Os sem terrinha
Por Andrea Dip
“Sem-terrinha, sim senhor, com orgulho e muito amor!” O entoar do “grito de guerra” acontece logo após a mística, uma dramatização feita por crianças do Movimento Sem Terra acampadas em Arroio dos Ratos, Rio Grande do Sul.
“Só aqui no acampamento são 130 crianças!”, diz Evandro, professor acampado que divide a tarefa de ensinar com mais seis pessoas. “Educador”, corrige. A mística é montada através de um tema gerador, que trata de assuntos atuais próprios da realidade das crianças. Não se assuste se um garotinho da altura de seus 5 anos de idade der uma verdadeira aula sobre a ALCA e a reforma agrária. “Se a ALCA é boa para alguém eu não sei, mas para a gente não é! Os americanos querem quebrar os pequenos agricultores.”
Há certamente muito o que aprender com os educandos “sem terrinha”. O que impressiona à primeira vista é o asseio e a organização das escolas itinerantes (chamadas assim porque mudam junto com o acampamento feito de barracos de lona preta) e das escolas dos assentamentos (estabelecidas em terras já conquistadas). Não se vêem um papel no chão, um rabisco nas paredes. As crianças do Movimento são incentivadas a tratar a escola como extensão de sua casa – elas sabem o valor da escola –, limpam, embelezam com flores e cartazes, plantam sua merenda.
Juarez Cornelli, assentado orientador da escola em Nova Ramada, diz que dessa forma as crianças valorizam e facilitam o trabalho – muitas vezes voluntário – do pessoal da limpeza.
A idéia de fazer essa reportagem surgiu quando eu pesquisava a respeito do ensino no Brasil. Já meio ressabiada, desesperançosa com tantos números desanimadores, descobri a escola de Nova Ramada, Rio Grande do Sul. Gerida pelo Movimento Sem Terra, essa escola seria um modelo em educação, onde as crianças aprendem até a calcular hectares, cuidar da terra etc. Contrastando com conjuntura atual do ensino, essa iniciativa merecia ser divulgada.
Quando chegamos no primeiro acampamento, foi inevitável um certo receio (de ambas as partes). Nosso, por não sabermos de que forma seríamos recebidos, dos acampados por não conhecerem nossas intenções.
Mas, à medida que íamos sendo apresentados – “esse é o pessoal da revista Caros Amigos, estão fazendo uma reportagem sobre a nossa gurizada” –, o olhar fixo, apreensivo, dava lugar a um sorriso acolhedor, aprovando nossa visita, logo nos apresentando o lugar.
“Chega mais, as crianças querem mostrar uma mística a vocês.” E a criançada, curiosa, começava a fuçar no equipamento, fazer pose para a câmara, e explicar como era a vida ali. Após um quarto de hora, já era impossível cotejar que aquele seria um suposto “campo de batalha”. Há parques de diversões montados com pneus e troncos de eucalipto feitos pelos próprios acampados – que o fazem mesmo sabendo que a estadia é provisória e logo poderão partir para outras terras.
O acampamento do Arroio dos Ratos, assim como o “Seguindo o Sonho de Rose” e tantos outros, está montado na beira da estrada, mas para as crianças isso não faz muita diferença. Há brincadeiras e tarefas comunitárias, sempre respeitando a faixa etária da criançada.
Em Júlio de Castilhos está a primeira escola conquistada pelo movimento no Rio Grande do Sul e a pioneira da “pedagogia do Movimento”. Não existem as tradicionais séries que dividem os anos letivos, mas o que eles chamam de ciclos. “Cada idade tem seu momento, pretendemos trabalhar isso”, diz Bernadete Schwaab, uma das idealizadoras da pedagogia do MST e coordenadora da escola. Até chegar ao que seria a 8a série, os ciclos se dividem em infância, pré-adolescência e adolescência.
Há também o “Encontro Sem Terrinha”, quando as crianças do Brasil se unem para trocar experiências, aprender e – nada mais justo – brincar.
Enquanto estabelecimentos de ensino da rede pública, as escolas são supridas pelo governo do Estado, que manda cadeiras, mesas e uma verba mensal. Mas logo se vê a diferença: cartazes com frases de Che Guevara, fotos de Sebastião Salgado e a bandeira do movimento são unanimidade até nas “paredes” dos barracos de lona preta.
