A farra da legalização da grilagem

Por Ariovaldo Umbelino*

A grilagem das terras públicas na Amazônia continua nos noticiários. Agora, se trata da Medida Provisória 422, que dispensa de licitação a venda de terras públicas do INCRA até 1.500 hectares. E, por de traz dela, está a estratégia de ação do agrobanditismo em sua sanha de se apropriar das terras públicas griladas daquela região.

Em outro artigo neste site, mostrei que a grilagem das terras públicas da Amazônia sempre veio alimentada pelas políticas públicas dos diferentes governos nos últimos cinqüenta anos. Mas, como a legislação constitucional impede que isso se faça, o caminho passou a ser tentar conseguir através de subterfúgios jurídicos sua legalização. Como a Constituição de 1988, manda compatibilizar a destinação das terras públicas com o plano nacional de reforma agrária, uma nova estratégia passou a ser montada para continuar favorecendo os grileiros do agronegócio.

Uma banda podre dos funcionários do INCRA, particularmente os que “cuidam” do Cadastro, passaram a “oferecer” e “reservar” as terras públicas do INCRA para os grileiros e indicar o caminho “legal” para obtê-las. Portanto, quem está realizando esta “grilagem legalizada” é uma parte dos próprios funcionários corruptos do INCRA e dos órgãos estaduais de terra. A denúncia destes fatos, já levou a Polícia Federal a fazer a Operação Faroeste no Pará e o Ministério Público Federal mover ação para cancelar os “assentamentos da reforma agrária laranja” da regional do INCRA de Santarém-PA. O motivo é sempre o mesmo: a tentativa de “oficializar” a grilagem das terras públicas.

Em 2003, o INCRA possuía na Amazônia Legal mais de 60 milhões hectares, assim distribuídas pelos estados: Amazonas 20,9 milhões de hectares; Pará 17,9 milhões; Roraima 9,2 milhões; Acre 6,2 milhões; Mato Grosso 5,7 milhões; Rondônia 4,9 milhões; Maranhão 1,7 milhões e Tocantins 1 milhão de hectares.

Entretanto, os grileiros do agrobanditismo “cercaram e se apropriaram privadamente” de tudo, pois, os funcionários corruptos do INCRA “venderam” para eles ilegalmente todo este patrimônio público. Agora, estão junto como o governo Lula, propondo “soluções jurídicas” para legalizar o crime cometido. A história é a seguinte.

No final do ano de 2005, conseguiram através do artigo 118 da Lei nº 11.196 de 21/11/2005 (a chamada “Medida Provisória do bem”) alterar a lei de licitações públicas (Lei Nº 8.666, de 21/06/1993) conseguindo a permissão para regularizar, através da venda, a aqueles que tinham grilado as terras públicas do INCRA na Amazônia Legal com área de até 500 hectares. Não custa lembrar que o artigo 191 da Constituição de 1988, autoriza a posse apenas até 50 hectares, quando a terra é devoluta, porque as terras públicas não são passíveis de usucapião (artigo 200 do Decreto-Lei 9760 05/09/1946, § 3º do artigo 183 da Constituição de 1988).

Em 17/05/2006 o INCRA baixou a Instrução Normativa nº 32, que fixou os procedimentos legais para que este crime da grilagem das terras públicas até 500 hectares pudesse começar a ser legalizado. Era o início da farra da legalização da grilagem.

Mas, a banda podre dos funcionários do INCRA não se deu por satisfeita, e, afrontando a Constituição que manda destinar as terras públicas para a reforma agrária, baixou a Instrução Normativa nº 41 em 11 de junho de 2007 (publicada no DOU em 18/06/2007) estabelecendo “critérios e procedimentos administrativos referentes à alienação de terras públicas em áreas acima de 500 hectares limitadas a 15 (quinze) módulos fiscais mediante concorrência pública.”

