Violência na Bolívia
Por Antonio Peredo Leigue*
A Assembléia Constituinte consegue reunir-se em um colégio militar, a poucos quilômetros da capital da república. Consegue aprovar a nova Constituição Política. Mas o lugar está tomado por turbas que forçam as defesas policiais. Os constituintes que participaram das sessões são obrigados a retirar-se sob proteção policial até Potosí.
Enquanto isso, a violência irrompe. Um morto, dois mortos em Sucre. O governo retira as forças policiais, procurando acalmar a situação; no entanto, a população violenta ataca diversos quartéis policiais, onde queimam veículos e escritórios. Em um dos veículos de dirigentes da oposição, detido no caminho até Sucre, encontram uma submetralhadora Uzi.
Em Santa Cruz, seus partidários utilizam bananas de dinamite em diversos locais; de noite, invadem os escritórios de uma repartição pública, quebrando vidros e destruindo móveis. O comitê cívico presidido por Branco Marinkovic declara guerra, culpando o governo pela violência por eles desatada e convoca uma assembléia para informar, a seus partidários, que não haverá paz enquanto o governo atual continue no poder.
O presidente Evo Morales, em La Paz, pede a calma de todos. Anuncia que uma investigação será feita e que se castigará os culpados. Destaca a aprovação da nova Constituição Política do Estado e assinala que a palavra final sobre ela é do povo e deverá ser expressada por meio de um referendo.
Tais são os ocorridos deste trágico final de semana de novembro de 2007. No entanto, os meios de comunicação em massa trazem outra visão:a mesma que o Comitê Cívico pro Santa Cruz, encabeçado por Marinkovic.
As mesmas faces
Em 1953, antes que se cumprisse um ano da Revolução Nacional – dirigida por um MNR que buscava mudanças na Bolívia -, os grupos reacionários começaram a provocar a violência, culpando o governo por suas sangrentas ações. Esse tipo de atitude continuou em anos seguintes, cessando somente quando o MNR desviou-se do processo de transformação.
No ano de 1959, a Revolução Cubana foi ameaçada pela mesma forma de reações, e a violência tomou conta da pérola do Caribe. Da Casa Branca, todos os presidentes norte-americanos propiciaram, financiaram, dirigiram e, muitas vezes, operaram diretamente os mais graves delitos.
Quando no Chile, em 1970, Salvador Allende assumiu a presidência, as damas da alta sociedade orquestraram manifestações que permitiram que jovens adestrados se lançassem contra a população que desejava mudanças, atacando-os com cadeiras e outros objetos. Assim foram criadas as condições para o nefasto golpe de Pinochet.
O triunfo da revolução sandinista, na Nicarágua, em 1979, foi outra experiência que sofreu com a violência financiada pela mesma fonte administrada pelo embaixador Negroponte. As “operações cobertas”, nas quais se matavam camponeses, estudantes e outros que trabalhavam por mudanças, foram constantes até que desgastaram o governo revolucionário.
Atualmente, na Venezuela, os que se opõe às mudanças mostram a mesma cara criminosa. O presidente Hugo Chávez enfrenta, quase diariamente, a sedição de uma direita pré-histórica que não se detém diante qualquer consideração. Inclusive, foi vítima de um golpe de Estado, frustrado pela rápida mobilização popular. Ainda depois de tanta grosseria e transgressão, Chávez conseguiu demonstrar, por meio de uma consulta popular, que uma maioria crescente o apoiava.
Manobras recicladas
Em todos os casos, a violência não é uma ação realizada por grupos de poder. Tem sua origem, sempre, a partir de um setor social, trabalhista, regional, étnico ou religioso que tenha alguma demanda insatisfeita. Os grupos sediciosos incentivam a reclamação, incitam dar-lhe um caráter de urgência, patrocinam e financiam a mobilização e provocam o governo, para que haja uma repressão aos grupos mobilizados. Sabem que, em todo governo popular, há uma resistência em usar a repressão. Geralmente, os comandos violentos agridem destacamentos policiais. Procuram sempre que haja um, dois ou mais mortos. E, então, criam o coro que, invariavelmente, compara os governos com as mais cruéis ditaduras.
