Ressuscitando usinas de cana falidas

De um lado, o fortalecimento da monocultura da cana-de-açúcar para o programa dos agrocombustíveis. De outro, a expansão das empresas transnacionais para a produção da fruticultura irrigada para exportação. De norte a sul, a transposição do Rio São Francisco.

De um lado, o fortalecimento da monocultura da cana-de-açúcar para o programa dos agrocombustíveis. De outro, a expansão das empresas transnacionais para a produção da fruticultura irrigada para exportação. De norte a sul, a transposição do Rio São Francisco.

Um panorama da agricultura em Pernambuco aponta o avanço violento do agronegócio, com o investimento de capital nacional e internacional na produção em grande escala voltada para exportação. Os interesses do capital brasileiro, japonês, chinês, francês e suíço, de mãos dadas com a oligarquia nordestina, ultrapassam barreiras políticas e econômicas, enquanto os trabalhadores rurais resistem em uma situação cada vez mais difícil.

“O agronegócio avança com a política do governo federal de fortalecer esse modelo, que causa o enfrentamento com a Reforma Agrária. As usinas e engenhos que faliram nas décadas de 80 e 90, com a crise do Pró-Álcool, voltaram a funcionar, com o apoio de recursos públicos, para a retomada da cana para o programa de agrocombustíveis”, afirma Messilene da Silva, da coordenação nacional do MST, em entrevista ao Jornal Sem Terra.

Neste ano, apenas uma área foi transformada em assentamento para 350 famílias em Pernambuco. Mais de 12 mil famílias continuam acampadas e 16 mil famílias assentadas precisam de infra-estrutura e crédito para produzir alimentos.

Nesse quadro, o principal desafio do Movimento é ampliar a base social para enfrentar o modelo agroexportador e arrancar conquistas para o povo pobre do campo e das periferias das cidades. “Precisamos massificar o movimento dentro de um contexto no qual não há avanço da Reforma Agrária nem exemplos concretos de melhorias de vida”. Leia a seguir entrevista com a dirigente do MST.

Como se dá a expansão do agronegócio no estado de Pernambuco?

A Zona da Mata, o Sertão e o Vale do Rio São Francisco são regiões apontadas como potencial para a produção em grande escala, ligada à implantação da monocultura de cana-de-açúcar e à fruticultura irrigada para exportação. O agronegócio avança com a política do governo federal de fortalecer esse modelo, que causa o enfrentamento com a Reforma Agrária. As usinas e engenhos que faliram nas décadas de 80 e 90, com a crise do Pró-Álcool, voltaram a funcionar, com apoio de recursos públicos, para a retomada da cana para o programa de agrocombustíveis. Houve enfrentamentos diferentes com o avanço do agronegócio, especialmente a partir de 2006.

Quais as características dos investimentos do capital na agricultura no estado?

A monocultura de cana-de-açúcar em Pernambuco tem a característica do capital nacional, com o investimento de grandes grupos de usineiros, que têm participação na política e no poder público. Atua também a Votorantim, que domina algumas empresas. O grupo João Santos – bem antigo – controla terras em Pernambuco e no Maranhão e compõe a oligarquia histórica.

E o capital internacional?

Há uma empresa chinesa que está comprando usinas na região da Zona da Mata Sul, inclusive para áreas onde nunca houve produção de cana, como no semi-árido. Há 10 anos estão em desenvolvimento projetos da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), a partir da definição do capital, com apoio dos governos federal e estadual, para ampliar a produção de cana no semi-árido. Há planos para o Sertão, fora do Vale do São Francisco, de construção de 20 usinas de cana-de-açúcar até 2015. Na região do Vale São Francisco, basicamente, todas as empresas ligadas à produção da fruticultura irrigada são multinacionais. As empresas estão intensificando o controle de áreas por meio de grandes redes, como o Carrefour, que está comprando diversas terras para plantar frutas para exportação. Há também grupos de japoneses, que estão se fortalecendo no campo da produção da uva, coco, manga, mamão e goiaba, produzidos em grande escala para exportação. Na divisa de Pernambuco e Ceará, na chamada Serra do Araripe, a principal região de produção de gesso no país, há um grupo suíço que está elaborando pesquisas para a plantação de eucaliptos.

A transposição do Rio São Francisco tem qual significado nesse contexto?

A transposição do Rio São Francisco faz parte do jogo de interesses de grandes empresas do capital e grupos internacionais para o avanço do agronegócio, alcançando Pernambuco e Paraíba até o Ceará. Nessa perspectiva, o projeto mais claro é o do Pontal Sul, no eixo norte da obra, onde temos um acampamento com 2,5 mil famílias. Já foram colocadas em leilão todas as terras em torno do canal, voltadas para empresas de grupos internacionais para a produção de fruticultura irrigada. A transposição não está limitada apenas ao canal grande, onde será transposta a água para os estados. A obra do canal grande está parada por conta das mobilizações e dos questionamentos da sociedade. Enquanto essa parte está parada, os outros canais menores estão sendo construídos. Por isso, chamamos a obra de transposição bilateral

Qual o quadro da luta pela Reforma Agrária em Pernambuco?

O quadro da luta pela Reforma Agrária no estado não está desvinculado da situação nacional, embora tenha suas especificidades. Desenhamos que, do ponto de vista da relação com o governo, tínhamos muitas perspectivas de que seria um momento de avançar, tanto com a desapropriação de novas áreas e também com a melhoria dos assentamentos. Com a vitória do governo Lula, em 2002, massificamos os acampamentos com a perspectiva de desapropriação de novas áreas. Fizemos grandes ocupações de terras, apesar dos nossos limites.

