as culturas, mas nessa era da monocultura, começamos com o açúcar e acabamos com o café. É sempre muito arriscado apostar todas as fichas numa única coisa. Uma economia do tamanho da nossa, com um território enorme e com os recursos naturais que tem, ao optar por esse caminho, direciona o País para ser vulnerável a qualquer crise.
Até os anos 1930 do século XX, a economia brasileira viveu ao sabor do que acontecia externamente, justamente, porque era uma economia baseada na monocultura, com uma indústria muito frágil. Depois, entre 1930 a 1980, diversificou-se o setor agrícola e construiu-se o setor industrial. O Brasil é um dos poucos países da América Latina que construiu toda a matriz industrial (do carro, do aço, da energia elétrica, do petroquímico, da borracha, da telefonia). E, com isso, o País ganhou autonomia e espaço de execução de políticas. No entanto, hoje temos elementos que caracterizam a volta do País para a agricultura, pois a taxa de câmbio está super valorizada, inviabilizando alguns setores de crescer. Então, o Brasil foi caminhando no sentido contrário, no sentido da não diversificação, tanto no que diz respeito ao mercado interno quanto ao externo. Isso é muito perigoso do ponto de vista do equilíbrio externo, e pode gerar conseqüências, não só como a elevação dos preços dos alimentos, como o avanço da doença holandesa , que vai atingir o País em cheio.
Antônio Ermírio de Moraes, do grupo Votorantim, declarou na última semana que “não há o que reclamar”. Com essa frase, é possível constatar que nunca um governo ajudou e apoiou tantos os empresários como o atual?
Leda Paulani – Não sei se essa afirmação cabe a todos os empresários. Mas eu diria que o governo Lula não comprou nenhuma briga com o grande capital. Em todas as discussões, ele acabou ficando do lado deles, e fez uma política econômica que claramente beneficiou os interesses do sistema financeiro. Então, realmente, a despeito do Bolsa Família, foi um governo muito amigo do capital produtivo e financeiro.
Na década de 1960, Guy Debord dizia que vivíamos numa sociedade do espetáculo. Assim, percebe-se que a mercadoria ocupou o centro da vida social. Será possível mudar esse ciclo?
Leda Paulani – Eu diria que a mercadoria nunca foi tanto o centro da vida social como é hoje. Guy Debord teve uma premonição, pois ninguém deslumbrava, desde longe, que os rumos de capitalismo, até então controlado e interferido pelo Estado, tomaria as direções atuais.
Se analisarmos a história do capitalismo em diferentes espaços do planeta, isso é uma coisa que oscila. Em alguns momentos o Estado está muito mais presente, planejando ou interferindo, e em outros momentos ele está mais ausente. Agora, o capitalismo é uma economia de mercado. Assim, o mercado é a grande estância reguladora da produção material. Com mais ou menos intervenção do Estado, o mercado é a instância mais importante.
Guy Debord é muito pessimista. Até onde eu consigo entender, ele não vislumbra muito espaço para uma reversão. Então, trabalhos como o dele nos servem mais como um alerta do que como uma agenda de soluções.
Qual seria o projeto de desenvolvimento ideal para o crescimento econômico do país, mas que ao mesmo tempo garantisse uma distribuição de renda equilibrada entre os trabalhadores?
Leda Paulani – Dada a situação tal como ela está agora, com essa desigualdade de renda e de riqueza, já que a desigualdade de riqueza é maior que a de renda, qualquer modelo que se faça não será ideal, ou estará muito longe do ideal, porque esse não é um quadro que se reverte rapidamente. O que podemos fazer é, havendo espaço e vontade política, tomar providências para que o desenvolvimento não só aconteça, mas aconteça de um modo a reduzir essas desigualdades ao invés de aprofundá-las. Na época do governo militar, por exemplo, em que se teve um crescimento enorme, o chamado ‘milagre brasileiro’, não houve nenhuma preocupação com a questão distributiva. Então, acabou se criando uma concentração de crescimento, mas isso não significou uma redução da desigualdade, pelo contrário.
Não existem receitas prontas. Mas não é com uma política como a que fez o governo Lula que vamos conseguir mudanças. É só comparar o que se gasta com o Bolsa Família e com o pagamento de juros. Um número é dez maior que o outro. Quer dizer, com um número se beneficiam 11 milhões de famílias, 45 milhões de pessoas, e com um outro número, se beneficia um conjunto da população que está muito longe de 44 milhões. Um estudo do Marcio Pochmann, presidente do Ipea, mostra que 80% da dívida pública brasileira está na mão de 20 mil pessoas. Eu tenho certeza que esse tipo de política que o governo Lula faz é uma política que concentra cavalarmente a renda, além de contribuir para que a riqueza continue concentrada. Se ainda não se sabe o que fazer, se sabe o que não fazer, mas o governo ignorou qualquer mudança. Há algumas coisas básicas que qualquer estudante de economia do segundo ano sabe, e que poderiam ter sido evitadas no governo, e não foram.