A migração também é uma manobra provocada por planos sediciosos. Em toda a América Latina há um êxodo constante de força de trabalho, devido às condições de empobrecimento causada por grupos de poder quando manejam o governo. É relativamente fácil acelerar tal corrente migratória, vinculando-a a profissionais e empresários aos quais se facilitam opções fora do país.
A escassez de artigos de consumo e a retenção de outros servem aos mesmos propósitos. O governo é culpado por essas restrições; se há um racionamento, ainda melhor.
A inflação merece um estudo separado. Basta o exemplo da Bolívia. Entre 1985 e 2005 – vale dizer, em 20 anos -, aplicou-se no país o modelo neoliberal, cujo maior êxito segundo seus próprios mentores, foi deter a inflação. Em agosto de 1985 estabeleceram um valor de 1,90 bolivianos por dólar e, 20 anos depois, o câmbio estava em 8,20. Isso indica que houve uma desvalorização acumulada de 430%; em outros termos, a taxa anual de desvalorização do boliviano foi de 21,5%. Mas, como dizem os defensores do modelo, foi um período de estabilidade. Gritam agora, quando, este ano, os índices indicam uma valorização da moeda nacional.
Mas a inflação não se mede com a desvalorização do dólar, sustentam os ases do neoliberalismo. Vejamos, então, o preço do pão. Em agosto de 1985, fixou-se o preço da unidade de pão de 60 gramas em 6 centavos de boliviano. Vinte anos depois, o preço é de 40 centavos, o que significa um aumento de 650% ou uma inflação anual de 32,5%. Do que reclamam, quando a inflação, este ano, não chegará a 10%?
Não é necessário dizer que a mesma pratica foi utilizada em Cuba, no Chile e na Nicarágua. E quem passou dos sessenta anos pode lembrar dessa mesma manobra na Bolívia entre 1952 e 1956, não?
Esperando pela deterioração
A direita, agrupada nos comitês cívicos, e as prefeituras opositoras estão convencidas de que chegou o momento de partir para o ataque. Não escondem as suas intenções. Um prefeito chamou seus antigos camaradas militares para “salvar a democracia”, repetindo a proclamação que justificou o golpe de Pinochet no Chile. O Comitê Cívico pro Santa Cruz convocou e reiterou a desobediência civil, apoiados por seu homólogo de Sucre.
O governo do presidente Evo Morales atua com calma. Assim deve fazê-lo. Porém, calma não é sinônimo de inatividade nem de despreparo. Se o inimigo se equivoca e crê que a situação é assim, sofrerá as conseqüências. Quem não deve se equivocar são os homens e mulheres que lutam por mudanças e apostam seu bem-estar, sua estabilidade e, inclusive, sua vida no sucesso das transformações e da revolução.
Os delinqüentes que cometeram tantos desmandos nestes dias – e também em outros episódios anteriores – devem ser detidos, julgados e castigados. Não se pode alcançar a pacificação perdoando a violência. Se é necessário lembrar que essa atitude incita a criação de novos delitos, recordemos o ocorrido em San Julián no ano passado. Não deve haver uma próxima vez. A mensagem deve ser contundente. Se esperarmos que a situação se deteriore, teremos perdido o controle. O povo tem esperança no processo encabeçado pelo presidente Evo Morales. Os povos da América Latina têm esperança. Cultivam-na e admiram o processo vivido pela Bolívia. O respaldo do povo e o apoio de todos são a força com a qual nosso governo deve enfrentar a direita e vence-la.
*Antonio Peredo Leigue é senador boliviano.
Publicado originalmente pela ALAI, com o título “Bolivia: Los mil rostros de la sedición”.