Elói, um dos responsáveis pelo departamento de ensino do Rio Grande do Sul e grande colaborador desta reportagem, diz que as cartilhas tradicionais tiveram de ser abolidas por ser “muito burguesas, elitistas e de valores capitalistas”. “Vem escrito: ‘Papai comprou tantos bombons para seu filho’. E nos acampamentos nossas crianças não tinham acesso ao açúcar.”
Essas diferenças levaram o MST a criar um projeto pedagógico formador de educadores, o Instituto de Educação Josué de Castro, dentro do Iterra (Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária), e seus próprios livros e cartilhas pedagógicas, fundamentados em Paulo Freire, Makarenko (professor ucraniano, fundador da pedagogia marxista, voltada especificamente ao coletivismo) e principalmente no cotidiano da comunidade, na busca da cidadania desde cedo.
O MST conta hoje com 1.350 escolas do ensino fundamental e com 3.900 educadores de crianças e adultos. São em média 150 mil educandos em nível nacional. As aulas são elaboradas pelos professores que passam o dia na escola pesquisando e se relacionando com os alunos. O processo de ensino não é estático, muda conforme as necessidades.
O alfabeto é discutido em assembléia com alunos e pais que chegam a um consenso sobre qual palavra deve ser atribuída a qual letra: “A” de acampamento, “R” de reforma agrária. “Dessa forma, além de fixar melhor o conteúdo, as crianças ajudam com os problemas da comunidade”, explica Vilma Marinho, educadora do assentamento da Coopac. Na matemática somam alqueires, hectares, e a porcentagem é vista sobre a produtividade da colheita dos assentamentos.
Mas como ensinar os princípios do socialismo e a causa das lutas a crianças de 4, 5 anos de idade? Segundo a diretora Elaine da Rocha, da escola Nova Esperança, base das escolas itinerantes, a política do Movimento é ensinada através de hábitos solidários, estimulando o coletivismo: “Criança é criança, não adianta você querer formar um militante na pré-escola!”
Ao final de cada explicação sobre a pedagogia do Movimento (como eles definem) vem a frase: “Tudo foi conquistado com muita luta até aqui, mas ainda estamos aprendendo”. Para conseguir a primeira escola, do – na época – acampamento Anone, onde havia cerca de seiscentas crianças, os pais, acampados que já eram professores e as próprias crianças fizeram visitas periódicas à prefeitura, falaram com o governo do Estado, participaram de marchas. A prefeitura dizia que não colocaria uma escola “em local de conflito”. “Os senhores não conhecem o Brasil, então!” diziam os pais.
Apesar de hoje o governo do Rio Grande do Sul estar colaborando com a implantação dessas escolas, ainda há lugares em que as prefeituras relutam em dar autonomia na área pedagógica ao Movimento, mesmo em assentamentos. Viamão, onde aconteceu a Jornada pela Reforma Agrária, é um desses lugares.
“A escola aqui é tradicional. Os professores não conhecem e não querem conhecer o Movimento. Eles querem apenas receber o deles no final do mês! Incentivam as crianças a ir para a cidade. Queremos que elas valorizem a terra! Tínhamos professores formados em pedagogia e magistério aqui no assentamento e não foi permitido que lecionassem aqui. Eles ensinam em outras escolas tradicionais. A administração pública ainda não entendeu a pedagogia do movimento. Os professores reclamam que as crianças não ficam quietas, não obedecem, mas aqui não é essa a relação de obediência, as crianças têm de questionar, perguntar o que está acontecendo!”, diz Leonildo Zang, assentado que cuida da farmácia alternativa (ervas e chás).
A Jornada pela Reforma Agrária cuida – entre outras coisas – da vistoria dessas escolas, escuta a reclamação das crianças, discute as possíveis soluções. Em um galpão desativado no próprio assentamento de Viamão, onde fazia muito frio apesar do sol forte, frei Laodino celebrava o término do evento, num breve e coerente sermão comparativo entre Moisés e a peregrinação no deserto e a luta pela terra.
Alguns hinos à reforma agrária tocados na viola eram acompanhados pelos presentes. Uma mulher se emociona contando sobre o terrível caso em que os capangas de uma fazenda envenenaram a água de um rio que supria um dos acampamentos, matando oito crianças. O silêncio toma conta do galpão.
Certa hora, o frei nos chama para explicar o que fazíamos ali. Com algumas tímidas palavras nos apresentamos, e por sermos da Caros Amigos fomos abençoados. “Se vocês fossem de outro jornal, expulsaríamos vocês! Os repórteres costumam entrar sem ser convidados, ficam cinco minutos, depois massacram a gente!”, brinca o frei.
