“O MST recriou a escola”
Sistema de educação paralelo, como se costuma definir as escolas itinerantes do MST, é um modo de dizer diante da “falta de melhor denominação para a concepção sistêmica de todo o processo educativo que singulariza o MST”.
Para o filósofo e professor aposentado da USP, Paulo Arantes, “sem terra, e tudo o mais que se refere aos mínimos de uma vida civilizada, o MST foi reinventando um novo sujeito, que acabou recriando também a Escola”. Uma escola para formar o trabalhador enquanto agente de sua própria emancipação, “escapando da condição de máquina de produzir mais valia neste grande moinho de gastar gente, como Darcy Ribeiro definiu o Brasil”.
A educação popular – que tem como ícone a Escola Nacional Florestan Fernandes -, a perda de rumo da esquerda intelectual brasileira e o ensino de filosofia no País estão contemplados nesta análise do autor de uma respeitável obra, que inclui “Zero à Esquerda”, “O Fio da Meada” e o recente “Extinção”, entre outros.
A entrevista foi realizada e veiculada pelo Adverso, publicação da Associação dos Docentes da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
O encontro histórico da USP e do MST teria se dado na figura da Escola Nacional Florestan Fernandes. Por que o senhor se refere a esse fato como “confluência tardia” e “desencontro histórico”?
Se havia um encontro marcado, a USP não compareceu. Seria melhor especificar de saída o que estamos entendendo por USP. Seu embrião, em 1934, foi a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, a agregação original de saberes que melhor encarnava o espírito da instituição universitária, uma real novidade entre nós. Refiro-me ao corte europeu de sua concepção, reunindo ensino e pesquisa numa ambiência de livre exame, ciência pura e desinteressada. O conjunto impregnado por um sentimento novo de relevância cultural e, por extensão, social. Afinal, era a década de 30, quando o País parecia estar de cabeça para baixo.
A oligarquia paulista acabou gerando um ambiente “formador” desta mesma elite pela cristalização de um pensamento radical de classe média. Como Antonio Candido chamou aquela primeira visão não-aristocrática do Brasil, baseada no estudo da recém descoberta “realidade” do País. Clima estudioso, animado por uma energia política que não precisava ser propriamente revolucionária para encaminhar num sentido progressista aqueles novos técnicos de sua própria inteligência – era assim que os via Mário de Andrade. Desse novo rumo brotou o encontro da ciência social com as classes populares, não só as que estavam entrando em cena, como as que a modernização deixara à beira do caminho.
Quando o MST deu o nome de Florestan à sua Escola Nacional, é bem possível que uma espécie de sexto sentido histórico o tenha guiado até àquele vínculo entre estudo exigente e empatia com os grupos oprimidos e marginalizados. Certamente no intuito de reativá-lo num patamar à altura dos novos tempos. Mas nossa faculdade foi ficando para trás: quanto mais se especializava e profissionalizava no sentido de mera prestadora de serviços culturais, a adversidade social crescente conferia outra dimensão de combate e pensamento a um movimento social do porte do MST. O reencontro anunciado pela escolha do nome revelou-se muito mais simbólico do que efetivo, muito mais uma evocação de um elo perdido do que o fio de uma meada enfim retomada.
A tradição crítica iniciada nos anos 30 se encerrara de vez, pouco antes do seu mais legítimo destinatário entrar em campo em meados dos anos 80, o MST. Enquanto um crescia, a outra definhava. Esse desencontro verdadeiramente histórico é fruto de uma construção nacional que não aconteceu. Como um sistema intelectual-popular não se formou, as participações individuais, mesmo as mais empenhadas, regrediram à condição de manifestações avulsas de compromisso pessoal.
O que diferencia o MST dos demais movimentos sociais brasileiros? E que sistema de educação paralelo é esse criado por eles?
