Agrocombustíveis são a manifestação “mais perversa” do controle transnacional no campo
Por Manoela Sisa, de Caracas
Em defesa do milho como identidade latinomericana, organizações sociais reiteraram a condenação, neste domingo (12/10), da produção de agrocombustíveis ao qualificar como “perversa” a apropriação do cereal, base da cultura alimentar da região, para a produção do etanol.
“Os interesses das transnacionais em torno do milho se manifestam de maneira mais perversa nos agrocombustíveis que não são uma fonte de energia”, diz a resolução final do Encontro “Somos de milho”, realizado em Caracas, depois de três dias de debate sobre a preservação do grão e suas variedades.
Na avaliação de Ivan Gil, presidente do Instituto Nacional de Investigação Agrícola (INIA) da Venezuela, a produção do etanol à base de milho ” é exemplo de um modelo ineficiente (de energia alternativa)” para sustentar “o alto consumo” dos Estados Unidos.
Gil destacou que a produção do agrocombustível estadunidense já está afetando o mercado mundial de cereal.
De acordo com o Departamento de Agricultura dos EUA (USDA nas siglas em inglês) 32% da colheita de milho dos EUA no ciclo 2008/09, equivalente a 104,1 milhões de toneladas, serão destinados à produção de etanol.
“Essa cifra equivale a 80 vezes o consumo anual da Venezuela”, destacou Ivan Gil. “O preço do cereal e seus derivados se triplicaram em relação ao desequilibrio da oferta e demanda”, acrescentou.
O deslocamento de pequenos produtores de suas terras, a precarização das condições de trabalho no campo e a substituição do plantio de alimentos para dar lugar à cana-de-acúcar mereceram destaque quando o debate deu foco à produção do etanol brasileiro.
Crise alimentar
Alexandre Conceição, do MST destacou, que na esteira da produção dos agrocombustíveis, houve especulação nos mercados de cereais, o que contribuiu para incrementar os preços dos alimentos.
“A crise é parte de uma estratégia do mercado de alimentos que está obtendo lucros por meio da especulação que está gerando mais fome e miséria”, afirmou.
Conceição destacou, porém, que a crise alimentar que afeta principalmente os países do terceiro mundo, não deve ser dissociada do problema de acesso aos alimentos.
” A crise alimentar sempre existiu, a fome está presente há muito tempo para os povos que não têm como comprar e plantar seu alimento”, acrescentou Conceição, ao citar o trabalho realizado em 1946 pelo geógrafo brasileiro Josué de Castro no livro Geografia da Fome.
“Banco” de sementes
Entre as ações concretas propostas pelos participantes do Encontro aparece uma antiga reivindicação da Vía Campesina Internacional que trata da necessidade de criar uma rede de “resgate, produção e conservação das sementes agroecológicas como patrimonio da humanidade”.
Outra proposta é a de criar uma rede de trabalho e diálogo entre as organizações sociais e governos para coordenar um intercâmbio de experiências e técnicas agrícolas.
Nos casos em que os governos atentem contra a soberania alimentar da população, o chamado é de partir para a “mobilização”.
“Fomos, somos e seguiremos sendo de milho” foi a palavra de ordem defendida pelas organizações sociais que se comprometeram a travar uma luta para mostrar que o milho é mais do que uma mercadoria. ” A luta pela preservação do milho vai de mãos dadas com a luta pela terra”, afirmaram.
Participação
Durante o debate da manhã deste domingo, logo depois de o vice-ministro Agricultura Richard Canan detalhar os avanços da legislação agrária venezuelana, um agricultor se levantou, com a Constituição “desembainada”, exigindo que os conceitos de “democracia participativa e protagônica” que aparecem na Carta Magna fossem efetivamente respeitados pelas instituições governamentais.
No mesmo sentido se inclinou a reivindicação de outro agricultor ali presente, destacando que a tarefa do Ministério não deve se limitar à proporcionar assistência técnica para auxiliar a produção agrícola.
“Nós, os camponeses, queremos aprender essas técnicas, queremos estudar para que sejamos capazes, nós mesmos, de produzir nossos produtos e pedimos que o governo disponha essa capacitação para os agricultores”, reivindicou.
Pouco depois, Alexandre Conceição foi mais além, ao afirmar que sem a mudança do sistema de produção capitalista não há possibilidade de realizar a reforma agrária e tornar efetiva a transformação das condições de vida no campo.
“Não se trata só de distribuir a terra e sim assumir a reforma agrária como um caminho para o desenvolvimento da América Latina”, afirmou.
“Não há saída para a transformação dessa realidade, nem aqui na Venezuela, nem em outro país, dentro do modelo capitalista de produção”, acrescentou.
Além dos seminários, delegações de vários países da América Latina mostraram um pouco da cultura do milho na culinária.
Cuscuz, bolo, sopa andina, entre outras iguarias feitas de milho foram distribuídas aos participantes do encontro e também aos desavisados que foram ao Parque Francisco de Miranda, no leste de Caracas, aproveitar o domingo de sol.