A maior obra do regionalismo nordestino do século XX se mantém viva
Por João Paulo da Silva, de Maceió (AL)
“Na planície avermelhada, os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente, andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da caatinga rala.”
Assim começa o romance que conta a história de cinco personagens na luta pela sobrevivência. Fabiano, Sinhá Vitória, menino mais velho, menino mais novo e a cadela Baleia são cinco almas que se confundem com milhares de tantas outras espalhadas pelo Nordeste brasileiro. Um importante objetivo os une: fugir da estiagem em busca de sustento.
Em 2008, Vidas Secas, do escritor alagoano Graciliano Ramos, completa 70 anos de sua primeira edição. A narrativa alcançou tanto prestígio que chegou a ser traduzida para francês, inglês, italiano, russo, tcheco, polonês, alemão, espanhol, húngaro, búlgaro, romeno, finlandês e holandês. A força da obra conferiu a Graciliano reconhecimento internacional, seja pela abordagem sociopolítica, seja pela profundidade psicológica. Em 1963, o romance ganhou uma excelente adaptação para o cinema, assinada pelo diretor Nelson Pereira dos Santos.
Vidas Secas mostra uma história que continua latejando na literatura brasileira, como uma ferida aberta pela miséria e pela seca no sertão nordestino.
O auge do regionalismo
O romance que narra a jornada de uma família de retirantes é considerado a obra mais representativa do regionalismo do século XX. A luta desumana dos fugitivos da seca, viajando para o sul na tentativa de escapar dos rigores do sertão, é o retrato mais brutal das desgraças a que estão submetidos muitos nordestinos.
Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos, seguidos pela cachorra Baleia, vagam de fazenda em fazenda, percorrendo quilômetros de terra rachada, em busca de um pedaço de chão que lhes dê o que comer. São criaturas jogadas ao extremo da miséria, vestem-se com roupas sujas e rasgadas, não possuem casa, comida, saúde nem futuro. Como se já não fossem muitas as adversidades, os retirantes ainda sofrem com a prepotência do fazendeiro enganador e com as injustiças de uma estrutura sociopolítica decadente.
Vidas Secas, narrado em terceira pessoa, é o ponto máximo do período que ficou conhecido na literatura brasileira como a “Geração do romance de 1930”. Nessa época, nossa prosa de ficção ganhou uma nova força criadora, nos colocando em contato com um Brasil pouco conhecido. Através de escritores como José Lins do Rego, Raquel de Queiroz, Jorge Amado, Érico Veríssimo e Graciliano Ramos, a literatura mostrou o homem alicerçado em cada uma das diversas estruturas sócio-econômicas do país.
Entretanto, quase sempre num confronto desigual com o mundo que o cercava. Além de pôr no centro da produção ficcional aqueles que antes eram figurantes, o romance regional da segunda fase modernista trouxe também outra roupagem cultural e estética, apresentando os canaviais, as caatingas da seca e do cangaço, as terras do cacau, do fumo e das fronteiras gaúchas.
Crítica social e análise psicológica
Graciliano Ramos não só desnudou as incongruências sociais do sertão nordestino como também revelou o íntimo de seus personagens. Em Vidas Secas, Graciliano demonstra o estrago que a vida de privações provoca na maneira como suas criaturas vêem o mundo, os bichos e as coisas. Com habilidade, o escritor alagoano faz uma profunda análise psicológica, buscando sempre investigar o homem e seus dramas individuais. Os sonhos, as angústias, os desejos.
É como se cada um tivesse seu momento no divã. Tudo vem à tona de modo retalhado, mas sempre deixando clara a condição de impotência dos personagens diante do mundo e de si mesmos. Fabiano e sua família representam figuras que existem aos milhares. Entretanto, surgem constantemente presas a uma solidão de náufragos. Num clima de tensão e agonia, Graciliano disseca as dores dos condenados do sertão, mostrando quão embrutecidos ficam os homens diante de um mundo que lhes nega tudo.
De certa forma, mesmo que instintivamente, as criaturas de Vidas Secas têm consciência de que sobrevivem numa sociedade injusta. Isso fica claro na passagem em que Fabiano é preso – sem razão alguma – pelo soldado amarelo, representação do Estado Novo fascista de Getúlio Vargas. Em discurso indireto livre, o escritor revela as reflexões feitas por Fabiano na prisão. “Por que tinham feito aquilo? Era o que não podia saber. Pessoa de bons costumes, sim senhor, nunca fora preso. De repente um fuzuê sem motivo. Achava-se tão perturbado que nem acreditava naquela desgraça. Tinham-lhe caído todos em cima, de supetão, como uns condenados. Assim um homem não podia resistir”.