Paralelo é modo de dizer, na falta de melhor denominação para a concepção sistêmica de todo o processo educativo que singulariza o MST. Não conheço nada que sequer se aproxime de toda a elaboração do movimento a respeito. Pelo menos desde a ruptura popular que o nome de Paulo Freire simboliza não se via tamanha centralidade da Pedagogia, em seu sentido transformador amplo, na formulação e condução de uma política de emancipação social através da luta pela terra. A educação como “formação” (Bildung) – na acepção mais substantiva do termo – acompanha em profundidade cada uma das etapas de um dos lemas estratégicos do Movimento: ocupar, produzir, resistir. A impressão de “sistema paralelo de educação”, do ensino fundamental até os convênios com as universidades menos preconceituosas, talvez advenha da percepção de que tudo se passa como se, nesta centralidade da instrução na luta de uma classe despossuída, encontrássemos a prefiguração de uma sociedade nacional e popular que ainda relutasse em abandonar o horizonte do possível.
Daí outra particularidade deste movimento sem igual: o único a incorporar metodicamente ao seu sistema de referências os grandes marcos de reflexão que delimitam a tradição crítica brasileira. De Caio Prado Júnior a Celso Furtado, cuja originalidade até hoje faz pensar, só o MST soube reconhecer. Ao contrário dos demais coletivos que pontuaram a história política do País pela combinação não prevista de capitalismo e escravidão, ou pela visão inédita do subdesenvolvimento como um resultado histórico-estrutural – e não uma etapa atrasada na linha evolutiva da modernização.
Acresce que um fio condutor, que Antonio Candido chamaria de radical, ora mais, ora menos puxado pelos extremos, percorreu essa tradição hoje extinta em sua vertente acadêmica: a passagem traumática em todos os sentidos da Colônia à Nação. Nó a ser desatado pelo processo que Caio Prado chamou de Revolução Brasileira (deixando em suspenso a definição de seu caráter), ou atado de vez. O nó cego da Revolução Burguesa, a reação autocrática permanente mapeada por Florestan.
Nessa plataforma e suas ramificações posteriores, o MST assentou seu enfoque do problema da terra e seu projeto nacional. Mesmo defasada nos seus termos, trata-se de uma confluência entre formas originais de pensamento que se cristalizaram – refletindo sobre a diferença brasileira no âmbito da expansão histórica do capitalismo do centro para a periferia por ele mesmo criada, pois não existe periferia em si – e uma prática política de ruptura e invenção social tocada pela iniciativa dos espoliados da terra, que não estava no programa de ninguém. Algo verdadeiramente notável.
O senhor poderia explicar esse momento em que o MST vira uma instituição e a USP passa de instituição a organização?
A USP começou a perder o seu perfil humboldtiano de universidade mal iniciado o período de transição nos anos 80. A ditadura massificara, pensando demagogicamente resolver o problema do chamado excedente. A esquerda achava que bastava democratizar o poder acadêmico exercido sobre aquela nova massa estudantil e docente. O contemporâneo colapso do desenvolvimento precipitou o longo processo de sucateamento e confinamento da vida acadêmica ao salve-se quem puder da administração da escassez. Como as demais instituições do welfare periférico, a USP foi alvo de todos os ajustes e reengenharias que se sabe. Fragmentou-se num arquipélago de institutos e fundações de apoio, povoados por estudantes-usuários e pesquisadores-investidores (no seu próprio capital humano). Como no mundo do trabalho, corroeu-se igualmente o caráter, na acepção sociológica que lhe deu Richard Sennet. Não estou moralizando, simplesmente notando que a idéia de carreira, sem carreirismo, deixou de fazer sentido. O ato docente, fundado numa vida dedicada à pesquisa, do berço acadêmico à vida ativa depois de uma aposentadoria digna, caiu no vazio institucional que se instalava. Sem o docente formador que inspira e enriquece os alunos – muito menos que o seu currículo, para o qual de fato passou a trabalhar como um condenado – não se pode mais falar da universidade como uma escola. Ponto final.
O MST nasceu naquele exato momento, só que dobrou tal esquina da nossa história recente no sentido contrário, politizando o mais extremo desvalimento. Sem terra, e tudo o mais que se refere aos mínimos de uma vida civilizada, foi reinventando um novo sujeito, que acabou recriando também a Escola. Assim, com maiúscula, pois sua crença – que eu chamaria de socialista – no poder da instrução na transformação do povo trabalhador, levou-o a instituir praticamente do nada, um dos raros ambientes que ainda podemos chamar de “formadores” em nosso País e na América Latina. Formador ou humanizador, como se queira.
