Não existe política agrária na Amazônia
Os assentamentos criados na Amazônia não representam uma reforma agrária, afirma o integrante da direção nacional do MST, João Pedro Stedile. “Os governos, seja estadual ou federal, estão aplicando a fórmula tão simples quanto medíocre de apenas distribuir terras públicas em projetos de colonização. Não há uma política efetiva nem planejamento”, afirma.
Os projetos de reforma agrária implantados na Amazônia, segundo ele, não permitem que os assentados permaneçam muito tempo no local. “Os colonos desses projetos às vezes vendem as toras de árvores por preços ridículos; outras vezes, em troca de tábuas para construírem suas casas ou simplesmente para que o madeireiro abra uma estrada para conseguir ir até sua roça. Os colonos pobres são utilizados como massa de manobra para amansar a terra e, atrás deles vem os madeireiros, os pecuaristas ou latifundiários da soja, que pressionam para comprar suas terras”, afirma.
Sobre a lei que permite a proprietários de terra desmatar 20% de suas áreas na Amazônia, Stedile defende o “desmatamento zero”. Segundo ele, as áreas que já foram desmatadas são suficientes para a produção de alimentos e o desenvolvimento da região. “O acesso à terra pelas famílias de trabalhadores rurais pobres que habitam a região deve ser garantido com a desapropriação das grandes fazendas de pecuária que já foram desmatadas”, defende.
Leia a seguir entrevista do dirigente do MST.
Integrantes do MST estão acampados na sede do Incra de Belém exigindo uma mudança da política de reforma agrária na Amazônia. Qual é a proposta do MST para essa mudança?
Não existe uma política de desenvolvimento agrário ou fundiário para a Amazônia. Os governos, seja estadual ou federal, estão aplicando a fórmula tão simples quanto medíocre de apenas distribuir terras públicas em projetos de colonização. Não há uma política efetiva nem planejamento. Os governos federal e estaduais optaram pela distribuição de terras publicas porque não precisam enfrentar o latifúndio e o agronegócio. Dessa forma, não têm desgaste econômico de fazer a Reforma Agrária nem político com o enfrentamento da bancada ruralista. Por outro lado, se transformam em estatísticas boas para propaganda. Ou seja, são iniciativas oportunistas do governo. Um exemplo: apenas a superintendência do Incra em Santarém teria “assentado” para efeito de propaganda mais de 50 mil famílias. Esse número é superior aos seis anos de assentamentos do Governo Lula somando todos os estados da região sul e sudeste.
É fácil prever que na região de Santarém não tem 50 mil famílias. E mesmo que tenham loteado as áreas, se trata de distribuição de terras públicas, onde deus e o diabo se inscrevem no Incra e acabam recebendo título. Não existe um projeto nem uma política de desenvolvimento para a região da Amazônia. As áreas onde há posseiros não têm estrada, luz, escola ou hospital. Uma parte das famílias mais pobres, sem apoio público e formas de gerar renda, se obriga a desmatar os 20% da área para retirar lenha ou produzir carvão para garantir a sua sobrevivência. Com isso, acabam a mercê dos madeireiros, que se aproveitam dos lotes serem legais e exploram a madeira existente em toda a área sem nenhum controle.
Os colonos desses projetos, às vezes, vendem as toras de árvores por preços ridículos; outras vezes, em troca de tábuas para construírem suas casas ou simplesmente para que o madeireiro abra uma estrada para conseguir ir até sua roça. Os colonos pobres são utilizados como massa de manobra para amansar a terra e, atrás deles, vem os madeireiros, os pecuaristas ou latifundiários da soja, que pressionam para comprar suas terras. Com isso, concentra de novo a propriedade da terra, dentro de um círculo vicioso. Está tudo errado.
O MST afirma que defende um modelo de assentamento que respeite o meio ambiente e ao mesmo tempo não destrua a floresta. Como funciona esse modelo?