A situação subumana de vida dos retirantes explica a importância dada a sonhos aparentemente tão banais. É o caso, por exemplo, de Sinhá Vitória, que deseja profundamente uma cama de lastro de couro, onde possa dormir como gente de verdade. Para ela, uma cama talvez redimisse a condenação de uma existência miserável.
Há também, em Graciliano, a inocência fazendo descobertas cruéis. Quando o menino mais velho ouve da mãe a palavra inferno, procura saber seu significado. Como resposta, recebe, primeiramente, uma definição vaga. “É um lugar ruim, quente”. Depois, insistindo em descobrir como a mãe sabia que o lugar era assim, acaba recebendo um cascudo. Chorando, vai se consolar com a cachorra Baleia. Neste momento, por meio de uma associação simples, faz sua descoberta cruel. O inferno é ruim e quente, assim como o lugar em que ele e a família vivem. Ali, portanto, era o inferno.
Uma parte do mundo em Vidas Secas é apresentada através da aridez do meio e da dureza da vida, mas é apenas a partir do aprofundamento psicológico das personagens que Graciliano consegue dar densidade à obra.
“Você é um bicho, Fabiano”
O ponto de ligação entre todos os personagens é a luta pela sobrevivência. A conseqüência disso é a constante repetição da palavra bicho na obra. As condições desumanas de vida colocam no mesmo nível pessoas e animais. Fabiano e sua família não dominam a linguagem verbal. Embrutecidos, falam pouco e se comunicam mais por grunhidos e outros sons, assim como os bichos. O próprio Fabiano, orgulhoso de ter sido capaz de vencer as dificuldades, conclui: “Você é um bicho, Fabiano”.
Outro exemplo da condição animal das personagens é o fato de os filhos do casal não possuírem nomes. São, simplesmente, chamados de menino mais velho e menino mais novo. Na mesma proporção em que Graciliano animaliza as pessoas em sua obra, o autor também humaniza os bichos. A cachorra que acompanha os retirantes é tratada como gente, possui nome (algo que os meninos não têm!) e até sonhos próprios. Baleia vivia a sonhar com um céu repleto de preás. O animal só foi sacrificado por Fabiano porque estava doente, o que poderia atrapalhar a caminhada da família.
O universo apresentado por Graciliano Ramos é envolvido por enredos que abordam a seca, o latifúndio, o drama dos retirantes, a caatinga. As vidas secas que habitam o romance são seres oprimidos, fabricados pelo meio. Não em sua obra a idealização do Nordeste. Talvez por isso, por não apresentar uma felicidade inexistente, tenha sido muitas vezes chamado de pessimista. Para o autor, a única saída seria mudar as estruturas e o sistema que geraram os sofrimentos de suas personagens.
Seco como um mandacaru
O poeta modernista Oswald de Andrade costumava dizer que Graciliano Ramos era um “mandacaru escrevendo”. O estilo do autor alagoano era seco como o sertão que retratou em suas obras. Seu texto enxuto e conciso, construído com períodos curtos, pouca adjetivação, sem enfeites e destacando a importância de verbos e substantivos, era a prova de que a linguagem sintética havia encontrado alguém sem adornos inúteis.
O próprio Graciliano revelou sua preferência pelo estilo duro e rigoroso quando afirmou: “A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”. Uma parte de sua obra pode ser classificada como autobiográfica – Infância e Memórias do Cárcere. Outra é inspirada em fatos e situações das quais ele mesmo foi testemunha viva – São Bernardo e Vidas Secas.
Nascido em Quebrangulo, Alagoas, em 27 de outubro de 1892, fez apenas os estudos secundários em Maceió, jamais cursando uma faculdade. Morou no Rio de Janeiro, onde trabalhou como jornalista, e em Palmeira dos Índios, cidade da qual foi prefeito. Estreou tarde na literatura, aos 34 anos, publicando Caetés e chegou a dirigir em Maceió a Imprensa Oficial e a Instrução Pública. Em março de 1936, foi preso sob a acusação de participar da Intentona Comunista.
As humilhações e as dores sofridas na prisão, resultaram no livro Memórias do Cárcere. Com o fim da ditadura de Vargas, em 1945, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro, convidado pelo próprio Luis Carlos Prestes. Em 1952, viajou para o Leste Europeu, com a intenção de ver de perto os rumos que a URSS tomava. Não gostou do que estava sendo feito. No ano seguinte, em 20 de março, aos 60 anos, perdeu uma guerra importante: a do câncer de pulmão.