“Especulação causa crise dos alimentos”
Por Igor Felippe Santos
O integrante da coordenação nacional do MST, Egidio Brunetto, analisa que especulação financeira causou a elevação dos preços dos alimentos no mundo. “Os produtos agrícolas passaram a ser commodities, que agora são vendidas nas bolsas de valores em ações. Grandes especuladores controlam 60% do trigo, por exemplo. A alta do preço dos produtos agrícolas tem origem na especulação financeira”, afirma.
Egídio Brunetto avalia que existe produção de alimentos em excesso a nível internacional e discorda da avaliação do presidente Lula, que atribuiu o aumento do preço dos alimentos ao crescimento do consumo. “Como uma família que recebe a bolsa do governo de 60 reais vai aumentar o consumo se o preço do alimento duplicou? Diminuiu o consumo de alimentos. Aumentou o preço do feijão, do arroz, da carne e do óleo, como vão consumir mais?”, rebate.
Em 12 meses, houve uma disparada de preços dos alimentos no Brasil, ficando em torn de 11,2%, em média. O feijão aumentou 168,3%; o arroz, 7,7%; a farinha de trigo, 17,6%; o macarrão, 17,6%; e o pão francês, 16,9%. Os óleos cresceram em média 50%; a carne bovina, 19%; a carne suína, 10,7%; o frango, 6%; queijo provolone, 35,8%; o queijo fresco, 30,6%.
Segundo ele, o Estado precisa retomar o seu papel na agricultura e na produção, inclusive com subsídios para os agricultores, e a democratização da terra ganha peso na discussão política por ser uma saída para a crise. “Precisamos de Reforma Agrária para resolver problema da fome, das mudanças climáticas e da estratégia da soberania alimentar”.
Leia a seguir a entrevista do dirigente do MST, que atua no Mato Grosso do Sul.
Qual a avaliação do MST e da Via Campesina sobre a polêmica em torno da elevação do preço dos alimentos?
Não existe uma polêmica, mas uma desculpa do capital para justificar o aumento. Em primeiro lugar, é reflexo de um modelo de produção agrícola baseado na Revolução Verde. Houve uma industrialização da produção de alimentos baseados em insumos petroquímicos, pesticidas e agrotóxicos. Passamos depois por uma segunda fase, com a liberalização do comércio agrícola, dentro do neoliberalismo, no qual as empresas transnacionais passaram a dominar as sementes, o comércio e as grandes cadeias de supermercados. Esse modelo de produção e o novo padrão de consumo levaram os agricultores e os países a perder a sua soberania alimentar. Hoje as grandes empresas têm monopólios que controlam o comércio dos produtos alimentares. Os governos não têm o que fazer porque não controlam esse sistema, não têm o controle de preços nem políticas de controle de estoque. Nessa etapa, o grande problema é a especulação financeira.
Como isso funciona?
Os produtos agrícolas passaram a ser commodities, que agora são vendidas nas bolsas de valores em ações. Grandes especuladores controlam 60% do trigo, por exemplo. A alta do preço dos produtos agrícolas tem origem na especulação financeira. Esses produtos são vendidos a seis ou sete vezes mais caros nas bolsas, sem em muitos casos existirem. O segundo elemento é a produção de agrocombustíveis, com a utilização de terras agrícolas em várias partes do mundo, onde poderia se produzir alimentos, e com o uso de produtos agrícolas para etanol. O terceiro está relacionado à alta do preço do petróleo. O modelo atual usa petroquímicos para fertilização e faz os alimentos circularem ao redor do mundo, o que causa um custo de transporte muito alto, encarecendo os produtos. Tem outros elementos marginais, como intempéries em algumas regiões. O fundamental é que não existe um problema de produção agrícola nem de superconsumo, mas uma quantidade maior de produtos que o consumido e a especulação financeira.
Uma das teses é que o preço dos alimentos está subindo por conta do aumento do consumo. O presidente Lula disse que o preço aumentou no país por causa do elevação do número de consumidores com seus programas sociais e com o crescimento da economia.
Não concordamos com essa avaliação. É uma mentira. Em geral, não aumentou o consumo nem diminuiu a produção, existe alimento em excesso. O verdadeiro problema é a especulação financeira. O modelo de produção e consumo levou a um monopólio, controlado pelas empresas, que causaram a perda da soberania alimentar. Os agricultores não têm soberania alimentar e a população pobre não consegue comprar alimentos. Com a subida dos preços dos alimentos, o consumo vai diminuir. Como uma família que recebe a bolsa do governo de 60 reais vai aumentar o consumo se o preço do alimento duplicou? Diminuiu o consumo de alimentos. Aumentou o preço do feijão, do arroz, da carne e do óleo, como vão consumir mais? Essa é uma saída pela tangente para explicar o aumento dos preços. O modelo agroexportador é a principal causa dessa crise.
Qual a avaliação dos protestos que aconteceram no mundo, em cerca de 30 países, por conta da crise do preço dos alimentos?
Isso é uma tendência. Não são apenas protestos, mas aconteceram mortes no Haiti, na Argentina, no Paraguai, além dos países africanos, por causa da fome. O povo precisa protestar porque a fome é violenta e está levando as pessoas à morte. A tendência é que as manifestações aumentem em todos os continentes, na Ásia, África e na América Latina. A saída proposta pelos organismos internacionais é a “ajuda alimentar”. Isso significa que o capital vai ganhar ainda mais dinheiro com base na fome dos pobres. Não vão doar alimentos, mas vender a preços internacionais do mercado. O capital propõe mais do mesmo, com mais neoliberalismo. Querem mais liberalização comercial e aprofundar o modelo da transgenia, como se o problema fosse a produtividade. Isso não vai resolver, porque o problema é de renda para que as famílias possam consumir. A alternativa é a chamada soberania alimentar, com produção e comércio local e regional para evitar que os alimentos sejam transportados por grandes distâncias. O custo de exportar e importar encarece o preço dos alimentos. Com a produção regional, todos os países têm condições de produzir e alimentar seu povo.