Em primeiro lugar, o governo precisa acabar com projetos de colonização. Somos contra a distribuição de terras públicas pelo Incra e os institutos estaduais para quem quer que seja. Defendemos com os movimentos sociais da Amazônia a política do Desmatamento Zero, junto com o Greenpeace e entidades da sociedade civil. A área atual que já foi desmatada é suficiente para a produção de alimentos e para o desenvolvimento da região. Portanto, devemos fazer um grande acordo nacional para garantir nenhum desmatamento raso de qualquer área da Amazônia daqui pra frente.
Em segundo lugar, o acesso à terra às famílias de trabalhadores rurais pobres que habitam a região deve ser garantido com a desapropriação das grandes fazendas de pecuária que já foram desmatadas. Veja por exemplo o caso do Banco Opportunity: um banco concentra 600 mil hectares de terras no sul do Pará. Daria para assentar 10 mil famílias nessa área! Ou seja, precisamos usar as áreas já degradas e desmatadas para fazer projetos de assentamento, o que é diferente de projeto de colonização sobre áreas públicas.
Os projetos de assentamento precisam de um planejamento para produzir alimentos, de acordo com a vocação agrícola da região, mas também para a produção de leite e frutas e para a criação de pequenos animais. Precisamos combinar a criação do assentamento com a instalação de pequenas e médias agroindústrias cooperativadas para gerar mais renda aos assentados. Com isso, será possível dar valor agregado, industrializar e conservar os alimentos, que poderão ser transportados para regiões urbanas como Santarém, Belém, Manaus, Porto Velho, Marabá, onde se concentra o mercado consumidor da região.
Além disso, em cada projeto é preciso construir uma agrovila, melhorando as condições de vida dos assentados, com luz elétrica, escolas, hospitais, lazer e estrada com segurança. Assim, termina a burrice do Estado brasileiro de colocar famílias de colonos no meio do mato, como se fossem bichos, inviabilizando seu desenvolvimento social e econômico e, depois de derrubada parte da mata, sem condições de gerar renda e garantir a sobrevivência, elas mudam para a cidade e deixam a terra amansada para grande fazendeiro. Precisamos acabar com esse circulo vicioso na região com uma política efetiva do Estado.
O MST dá algum tipo de orientação aos assentados no sentido de evitar que desmatem?
Claro. Lutamos por um outro modelo de uso da terra e produção e (como expliquei acima) somos contra qualquer desmatamento. No entanto, infelizmente, em muitas regiões, trabalhadores rurais recebem essas terras em condições totalmente adversas, em locais afastados do mercado consumidor e sem apoio público, e compreendemos que, para não morrerem de fome, acabam desmatando.
Por que o MST é contra a criação de um novo órgão para a regularização fundiária na Amazônia, como propõe o ministro Mangabeira Unger?
O desafio para a Amazônia foi apresentado pelo próprio ministro: trata-se de ter uma política de desenvolvimento e um re-ordenamento fundiário claro, que permita a todos terem os títulos da propriedade. Mas para isso, não se precisa gastar tempo e dinheiro com um novo órgão, mas ter uma decisão política, coordenar e articular as ações do Incra com os institutos de terra estaduais e com o Ibama. Desconfiamos que a criação de um novo órgão, como foi o GETAT, pode ser apenas uma política centralizadora para facilitar a liberação de latifúndios para grandes grupos econômicos de forma mais rápida, como quer grandes empresas e especuladores.
O problema não é de órgão público, mas a ausência projeto para a região a partir de uma reflexão do futuro do nosso país. Infelizmente, até agora, mesmo no governo Lula, predomina para a região amazônica apenas o modelo de dominação do grande capital nacional aliado com as transnacionais, que enxergam na Amazônia apenas uma grande reserva de acumulação de capital. Para isso, empresas nacionais e estrangeiras como a Companhia Vale e grandes bancos estão investindo bilhões em hidrelétricas, siderúrgicas e em empreendimentos de exploração de minerais e extração de madeira. Tudo isso vai enriquecer o capital internacional, enquanto o povo da região seguirá passando necessidades. Basta ver que povoados a 60 km da hidrelétrica de Tucuruí, a 2ª maior do mundo, ainda não têm luz elétrica. Isso acontece porque o objetivo dessa obra é viabilizar a produção de alumínio para exportação, não melhorar de vida do povo local.