Quais os limites que o Movimento enfrentou nesse período?

Tínhamos uma conjuntura de um governo do estado de direita, liderado pelo governador Jarbas Vasconcelos [1999 a 2006], do PMDB, que tinha uma base aliada composta pelo PSDB. Houve muitos conflitos, tanto com os proprietários, com o grande latifúndio – em especial na região da Zona da Mata – e também de enfrentamento com a força militar. Fomos para o enfrentamento, sofremos com perseguições, prisões e até mortes de lideranças. A Polícia Militar é muito violenta no estado, o que não mudou com o novo governo. Lançamos o desafio interno de massificar e trazer novas famílias para a luta, mas infelizmente não tivemos grandes conquistas.

Em 2006, foi eleito governador do estado o Eduardo Campos, de um partido à esquerda, o PSB. A situação mudou?

A conjuntura política mudou com a eleição do governador Eduardo Campos. Tivemos que estudar para entender esse novo quadro porque, inicialmente, esse governo é parceiro. No entanto, as ações se manifestam da mesma forma que o outro governo. É a reprodução do governo Lula a nível estadual, ou seja, tenta atender os pobres e a classe dominante, buscando sempre uma conciliação.

Qual a postura do governo estadual em relação à agricultura e à Reforma Agrária?

Permaneceu a mesma estrutura de violência contra os movimentos sociais, a falta de desapropriação de áreas e de melhorias nos assentamentos, que não são apenas de responsabilidade do governo federal. Já nos reunimos diversas vezes, apresentamos a pauta da Reforma Agrária e respondem que tudo será feito. No entanto, usam políticas de Estado para engessar as organizações. Por exemplo, criaram uma secretaria especial para fazer a mediação com os movimentos. Em relação aos despejos – que eram extremamente violentos no governo Jarbas, com a presença do pelotão de choque – tentam fazer o máximo para que não aconteçam. Para isso, tentam fazer a mediação, que acontece sempre no sentido das famílias saírem da área, em vez de garantir a permanência na terra. Com isso, preservam os donos dos latifúndios e quem perde são as famílias.

Qual a situação dos acampados e as suas características?

Há acampamentos com 11 anos, que ficam na área do grupo João Santos, que impõe dificuldades para a negociação. Também temos acampamentos de seis ou até de um ano. Os acampamentos de cinco anos para cá têm uma característica mesclada, com a influência grande do público urbano, com diferenças religiosas, de comportamento e valores, especialmente nas regiões metropolitanas do estado, em torno do Recife e das grandes cidades, e na Zona da Mata. Entre o Agreste e o Meio Sertão, os acampados perderam suas terras em conseqüência do modelo do agronegócio e têm um vínculo grande com o campo. Esse novo momento do Movimento implica nova constituição da militância. Muitos jovens dos acampamentos vêm para a organização, que ganha outras características com a mescla de militantes que vieram de acampamentos mais antigos.

Quais os principais gargalos dos assentamentos?

Os principais gargalos são a infra-estrutura, como estrada, escola, saúde, saneamento básico, habitações – conseguimos casas neste ano para 100 assentamentos de mais de 10 anos, a dificuldade para conseguir crédito para a viabilização da produção nos assentamentos e assistência técnica, que prejudica com a descontinuidade dos projetos. Ou seja, são questões básicas para viabilizar a vida nos assentamento. A falta de crédito, por exemplo, implica dificuldade para a produção. Um exemplo disso é o assentamento Catalunha, com 620 famílias, na região do Sertão do São Francisco, que era a área da Reforma Agrária que mais produzia cebola, tomate, maracujá e melancia. Atualmente, há grandes dificuldades pela falta de crédito. Sem produção e comercialização de alimentos, os assentados não têm dinheiro e não conseguiram pagar a energia, que foi cortada. Isso vai prejudicando a produção e a vida cotidiana das pessoas. Embora diga que foi o governo que mais liberou crédito para a agricultura familiar, quando chega na hora de liberar, emperra na burocracia do banco. Há uma cadeia de questões que, quando chegam à ponta, não se concretizam.

A Reforma Agrária está parada e o agronegócio avança com força em várias regiões do estado, o que deixa o enfrentamento cada vez mais difícil. Nesse quadro, quais os desafios do Movimento?

O desafio maior é ampliar a base social. Estamos estudando um método de trabalho de base para conseguir massificar as áreas e as novas ocupações. Nos últimos tempos, diminuiu a massificação. Temos feito muitas ocupações, mas com poucas famílias. Há um ano, fizemos uma ocupação com 2,5 mil famílias, dentro de uma realidade diferente. No estado, as menores ocupações tinham 200 famílias. Hoje não conseguimos fazer grandes ocupações com 400 ou 500 famílias. O desafio é trabalhar dentro dessa nova realidade e trazer um novo público para a Reforma Agrária.

Quem seria esse novo público?

Ao mesmo tempo em que avança o agronegócio, cresce uma base de famílias que são expulsas das áreas. Aumenta também o número de pessoas nas cidades e desempregados nas favelas, onde há camponeses com raízes fortes e outros com influência mais urbana. Apesar de ter gente sem-terra desempregada e passando fome na periferia, há um acomodamento em função das políticas compensatórias. Precisamos trabalhar para verificar se é possível trazer esse povo para a luta ou há uma degradação da consciência tão grande que não se percebe nada além da barriga. Precisamos massificar o movimento dentro de um contexto no qual não há avanço da Reforma Agrária nem exemplos concretos de melhorias de vida.