Como fazer essas mudanças para garantir a soberania alimentar?
Precisamos da volta do papel do Estado na agricultura e na produção, e sim aos subsídios para os agricultores, diferente do que defende o governo. Por que o presidente Lula dá subsídios para as grandes empresas, para as papeleiras, para os exportadores agrícolas com a Lei Kandir? Esses recursos deveriam ir para a produção de alimentos. O Estado precisa criar uma legislação que proteja a produção de alimentos, assistência técnica e políticas de garantia de preços para que cheguem de forma barata para os consumidores, porque o salário não permite comprar alimentos suficientes e diversificados. Nem os acordos da OMC (Organização Mundial do Comércio) nem o aumento das exportações vão resolver esses problemas. A resolução da Rodada de Doha, da OMC, vai significar mais liberalização comercial da agricultura. A nossa proposta é a saída da agricultura e dos alimentos dos tratados comerciais, porque devem obedecer a uma política interna de cada um dos países. O governo precisa estar voltado para uma política forte de produção de alimentos diversificados, de qualidade e baratos para a população. Precisamos também distribuir renda para que as famílias possam comprar alimentos. É necessário também uma política de interiorização da produção agrícola e das agroindústrias locais para garantir o abastecimento regional. Não precisa o arroz sair do Rio Grande do Sul e ir para a Amazônia, agregando custo. Em todas as regiões, podemos produzir arroz, feijão, milho, mandioca e carne. Para isso, o governo precisa ter programas. No entanto, deram prioridade para a agricultura de exportação. Assim, tanto faz se o povo come ou não come. Se importam apenas com indicadores gerais, porque o povo que tem acesso alimentos come mal.
Não há problema de falta de alimentos no mundo. Diante disso, a tese de que o Brasil pode produzir alimentos para o mundo inteiro é propaganda para justificar o avanço no agronegócio no país?
O Brasil é uma potencia agrícola e pode produzir produtos que possam faltar em algumas regiões do mundo, mas o problema fundamental não é esse. A África não tem problema de capacidade de produção. As terras, os solos e o clima são suficientes, assim como no Haiti, que precisa de recursos para garantir a produção de alimentos. Eles têm condições e mandar alimentos não vai resolver o problema. Precisam de recursos e estrutura. Dentro do livre comercio, não há solução e pode-se exportar a quantidade de comida possível. O Brasil tem uma visão arrogante. São poucos os países que hoje não têm condições de produzir seus alimentos, a não ser os países árabes pela falta de terras agricultáveis. O problema é a política agrícola.
Qual deveria ser a prioridade do governo?
O Brasil deveria ter uma política de produção de alimentos para o seu povo porque, se 11 milhões de famílias recebem uma bolsa do governo, é uma vergonha para um país arrogante que se coloca para resolver o problema do mundo. Ainda não foi resolvido nem o problema do povo brasileiro. Mais de 70% das famílias que recebem assistência de programas sociais estão na faixa de insegurança alimentar. Mais de 30% estão no nível de pobreza. O Brasil deveria se envergonhar de ser uma potência agrícola, querer alimentar o mundo sem resolver o problema do seu povo.
Qual o potencial da Reforma Agrária para resolver a crise alimentar?
Não podemos resolver o problema da crise alimentar e dos preços dos alimentos sem a Reforma Agrária e uma política de agricultura para agricultores, não uma agricultura industrial, que vai gerar crises porque produz o que dá dinheiro. Nem sempre é alimento. Podem plantar eucalipto, soja, fumo, laranja, enquanto o povo compra alimentos caros. Reforma agrária significa distribuição das terras com capacidade de produção de alimentos para o mercado local. Assim, volta a ser a pauta do dia em diversos países, especialmente na América Latina e no Caribe. Precisamos de Reforma Agrária para resolver problema da fome, das mudanças climáticas e da estratégia da soberania alimentar. O debate é entre o agronegócio, a agricultura industrial, ou uma agricultura com agricultores. Não há saída para esses problemas sem passar pelos agricultores, porque a agricultura industrial aumenta o aquecimento global, destrói o meio ambiente, a biodiversidade e a base da soberania alimentar.
Os assentados sofrem com a falta de crédito, investimento e infra-estrutura. Quais as políticas necessárias para garantir a sustentação e desenvolvimento dos assentamentos?
Esperamos que o governo tome vergonha e garanta questões básicas. O primeiro é o crédito especial para Reforma Agrária, que faz mais de dois anos que está sendo discutido. Precisamos de um crédito que viabiliza a produção de alimentos e o aumento de renda das famílias. Precisamos de recursos suficientes na Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), que são bastante reduzidos, para a compra desses produtos e doação simultânea. Estamos pedindo R$1 bilhão, que não é muito dinheiro para o governo, para que se possa comprar mais produtos agrícolas, pagar um preço justo e garantir o abastecimento das populações em situação de insegurança alimentar, de forma doada ou mais barata. O terceiro ponto é assistência técnica, porque até hoje está muito complicado todos esses programas, em função da legislação. O quarto ponto é a infra-estrutura. Esperamos que o programa de habitação se desenvolva. O quinto ponto é o programa de agroindústria, porque durante o governo Lula nada foi feito. É impossível industrializar e conservar os alimentos sem ter um apoio estrutural para a criação de agroindústrias nas regiões para beneficiar, conservar e armazenar os produtos.