Há uma reclamação muito forte do setor agropecuário sobre a exigência de manter 80% da mata preservada nas propriedades rurais da Amazônia. Vocês concordam com essa porcentagem?
Isso é o mínimo necessário. Os grandes grupos capitalistas brasileiros e internacionais gostariam de desmatar tudo e, infelizmente, tanto fazendeiros como empresas que atuam na Amazônia, se comportam como gigolôs da natureza. Querem a exploração máxima, não importa as gerações futuras nem e a Constituição brasileira, que determina que os recursos naturais pertencem ao povo. Por isso, para impedir esse avanço sobre a floresta, defendemos o Desmatamento Zero.
Assentados do norte de Mato Grosso se queixam de terem lotes muito pequenos. Numa região como aquela, qual seria o tamanho adequado dos lotes para que se pudesse garantir a subsistência de uma família e manter a reserva legal? Que tipo de atividade os assentados deveriam desenvolver lá?
O problema não é o tamanho do lote. Se conceder 50 hectares, vão querer 100, se der 100 vão querer 200; e os latifundiários acham 5 mil ou 10 mil ainda pouco. O problema – como expliquei acima – é que precisamos de uma política de desenvolvimento, na qual os trabalhadores rurais pobres e assentados possam melhorar de vida e aumentar a renda com seu trabalho. Isso não depende exclusivamente do tamanho do lote. Quem quer mais e mais terra é porque sonha em retirar madeira e ver se tem garimpo… Uma família pode viver muito bem com 15 hectares se tiver apoio público para desenvolver atividades que geram renda, como a combinação do assentamento com uma agroindústria.
No ranking das maiores autuações ambientais realizadas pelo Ibama desde 2006, publicada recentemente pelo Ministério do meio Ambiente, o Incra aparece no topo da lista. Se defendendo, o órgão disse que não é ‘razoável’ comparar assentados a grandes desmatadores. Qual a posição do MST em relação à lista divulgada pelo Ministério do meio Ambiente?
A “condenação” do Incra foi uma manipulação vergonhosa de técnicos mal intencionados do Ibama, que entregaram a lista para o Ministro sem nenhum critério. Depois, a imprensa manipulou mais ainda, apenas tentando colocar a culpa nos assentados. Vários grandes jornais, que não entendem nada de Amazônia, como o jornal O Globo do Rio Janeiro, colocaram em manchetes o MST como campeão de desmatamento, apesar de nenhum daqueles projetos serem do nosso movimento e termos esclarecido previamente isso à imprensa. Nenhuma das áreas da lista advém de projeto de reforma agrária, mas de projetos de colonização. Ou seja, dentro de uma política que beneficia latifundiário, madeireiras e grandes empresas, não uma política de reforma agrária.
A cobertura da imprensa sobre esse caso demonstra a manipulação dos grandes monopólios da informação, que usam seu poder para lutar contra a Reforma Agrária. Ninguém fez manchete sobre os 600 mil hectares do Banco Opportunity, do sr Daniel Dantas, fazendo desmatamento. Ninguém faz manchete dos desmatamentos da Vale e suas agressões do meio ambiente para retirar mineiros, enviar para a China e depois depositar o lucro na conta de acionistas no exterior. O povo brasileiro e, principalmente, os povos da Amazônia só ficam com a destruição e com o desmatamento. Isso ninguém fala. Infelizmente, o ministro do Meio Ambiente também se prestou a essa manipulação.
O senhor concorda com a idéia de que a reforma agrária no arco do desmatamento é uma válvula de escape para a questão fundiária em áreas do Sul/Sudeste do país? A reforma agrária na região é, de fato, viável?
O governo Lula repete a política do governo FHC e usa os projetos de colonização, a distribuição de terras públicas na Amazônia para criar estatísticas e “provar” que está fazendo Reforma Agrária. Reforma Agrária é desconcentração da propriedade da terra, com a divisão de grandes propriedades e distribuição aos pobres. Estamos assistindo à maior concentração da propriedade da terra da história, desde o último século. Ou seja, está em curso uma política real de contra-reforma agrária. Isso está acontecendo em todas as regiões agrícolas do país, em especial no centro-oeste e na Amazônia.