Entidades divulgam nota com balanço da CTNBio em 2007
No que diz respeito ao tratamento da questão dos transgênicos, a história têm insistentemente se repetido. Ainda em 2000 a Câmara dos Deputados produziu uma Proposta de Fiscalização e Controle (PFC 34/2000) dos procedimentos do Poder Executivo relacionados à liberação de plantas transgênicas no Brasil. Motivou a iniciativa o fato de a realidade demonstrar “que a lei tornava-se letra morta. Seu espírito, suas intenções, seus objetivos, restavam obnubilados pelas práticas inadequadas, pela não observância do interesse público, pelas meias-verdades, pelas formas pouco ortodoxas de decisão (…)”[1].
De lá para cá mudou a Lei de Biossegurança, mas não se concretizou a “expectativa de uma nova era na condução dessa política” criada com os trabalhos que resultaram no relatório da Proposta de Fiscalização e Controle. Nessa fase de nova Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, a Justiça Federal e o Ministério Público vêm desempenhando papel decisivo ao acatar denúncias de irregularidades da Comissão e do Executivo e exigir o cumprimento da legislação em vigor. E, apesar de a nova Lei de Biossegurança ter tentado afastar sua atuação nesta questão, também a Anvisa e o Ibama se mostraram atentos aos maus passos da CTNBio e utilizaram-se das poucas competências que lhes restaram para evitar a liberação comercial apressada e descuidada de transgênicos.
Alguns episódios da CTNBio foram marcantes este ano, entre eles a reação virulenta de seu presidente e de vários de seus membros à presença de uma representante do Ministério Público Federal nas reuniões do órgão. A presença de uma Procuradora da República nas reuniões foi comparada aos anos de chumbo da ditadura militar. Da mesma forma, a CTNBio foi contra a abertura de suas reuniões a observadores externos, medida que foi garantida pela via judicial. Os membros da Comissão que se pautam pelo princípio da precaução e pela defesa do meio ambiente e da saúde humana aplaudiram essas iniciativas.
O livre acesso às reuniões permitiu que as insatisfações dos movimentos sociais fossem transmitidas diretamente aos integrantes da CTNBio. Algumas manifestações foram realizadas durante as reuniões, como nos casos das votações dos pedidos de liberação comercial de milho e da aprovação das regras de coexistência.
A aversão aos princípios da transparência e publicidade também se fez presente quando a CTNBio, por sua maioria, votou contra a realização de uma audiência pública para discutir a liberação comercial do milho transgênico. Novamente, atendendo a ação de organizações da sociedade civil, a Justiça obrigou a Comissão a realizar o evento.
Infelizmente, a audiência foi realizada apenas “pro forma”, apenas para livrar a CTNBio do óbice imposto pela decisão judicial, sem se preocupar em garantir a efetiva discussão com a sociedade civil. A CTNBio não apresentou sua visão ou propostas sobre a liberação do milho transgênico e os pesquisadores com posições mais críticas aos transgênicos não foram selecionados como expositores. Os assuntos que deveriam ser profundamente debatidos foram superficialmente apresentados, não houve discussão sobre cada espécie de milho geneticamente modificado, com pedidos de liberação em trâmite na Comissão, havendo exposições breves de representantes das empresas proponentes e tempo exíguo para perguntas.
Também os questionamentos de mérito apresentados antes, durante e após a audiência não foram respondidos pelo presidente da CTNBio, que se limitou a soberbamente achar todos “irrelevantes” ou “inoportunos”. Novamente, as entidades buscam na Justiça seu direito de resposta, que já conta com parecer favorável do MPF.
Mesmo diante das vulnerabilidades expostas durante a audiência, da ausência de estudos suficientes de avaliação de impactos à saúde e ao meio ambiente e da inexistência de regras sobre análise de risco, coexistência e monitoramento pós-comercialização, a CTNBio, por sua maioria, liberou uma variedade de milho transgênico, da empresa Bayer. ANPA, AS-PTA, IDEC e Terra de Direitos ingressaram na Justiça com ação civil pública pedindo a anulação da decisão em razão das irregularidades do processo e da ausência de regras da CTNBio.
A Justiça determinou, como medida liminar, a suspensão da liberação do milho transgênico e também proibiu a CTNBio de autorizar qualquer outro milho transgênico, sem que antes elaborasse as normas de biossegurança necessárias. A União tentou reverter esta decisão, mas o Superior Tribunal de Justiça não acatou seus argumentos e a manteve. Porém, ainda há recurso da União contra esta decisão para ser julgado. Em debate na Ação, está o direito dos agricultores e consumidores que não querem plantar nem consumir milho transgênico.
A ausência de rigor científico da decisão desta Comissão Técnica também saltou aos olhos do Ibama e da Anvisa, que apresentaram recursos ao Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS solicitando a suspensão da decisão com base em argumentos científicos sobre risco à saúde e ao meio ambiente.