Mas, a sordidez destes delapidadores do patrimônio público não tem limite. Primeiro, com auxílio do agrobanditismo paraense, conseguiram que o deputado Asdrúbal Bentes (PMDB) apresentasse em 24/10/2008 um projeto de lei que ampliava para até 15 módulos fiscais (mais ou menos 1.500 hectares) a dispensa de licitação e conseqüente autorização para venda aos grileiros das terras do INCRA.

Agora, a desfaçatez do governo do PT parece que não tem mais limite. Lula e Cassel, descaradamente, em nome da reivindicação da base aliada, transformaram (plagiaram) o projeto de lei do deputado Asdrúbal Bentes, na Medida Provisória nº 422. Assim, esta MP que já está em vigor, altera novamente a Lei nº 8.666, permitindo a dispensa de licitação para alienar os imóveis públicos da União até 15 módulos fiscais.

Isto quer dizer que, como 39% da área dos municípios da Amazônia Legal têm módulos fiscais de 100 hectares, esta dispensa de licitação atingirá áreas griladas até 1.500 hectares. Estes municípios estão principalmente nos estados do Amazonas, Acre, Roraima, Mato Grosso e Pará, todos repletos de exemplos da grilagem de terras do INCRA. Outros 38% da área dos municípios que têm módulos entre 75 e 90 hectares, e, a dispensa de licitação atingirá áreas griladas entre 1.125 e 1.350 hectares dos estados anteriores e do Tocantins e Maranhão. Ou seja, as terras griladas que serão regularizadas têm área acima de mil hectares, e é o próprio INCRA que reconhece o crime lesa pátria: “assim, entre 70 e 80% das posses de até 15 módulos fiscais estará em torno de 1000 ha, ou menos” in “A MP 422 legaliza e protege a floresta” (http://www.incra.gov.br).

A audácia do diretor de Ordenamento da Estrutura Fundiária do INCRA, Roberto Kiel, é de uma adesão total ao agrobanditismo: “agora eles poderão comprar do governo federal as terras que já ocupavam há anos e não vão precisar de concorrer com outros interessados” in “Assinada MP para regularização fundiária da Amazônia” (http://www.incra.gov.br).

Outra parte desta engenhosa operação para legalização da grilagem de terras do INCRA na Amazônia Legal foi o aproveitamento do aumento do desmatamento naquela região para fazer o recadastramento dos imóveis. Ele vai permitir que os grileiros que ainda não tinham cadastrados as terras públicas que grilaram até dezembro de 2004, pudessem agora fazê-lo, e assim se habilitarem para “comprar” as terras griladas sem licitação. Aliás, a notícia no site do INCRA sobre o recadastramento já, de forma absurda reconhece os grileiros como posseiros: “Os donos ou posseiros de áreas maiores que quatro módulos fiscais […] terão que levar ao Incra, de 3 de março a 2 de abril, documentos que comprovem a titularidade ou posse pacífica da terra, plantas e memoriais descritivos com a correta localização geográfica dos imóveis rurais” (http://www.incra.gov.br).

Dessa forma, é preciso deixar claro que as verdadeiras posses das famílias camponesas ribeirinhas ou não na Amazônia não ocupam mais de 100 hectares, portanto, estes atos do INCRA são para regularizarem as grilagens das terras públicas do próprio INCRA que seus funcionários corruptos “venderam” para ao agrobanditismo.

Vale lembrar que apenas duas vezes na história do Brasil a grande posse foi legalizada, na Lei de Terra de 1850 e na ditadura militar entre 1964/1984.

Por isso volto a repetir, a MP 422 é uma afronta aos princípios constitucionais e ao patrimônio público: o governo Lula está fazendo o que nenhum governo, depois dos militares, fez, “vendendo” ao agronegócio/agrobanditismo mais de 60 milhões de hectares de terras públicas do INCRA na Amazônia que deveriam ser reservadas para a REFORMA AGRÁRIA, à demarcação de terras indígenas e ou quilombolas, e a criação de unidades de conservação ambiental.

PELA REVOGAÇÃO IMEDIATA DA MP 422.

*Professor titular de Geografia Agrária, do Departamento de Geografia da USP (Universidade de São Paulo).