Em defesa da humanidade

Por Ricardo Antunes*

O filósofo marxista István Mészáros é um autor referencial para tantos que lutam contra a lógica destrutiva que preside o mundo contemporâneo. Aluno e colaborador direto do filósofo húngaro G. Lukács, com quem trabalhou diretamente na Universidade de Budapeste na primeira metade dos anos 1950, tornou-se, dentre todos os antigos colaboradores de Lukács, o que mais efetivamente contribuiu para a realização de uma obra original, crítica e devastadora em relação a tantas mistificações hoje presentes.

Mészáros iniciou sua vida como operário na Hungria. Quando chegou à Universidade, destacou-se pelo brilhantismo, competência e radicalidade. Sempre calibrando a atuação na Universidade com as necessidades vitais da humanidade e a busca de sua transformação, tornou-se desde logo um espírito anticapitalista excepcional. Dotado de erudição enciclopédica, domina economia política, filosofia e teoria social como poucos. Sua obra dialoga criticamente com toda a produção relevante nesse século, navegando dos autores clássicos aos contemporâneos dotado de uma força invejável.

Uma breve passagem por sua ampla produção seria bom exemplo. Mas basta dizer que seus livros A teoria da alienação em Marx (1970), O poder da ideologia (1989) e Para além do capital – Rumo a uma teoria da transição (1995) – todos publicados pela Boitempo – apareceram em diversos países, do Norte ao Sul do mundo, incluindo a China, a Índia, o Japão, Oriente Médio, sendo inúmeras vezes reeditados.

István Mészáros é Professor Emeritus da Universidade de Sussex (Inglaterra). Trabalhou também em universidades na Escócia, Itália, Canadá, México, e sua obra ecoa em várias partes do mundo, despertando sempre crescente interesse. Seria impossível, nesta breve nota sobre sua trajetória, falar de tantas teses e proposições que marcam a empreitada de István Mészáros. Destaco, então, três teses, das mais originais em seu pensamento.

Em Para além do capital empreendeu uma crítica devastadora às engrenagens que caracterizam o sistema do capital. Desde logo o autor, fortemente inspirado em Marx, em contraste com a totalidade da literatura sobre o tema, diferencia capital e capitalismo. O primeiro antecede ao capitalismo e é a ele também posterior. O capitalismo é uma das formas de realização do capital, a forma dominante nos últimos três séculos. Mas, assim como existia capital antes do capitalismo, há capital após o capitalismo (o que o autor denomina como capital pós-capitalista), vigente na URSS e demais países do Leste Europeu, durante várias décadas do século 20. Estes países, embora pós-capitalistas, foram incapazes de romper com o domínio do capital.

Isso porque, para Mészáros, o sistema de metabolismo social do capital tem seu núcleo central formado pelo tripé capital, trabalho assalariado e Estado, três dimensões fundamentais e inter-relacionadas, sendo impossível superar o capital sem a eliminação do conjunto dos elementos que compreende esse sistema. Não basta, portanto, eliminar um ou mesmo dois dos pólos do sistema do capital, mas é preciso eliminar os seus três pólos. E essa tese tem uma força explicativa que contrasta com tudo que se escreveu até o presente sobre o desmoronamento da URSS.

Segunda tese: sendo um sistema que não tem limites para a sua expansão, o capital acaba por tornar-se incontrolável e essencialmente destrutivo. A produção e o consumo supérfluos, a destruição ambiental em escala global, o desemprego e a precarização do trabalho, ambos estruturais, para não falar da política bushiana da “guerra permanente”, são exemplares. Expansionista, destrutivo e, no limite, incontrolável, a forma dominante do sistema do capital é, então, a da crise endêmica, cumulativa, crônica e permanente, o que (re)coloca, como imperativo atual, frente ao espectro da destruição global, a alternativa socialista. Mais um claro contraste com quase tudo que conforma a mesmice do pensamento dominante.

Terceira tese: qualquer tentativa de superar esse sistema de metabolismo social que se restrinja à esfera institucional e parlamentar está fadada à derrota. Só um vasto movimento de massas, radical e extraparlamentar, pode ser capaz de destruir o sistema de domínio social do capital e sua lógica destrutiva. Os exemplos aqui são abundantes e bastaria lembrar a derrota cabal do PT e seu governo.

Muitas outras teses poderiam ser indicadas, mas o espaço aqui não permite. Fique a sugestão para que os jovens aceitem o convite para ler uma das obras mais originais, instigantes e críticas, elaboradas por um autor assumidamente de esquerda, nesse período que (quase) se parece com o tempo das trevas. Até porque, conforme o sugestivo título do novo livro de István Mészáros – O desafio e o fardo do tempo histórico – a humanidade não tem mais muito tempo pela frente…

*Ricardo Antunes é professor titular de sociologia do IFCH/Unicamp

Fonte: Artigo publicado na edição 119 da Revista Cult