A Anvisa ainda teve outra atitude louvável. Organizou uma consulta pública (Consulta Pública 63) para discutir suas normas para a liberação comercial de alimentos transgênicos no país. O documento base colocado em discussão continha 119 questões para avaliar a segurança de uso do produto para o consumo humano. Diante da inércia da CTNBio, a Anvisa tomou esta iniciativa para proteger a saúde da população de possíveis riscos decorrentes do consumo de alimentos contendo OGM. Mais de 40 organizações da sociedade civil, movimentos sociais e parlamentares publicaram nota manifestando apoio à iniciativa desta Agência.
Quando se desligou da CTNBio, após quinze meses atuando como membro desta Comissão, a médica e pesquisadora da Fiocruz, Dra. Lia Giraldo fez um depoimento alertando que “O que vemos na prática cotidiana da CTNBio são votos pré-concebidos e uma série de artimanhas obscurantistas no sentido de considerar as questões de biossegurança como dificuldades ao avanço da biotecnologia. A razão colocada em jogo na CTNBio é a racionalidade do mercado (…)”.
Para mais uma vez tentar cumprir a decisão judicial e “livrar-se do obstáculo” a CTNBio procurou adequar-se às demandas judiciais. Editou normas de monitoramento e de coexistência sem nenhum rigor científico e em desacordo com a legislação de biossegurança, autorizando, logo em seguida, a liberação comercial de mais duas variedades de milhos transgênicos, beneficiando, dessa vez as multinacionais Monsanto e Syngenta. As entidades solicitaram a ampliação dos efeitos da liminar para essas outras variedades. A Justiça acatou o pedido reconhecendo que “mesmo para o homem médio (…)” a norma de coexistência aprovada pela maioria da CTNBio “não se mostra suficiente”.
Novamente, diante da inconsistência técnica das análises da CTNBio, Ibama e Anvisa recorreram das liberações das variedades de milho transgênico da Monsanto e da Syngenta.
Mesmo diante da suspensão de suas decisões e dos questionamentos por parte de Ibama e Anvisa, agora no final do ano a CTNBio deu demonstrações de que estaria disposta a votar em regime de urgência um pedido de importação de dois milhões de toneladas de milho transgênico da Argentina para abastecer granjas de frango e suínos. A quantidade representa cerca de 10% do montante produzido naquele país e, sabendo-se da falta de controle sobre o uso de transgênicos, sua eventual entrada no Brasil representaria uma contaminação massiva e irreversível.
Episódio semelhante ocorreu em 2000 e, por todas as irregularidades que o marcaram, esteve entre os itens analisados em detalhe e descrito no relatório final da PFC da Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias da Câmara dos Deputados.
À semelhança daquele caso, a importação atual também passaria por entidades que não possuem Certificado de Qualidade de Biossegurança e portanto não estão aptas a manipularem organismos transgênicos. Além disso, se aprovado o pedido, outras similaridades podem se repetir. Conforme relatado na PFC, em 2000 “a decisão foi açodada (…), sem embasamento em pareceres científicos (…), sem adequada normatização sobre o descarte do milho (…) e sem monitoramento da internalização das cargas pelo Ministério da Agricultura (…)”.
O conflito de interesses é outro problema sério na Comissão, que tem entre seus membros pesquisadores diretamente ligados ao desenvolvimento de transgênicos no lugar de especialistas isentos e preocupados com a avaliação de risco destes produtos. Agora em dezembro terminam o mandato de vários desses pesquisadores, que em sua maioria foram indicados pelo Ministério de Ciência e Tecnologia. Espera-se que nesse processo de renovação o MCT, que além de seus representantes nomeia outros doze acadêmicos para integrarem a CTNBio, seja mais criterioso e preocupe-se com que os indicados busquem realmente garantir a biossegurança dos OGM e não apenas suas convicções ou interesses.
O que se avalia é que a CTNBio, que deve atuar, como órgão técnico que é, para garantir a biossegurança, ancora-se na opção político-ideológica do Governo pelo agronegócio para manter-se avessa ao debate, ao contraditório, à transparência, à participação e mesmo à boa prática científica. Contudo, este ambiente não é hermético, e a atuação da sociedade civil tem encontrado em suas mobilizações, na Justiça e no Ministério Público formas de “furar o cerco” da tecnocracia e trazer para a arena pública debate tão importante sobre os rumos de nossa agricultura, alimentação, segurança e soberania alimentar, saúde e ambiente.
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[1] Trecho da apresentação do autor da PFC, deputado Fernando Ferro.
Assinam:
ANPA – Associação Nacional dos Pequenos Agricultores
AS-PTA Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa
Greenpeace
IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor
Terra de Direitos
MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
MMC – Movimento de Mulheres Camponesas
CPT – Comissão Pastoral da Terra
Via Campesina