A jornada pela reforma agrária é feita periodicamente nos assentamentos. No de Viamão, em especial, o que se nota é que grande parte das dificuldades reside no fato de não trabalharem em conjunto; cada família tem seu pedaço de terra, planta e vive de forma independente, divergindo da principal proposta do Movimento Sem Terra, que é a vida socialista.
A aluna Edinéia Padilha, de 11 anos, diz que os professores e diretores da escola onde estuda (tradicional da rede pública) tratam mal os filhos dos assentados (apesar de a escola estar em terreno do assentamento, crianças dos lugares vizinhos freqüentam as aulas) e deixam qualquer pessoa se matricular ali.
E completa: “Eu já sei de tempos o que estou aprendendo lá! A gente só vê televisão, passa de ano mas passa burro! Quando tiver 18 anos, o que vai ser? Teve um dia que a gente colou cartazes escrito: ‘Menos cafezinho, mais atenção aos alunos e funcionários!’”
A expressão muda quando ela fala da época em que tinha aulas na escola itinerante do acampamento: “Lá, os professores eram legais, conversavam com a gente! A gente não tinha mesa, cadeira, sentava debaixo de uma árvore, apoiava o caderno no chão e aprendia muito mais!”
Segundo as educadoras (orgulhosas), as crianças que passaram pelas escolas do Movimento são ótimas alunas quando vão estudar na cidade. “Dão um pouco mais de trabalho para os professores… pois questionam, debatem, mas tiram de letra as matérias da escola tradicional.”
Porém – e sempre há algum –, as crianças vivem um verdadeiro impasse quando têm de ir para a cidade completar os estudos, já que a maioria das escolas do Movimento educa só até a 8a série. Sofrem preconceito por parte dos demais alunos, que os chamam de “camponesezinhos sem terra “, e até por parte dos professores.
Isso resulta em uma mudança no comportamento de alguns adolescentes. “Fazendo uma comparação, nós somos como uma mulher que luta de estilingue contra o soldado com a metralhadora! O trabalho que a mídia, a televisão e as novelas fazem acaba com tudo o que plantamos neles! O aluno chega em um lugar diferente onde não conhece ninguém, e já é discriminado só pelo fato de ser do campo, imagine então sendo sem-terra! Para fazer amigos, ele ignora seus valores e incorpora uma outra cultura. Os valores que a gente levou anos para plantar na cabeça deles, a mídia tira em segundos”, lamenta Juarez Cornelli, da Ramada.
Outros jovens acabam por desistir dos estudos na cidade e esperam ter idade para fazer um curso técnico em agronomia, ou se formar educador (quatro anos de curso) pelo próprio Movimento.
O que não se nega é a forte ênfase da filosofia do Movimento no ensino das crianças acampadas, que têm o orgulho de ser sem-terra, a revolta de ver “tanta terra para uma vaca, sendo que tem um monte de trabalhador passando fome”, o amor à terra e o viver em conjunto. Tudo se pensa em conjunto e se vive em conjunto. Às crianças que já nasceram no assentamento, os pais contam histórias de sua luta, levam-nas para visitar os acampamentos e até montam barracas onde passam alguns dias lembrando da peregrinação pela terra.
“Muitos pais não agüentam e caem no choro!”, diz Loa, assentado na Coopac, um modelo de assentamento em cooperativa onde mulheres, crianças e homens, independentemente da função, têm igual remuneração por hora de trabalho.
Quem convive, ainda que por um breve período, com essas crianças não consegue não se apaixonar. São doces, conversam de igual para igual, têm consciência crítica, opinião, mas ainda assim são crianças. Sem “Walt Disney”, sem a erotização precoce, a sede de consumo, a malemolência dos videogames ou os “midiotóxicos globais” aos quais as crias urbanas são submetidas.
A “moral da história”, a conclusão a que se chega a respeito do Movimento e do tratamento com as crianças é a de que – puxa ! – o socialismo existe e funciona mesmo! Claro que não vivem em um jardim encantado. Claro que são privadas dos luxos que o dinheiro compra; e que são filhos de uma desigualdade social, de uma reforma agrária que ainda não aconteceu. Mas, se elas próprias não se mostram assim, não reclamam, não se vitimam, quem o pode fazer? A mídia, com a comercialização e espetacularização de uma miséria virtual?
Os “sem-terrinha” são crianças na melhor definição de “projeto de gente em execução”. A diferença é que não querem balas. Querem terra.
Andréa Dip é estudante de jornalismo.