É preciso lembrar que no centro do MST está o problema da produção. De alimentos, para ser mais específico nesta hora de crise alimentar global. Refiro-me, portanto, à preservação e ampliação de um ambiente humanizador, conjugado ao meio hostil do trabalho penoso e acossado por toda sorte de coerções. Da violência proprietária ao descaso dos poderes constituídos, desde sempre para facilitar a esfola costumeira dos primeiros. Falo do trabalhador que se instrui e cultiva enquanto agente de sua própria emancipação, que se humaniza e forma, escapando da condição de máquina de produzir mais valia neste grande moinho de gastar gente, como Darcy Ribeiro definiu o Brasil.
A Universidade Pública tem o dever de abrir as portas para os movimentos sociais e tomar como suas as demandas destes? Como o senhor avalia o envolvimento das universidades brasileiras, especialmente as públicas, com os movimentos sociais?
Aqui entramos em campo minado. Até agora nosso foco era uma Faculdade muito particular no sistema USP, cujo surgimento, aliás, se deu à revelia das grandes máquinas de diplomação da elite branca local (Medicina, Direito e Engenharia). Um sistema capitalista de profissões baseado na separação hierárquica entre concepção e execução. Para os peões, a escola técnica e olhe lá, nos velhos tempos fordistas. Imaginemos a situação surreal: um movimento social bate à porta da Escola Politécnica! De duas uma. Ou é a revolução que já ultrapassou todas as barreiras prévias àquele acesso privilegiado (e irá demonstrar na prática o que é uma verdadeira sociedade do conhecimento), ou será que ninguém se deu conta do que significa ingressar num sistema destinado a subordinar outras formas de trabalho? Neste último caso, descontada a inverossimilhança do exemplo, o remoto sucesso da iniciativa apenas denunciaria a pulverização do referido movimento num leque de ações afirmativas individuais.
Quanto aos convênios do MST com as universidades – para ir direto ao ponto –, correm por outra faixa que se poderia chamar de capacitação técnica estratégica. Como a direita não se engana a esse respeito, vive à beira de um ataque de nervos e sempre que pode extrapola. Seu fundamento material é o conhecimento socialmente produzido, porém confinado e esterilizado. Dito isto, a verdade verdadeira é que a esquerda acadêmica não sabe o que fazer, salvo a monótona reafirmação de uma universidade que nunca foi social.
Seria possível traçar um paralelo entre o magistério da filosofia há 50 anos e hoje? O senhor acredita que com a volta da obrigatoriedade do ensino de filosofia e sociologia no Ensino Médio, o professor dessas disciplinas pode voltar a ser valorizado?
Há meio século, o País não era menos socialmente horrendo. Mas o vínculo recente entre uma Faculdade de Filosofia como a nossa e os quadros do magistério secundário de cujo aprimoramento em princípio se encarregaria, é pelo menos, uma pequena revolução cultural em andamento, nos limites do possível (permitido pelo maior ou menor esclarecimento da própria burguesia). De resto, ela mesma enviava seus filhos de preferência àqueles ginásios e liceus que, embora públicos, eram seus mesmos ou compartilhados com as camadas médias da população. Classes das quais provinham os professores que chegaram a gozar de reconhecimento social numa escala impensável nos dias de hoje. Depois deste breve fastígio de classe, veio aos poucos o que se sabe: com a chegada da massa empobrecida, o aviltamento profissional e uma dramática desautorização da condição docente.
