Cosan ameaça retirada violenta das mulheres em São Paulo

Do Brasil de Fato

Na manhã desta terça-feira (10/03), por volta das 7h, dois oficiais de justiça acompanhados de um representante do grupo sucroalcooleiro Cosan entregaram uma reintegração de posse às mulheres que ocupam desde ontem uma área da empresa no município de Barra Bonita, na região de Jaú-SP. Calados, os oficiais deixaram que o representante da Cosan tomasse a frente da entrega do documento. O profissional, que se apresentou como coordenador de segurança da empresa, ameaçou utilizar violência policial para retirar as cerca de 600 mulheres e 40 crianças que estão no local.

Desde cedo seguranças privados armados e sem identificação estão rondando o acampamento com motos e carros. Viaturas da Polícia Militar também já estão em frente ao acampamento. O clima é de muita tensão no local, e a qualquer momento pode haver a retirada à força das acampadas. Apesar da apreensão, em assembléia realizada agora de manhã, as mulheres decidiram permanecer no local e continuar o corte da cana para a ampliação do acampamento e o aprofundamento das denúncias contra a indústria da cana-de-açúcar e do álcool em todo estado. “O grupo Cosan, sozinho, teve um lucro de R$ 2,7 Bilhões no último ano, enquanto nós milhares de trabalhadoras e trabalhadores seguimos enfrentando o desemprego, a falta de terras para cultivar, e de alimentos para os nossos filhos”, afirmou Kelli Mafort, da coordenação estadual do movimento. “Por que será que a chamada justiça nunca nos trata com a mesma prontidão?”, complementou indignada.

O ato-denúncia

A ocupação foi realizada na manha desta segunda-feira (09/03), e teve a participação de cerca de 600 mulheres da Via Campesina. Segundo nota do movimento, “a mobilização tem como objetivo denunciar a insustentabilidade do agronegócio, a superexploração do trabalho e a conivëncia do Estado, que financia a partir de recursos públicos o avanço do capital no campo”. De acordo com participantes da ocupação, a atividade procura ainda denunciar especificamente os impactos ambientais e sociais desse modelo de desenvolvimento e do setor sucroalcooleiro em todo o estado, além de exigir que o governo priorize a realização da reforma agrária ao invés de continuar socorrendo grandes grupos financeiros que, na visão delas, produziram esta crise econômica.

A recente onda de criminalização e violência contra os movimentos sociais também está sendo denunciada pelas manifestantes. A ocupação faz parte da jornada nacional de lutas “Mulheres camponesas na luta contra o agronegócio, pela Reforma Agrária e soberania alimentar” da Via Campesina, e foi inspirada pelo dia internacional da mulher (08/03).

Conforme declarou Soraia Soriano, da direção nacional do movimento, “apenas o grupo Cosan explora uma extensão de terras duas vezes maior do que o total de hectares destinados para a reforma agrária no estado de São Paulo: são 605 mil hectares pelo grupo, contra somente 300 mil para as 15 mil famílias, entre assentamentos estaduais e federais”. Ela denuncia que, diante da crise econômica, o setor passou a receber ainda mais incentivos do Estado, sobretudo do BNDES, enquanto a reforma agrária segue sendo negligenciada e as trabalhadoras rurais passando por cada vez mais dificuldades, inclusive crescente desemprego. “Na última quinta-feira [05/03], o ministro da agricultura Reinhold Stephanes anunciou mais um socorro financeiro para os usineiros, no valor de R$ 2,5 bilhões – mesmo o setor tendo sido o campeão de demissões no campo em dezembro de 2009. São recursos tirados de nós, trabalhadoras e trabalhadores (boa parte deles do Fundo de Amparo ao Trabalhador), para cobrir as aventuras de grupos econômicos que nos exploram, nos descartam e destroem o meio-ambiente na sua compulsão por lucros”, afirma.

Grupo Cosan

A unidade da Barra, local da manifestação, é a maior usina de açúcar e etanol do mundo em capacidade de moagem de cana, um símbolo do setor sucroalcooleiro no país. Segundo estudos do BNDES, a usina do grupo Cosan explora mais de 70 mil hectares de terra, dos quais cerca de 18 mil hectares são de propriedade da própria empresa, e os demais são arrendados, abarcando seis municípios da região.

O movimento alega que existem 103 denúncias no Ministério Público do Trabalho contra o grupo Cosan, apenas em São Paulo. Entre as notificações estariam problemas relativos a trabalho temporário e terceirização fraudulenta, assédio moral e desvio de FGTS. Segundo a nota do movimento, “de acordo com o artigo 186 da Constituição, a função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos seus trabalhadores”.

Kelli Mafort, uma das porta-vozes do ato, baseia-se nesta legislação e leva adiante o seu raciocínio: “as terras do grupo Cosan não cumprem o seu papel social e, ao contrário, trazem impactos profundos para o meio ambiente. Assim estão em total desacordo com o quê prevê a Constituição do país, por isso devem ser destinadas para a reforma agrária imediatamente”.

Indústria Sucroalcooleira

O Brasil tem hoje mais de 7 milhões de hectares destinados à plantação de cana, sendo que deste total cerca de 5 milhões só no estado de São Paulo (66% do total da produção nacional, segundo o INPE – São José dos Campos). Em São Paulo, a cana-de-açúcar e a produção de álcool são algumas das principais atividades do agronegócio. De acordo com o movimento, este monocultivo é o segundo maior responsável pela concentração fundiária no estado, perdendo apenas para a pecuária extensiva. “A exploração de terras agricultáveis pela cana, em substituição ao cultivo de gêneros alimentícios, se torna cada vez mais problemática, aprofundando com isso a crise dos alimentos e seus altos preços”, afirma Soraia.

