Hidronegócio: privatização das águas
Por Henrique Cortez*
A recente notícia de que o governo Lula irá licitar as águas da União reacende o debate sobre uma atividade silenciosa, mas, certamente, uma das mais poderosas no mercado mundial – o hidronegócio.
Depois da concessão de rodovias e florestas, o governo Lula “pegou gosto” pela privatização. Agora, em atenção ao hidronegócio, privatizará, por concessão, as chamadas “áreas aqüícolas” em lagos, rios, açudes, reservatórios ou em pontos do litoral. Já espalhadas pelas plantações de cana-de-açúcar e de soja do país, empresas estrangeiras poderão agora explorar águas da União. De acordo com o governo, já existem escoceses, noruegueses, franceses e espanhóis interessados na abertura dos editais de licitação, tanto para reservatórios em água doce como em pontos do litoral.
Na verdade, devemos compreender o hidronegócio a partir da definição do que seja água virtual, que é o conceito utilizado para calcular a quantidade de água necessária para produzir um determinado bem, produto ou serviço.
À primeira vista associa-se o hidronegócio ao tratamento e distribuição de água, às engarrafadoras e outras atividades deste tipo, mas ele é muito mais abrangente e complexo do que isto.
A água virtual está presente em tudo que usamos e consumimos, porque é parte de todos os processos de produção, direta ou indiretamente.
Na prática, a água virtual é o produto do hidronegócio e o agronegócio é o seu principal consumidor. O aparente sucesso do agronegócio nacional também significa que somos, crescentemente, grandes exportadores de água. E isto interessa a diversos países que consideram ”sustentável” subsidiar seus agricultores, poupando escassos recursos hídricos ao importar carne e grãos de países do terceiro mundo.
Isto pode ser demonstrado em interessante artigo da engenheira Vânia Rodrigues, disponível em http://www.aesabesp.com.br/artigos_agua_virtual.htm.
A agropecuária consome 70% de toda a disponibilidade hídrica do Brasil e não paga pela água bruta que consome. Se pagasse não desperdiçaria mais de metade da água captada.
O volume de água exportado pelo agronegócio é mais do que significativo, mas a água virtual também tem peso em outros setores. No Brasil, nossa geração de energia elétrica é essencialmente hidrelétrica, o que faz a água ser componente de tudo que demanda energia elétrica. Isto é muito claro na indústria eletrointensiva (alumínio, siderurgia, ferroligas, celulose e petroquímica).
Dados do Ministério de Minas e Energia demonstram que 408 indústrias eletrointensivas consomem 28,8% de toda a energia elétrica produzida no país, o que as faz, ao mesmo tempo, massivas exportadoras de energia elétrica e água.
Vejamos um exemplo prático – metade da energia elétrica produzida pela hidrelétrica de Tucuruí é contratualmente destinada à industria de alumínio. Cerca de 41% do custo final do processamento do alumínio corresponde à energia elétrica e, no caso de Tucuruí, isto é significativo porque sua tarifa é pesadamente subsidiada.
A indústria eletrointensiva é ”competitiva” porque, como todas as exportações de bens primários de baixo valor agregado, soma mão-de-obra barata, benefícios fiscais, energia elétrica subsidiada e gigantescas quantidades de água virtual.
Enquanto isto, o hidronegócio discreta e silenciosamente trabalha pelo controle do acesso à água. O açude controlado pelo coronelismo é algo da pré-história do hidronegócio, porque era muito mais uma questão de política paroquial do que de negócio.
O semi-árido brasileiro já possui uma impressionante rede de reservatórios, açudes e adutoras, mas a maior parte da população continua sem acesso à água, majoritariamente destinada à agricultura de exportação. Este é um processo que se repete em boa parte dos países do terceiro mundo e não é uma mera coincidência.
Esta é a lógica do hidronegócio, que será cada vez mais concentrador do acesso à água, na medida em que a disponibilidade hídrica for mais escassa. Quanto menor for a disponibilidade hídrica em um país ou região, maior o valor agregado aos bens e produtos em razão do ”preço” da água virtual.
As mudanças climáticas agregam ainda mais valor e poder ao hidronegócio. Imaginem mais de 250 milhões de pessoas na África sem acesso à água, ou mais de 500 milhões na China. Possíveis guerras acontecerão, não porque a água seja um direito humano fundamental, mas pelo seu valor econômico.
A partir do controle dos reservatórios e açudes cresce a tendência de buscar, como negócio, ter o controle de toda a água disponível. Logo, quem controlar uma nascente, um manancial, também controla toda a bacia e, por conseqüência, impõe seu poder de negociação em toda a água virtual incorporada à produção da região.
Nos novos projetos de hidrelétricas já existe a concepção de que a água estocada no reservatório é um negócio em paralelo à própria geração de energia elétrica. Quanto mais degradadas estiverem as bacias hidrográficas, maior será o “valor” da água estocada nos reservatórios.
No caso do aqüífero Guarani não é diferente porque, independente de sua vasta área, ele possui poucas áreas de recarga e afloramento. E, neste sentido, ter a ”propriedade” das áreas de afloramento também equivale a ter a ”propriedade” do aqüífero.
Ao privatizar, por concessão, as chamadas “áreas aqüícolas” em lagos, rios, açudes, reservatórios ou em pontos do litoral, o governo faz uma clara opção pela água como valor econômico e não como direito humano fundamental. Ao invés de investir em dezenas de milhares de ribeirinhos e pescadores artesanais, o governo opta pela produção em escala industrial, realizada por grandes empresas.
Se não compreendermos a importância de implementar as políticas públicas de proteção aos mananciais e de democratização do acesso à água, estaremos subsidiando o poder econômico e político de quem controlar os ”estoques” de água.
Em escala global, basta destacar que, em 2030, nosso planeta estará com 8 bilhões de habitantes, o que equivale a um consumo de água 55% maior do que em 2000.
Reafirmo que a água é um bem público com valor econômico, mas, acima de tudo, é um direito humano fundamental e não uma mercadoria.
O governo Lula, ao que tudo indica, não pensa assim.
Henrique Cortez é ambientalista, coordenador do portal e do blog EcoDebate.