Não seria a filosofia que faria o “dia nascer feliz” no ensino médio brasileiro. Quem viu o filme, sabe que não há indicador que resista àquelas imagens de frustração e desengano. Que, aliás, precisam ser revistas na sua verdadeira chave, como vem fazendo, por exemplo, a socióloga Regina Magalhães de Souza. A seu ver, a escola à deriva, sem projeto educativo, objetivos ou conteúdos, não está em crise terminal, mas em perfeita sintonia com as atuais demandas de socialização dos jovens através do “aprendizado” de práticas de negociação com os novos fatos da vida. Assim, o que se “aprende” a valorizar num centro emissor de certificados – sem maior significado que o de validar a seleção já consumada dos perdedores – é o saber movimentar-se num mundo de coisas novas que, no entanto, são apenas as já existentes. No limite, a consagração de uma viração presente que vem a ser o próprio futuro que já chegou. A relação meramente instrumental com uma escola, que nada mais é do que um conjunto vazio de normas e regulamentos, um marco de sucesso adaptativo, numa sociedade em que o horizonte de expectativas encolheu drasticamente.
Por que não há mais base social para que interpretações como as de Florestan Fernandez, Celso Furtado, Caio Prado Júnior e Raimundo Faoro voltem a acontecer?
O mesmo horizonte anulado de expectativas rebaixadas (responsável pelo sucesso de adaptação passiva, que vem a ser as mil e uma manobras a que se resume a perene viração do “aprender a aprender”) em que se viu engessada a imaginação do povo miúdo das escolas brasileiras, também roubou o fôlego dos herdeiros de uma tradição crítica que não se esgotou por escassez de talentos. Longe disto.
Porque haveria de ser diferente, se o chão social é comum? Não basta dominar o seu ofício – no caso, a tradição crítica herdada, virada e revirada até o osso, a ponto de se tornar um formalismo a mais – numa sociedade decididamente unidimensional. Foi-se o tempo que tínhamos encontro marcado com o Futuro, com a Modernidade, ou o que fosse, contanto que assinalasse a presença tangível da História correndo a nosso favor. Até mesmo o golpe de 1964 era a contra-prova de que uma bifurcação real em nosso tempo histórico se apresentara, tanto é que uma violência política inaudita foi então deflagrada, e até hoje corre solta, para erradicar de vez a alternativa. O meio século de vigência daquelas grandes interpretações mobilizadoras distinguiu-se por uma espécie singular de processo mental. O que Antonio Candido chamou certa vez de “consciência dramática do subdesenvolvimento”, um tempo em que o País ingressou na dinâmica de uma conjuntura longa, porém agônica, alimentada pela experiência catastrófica da miséria pasmosa das populações, pedindo desfecho superador, justamente da condição subdesenvolvida.
Hoje vivemos em tempo morto. Em linguagem teatral, um tempo pós-dramático veio preencher o vazio deixado pela épica das massas em movimento, pelo menos até o fim dos anos 80. Por favor: nada a ver com o desalento confortável de quem continua se dando bem num país em que “tudo fracassou”, nas palavras do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (não por acaso um elo nada desprezível daquela mesma tradição crítica, cuja dimensão afirmativa afinal aflorou plenamente nos anos 90).
Aliás seria bom não esquecer, neste momento de transição, quem sabe para uma outra teoria crítica impulsionada pela nova urgência da hora, que no avesso do ciclo intelectual anterior – ou melhor, no direito –, o empenho em romper com as raízes do “atraso” mal se distinguia da ambição de uma contra-elite em emparelhar com os padrões metropolitanos de progresso. Por isso mesmo, escapavam ilesos da crítica, para não falar de uma possível rejeição.
Cinismo dos vencedores à parte, o fato é que o horizonte do Brasil encurtou. Resta saber que rumo político dar à interpretação deste fenômeno inédito. O deboche da classe dominante e seus representantes intelectuais consiste em arrematar. Nossas ambições são medíocres porque se encontram plenamente realizadas com a atual reconversão primário-exportadora financeirizada. A resposta de esquerda deve pelo menos partir do reconhecimento de que um tal encolhimento de horizontes pode muito bem significar um tempo social em que, pela primeira vez, as expectativas não só não ultrapassam, mas coincidem inteiramente com a experiência presente. Isto significa que a conjuntura tornou-se literalmente emergencial, como se a sociedade se confundisse com uma descomunal urgência médica. Para os mandantes de turno, a saída é puramente gestionária e combina programas sociais seletivos com escalada penal. Quanto à esquerda, se deseja mesmo se reinventar, precisa aprender a intervir numa coisa jamais vista, uma conjuntura perene.