Realmente, enquanto a indústria da cana se encontra, nos últimos anos, em forte expansão, as áreas de cultivos de grãos vão cedendo seu espaço no estado. Segundo dados da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, a expansão canavieira tem tomado conta de áreas inteiras que, historicamente, haviam se consolidado como grandes produtoras de grãos: é o caso das regiões de Assis e Igarapava. Apenas o grupo Cosan, conforme relatado pelas manifestantes e confirmado no website da própria empresa, teve rendimentos em torno de R$ 2,7 Bilhões com a safra 2007/2008.

Comparando-se a área ocupada pela monocultura da cana-de-açúcar com o total de áreas destinadas para a reforma agrária no estado, segundo também denunciam as mulheres da Via Campesina, os dados de fato impressionam: atualmente há apenas 300 mil hectares destinados para reforma agrária, divididos em 232 assentamentos rurais, contemplando somente cerca de 15 mil famílias. Ou seja: a área hoje dominada pela cana, de 5 milhões de hectares, é 15 vezes maior que a destinada para a reforma agrária em todo estado. Baseando-se na média atual de família por hectares nos assentamentos, se a área hoje dominada pela cana fosse voltada para a realização da reforma agrária, cerca de 225 mil famílias, ou o equivalente a 1 milhão de pessoas poderiam nelas viver e produzir.

Impactos Ambientais e Sociais

Segundo a nota da Via Campesina, “o monocultivo da cana de açúcar causa um forte desequilíbrio ambiental, sérios problemas sociais, gerando graves conseqüências para a humanidade”. Por onde ele se expande, traria graves consequências para o solo, as águas, o ar e o entorno rural ou urbano. Além de sufocar áreas de agricultura familiar, sua expansão, potencializada pelos incentivos aos agrocombustíveis, pressionaria outras monoculturas latifundiárias a se expandirem para outras regiões do país. Nos últimos anos, de acordo com o movimento, observa-se cada vez mais uma forte expansão da cana-de-açúcar para a região centro-oeste (Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Goiás).

O próprio grupo Cosan estaria ampliando suas atividades pelo estado de Goiás, como por exemplo na cidade de Jataí-GO. O que, por sua vez, estaria pressionando o deslocamento da monoprodução de soja e da pecuária extensiva, historicamente presentes nestes estados, para o norte do país. Isso estaria gerando profundos impactos sociais e ambientais em toda a região amazônica, que tem assistido a cada ano o aumento das queimadas e desmatamentos para facilitar a entrada do gado e da soja – o Pará é hoje campeão em desmatamentos, e já é o quinto maior rebanho bovino do país.

Por outro lado, de acordo com as mulheres que organizam o ato-denúncia, o próprio setor sucroalcooleiro seria responsável por inúmeros danos à natureza. Ainda de acordo com Kelli Mafort: “os agrotóxicos utilizados na plantação da cana; as altas quantidades de fuligem e outras substâncias geradas em suas queimadas; a produção de gases tóxicos e poluentes pelas usinas; o desvio, a poluição e apropriação indébita de recursos hídricos e naturais; bem como a produção de resíduos altamente poluentes na moagem da cana (como a vinhaça, ou vinhoto), estão dentre as principais motivações para as altas quantidades de multas que a indústria recebe, embora muitas vezes não pague”.

De fato, segundo dados da Cetesb (Companhia Tecnológica de Saneamento Ambiental), o setor sucroalcooleiro lidera o ranking do valor de multas aplicadas pelo governo de São Paulo por poluição ou desrespeito à legislação ambiental dentre todas as áreas da indústria no campo. Entre janeiro de 2007 e abril de 2008 foram cerca de 14 mil notificações (entre advertências e multas), atingindo cerca de R$ 50 milhões.

As mulheres da Via Campesina denunciam ainda as condições de trabalho verificadas na indústria da cana-de-acúcar, que seriam “as piores dentre todos os setores econômicos do país”. Segundo Soraia Soriano, “num setor com raízes coloniais, um grande número de trabalhadoras e trabalhadores que atuam no corte e no processamento da cana se encontram em situação de semi ou mesmo de completa escravidão. O que, na prática, significa uma das mais perversas formas de super-exploração do trabalho e, consequentemente, de extração da mais valia sobre trabalhadoras e trabalhadores”.

De fato, entre 2007 e 2008, aumentou o número de registros de irregularidades na remuneração, nas condições e na segurança do trabalho de cortadores e cortadoras de cana. Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, só em 2008 houve 42 operações de combate ao trabalho escravo apenas no setor sucroalcooleiro de todo país. Nestas operações, 6.030 cortadores teriam sido encontrados em regime de escravidão e libertados.

Vale lembrar que, segundo o texto da Proposta de Emenda Constitucional 438-2001 referente ao trabalho escravo, todas as terras onde se verificar a ¨exploração de trabalho escravo serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas para a reforma agrária, com o assentamento prioritário dos colonos que já trabalhavam na respectiva gleba, sem qualquer indenização aos seus proprietários¨. Daí, segundo o movimento, a importância de suas denúncias, do aprofundamento da discussão pública sobre o tema, e da aprovação de tal emenda.

Prioridades do Estado

Finalmente, o movimento questiona também as prioridades dos governos estaduais e federal no que se refere às políticas públicas para o campo. Como já dito, Soraia acredita que os anúncios do Ministério da Agricultura e do BNDES, feitos na última quinta-feira (05/03), para a liberação de mais R$ 2,5 bilhões para a estocagem de etanol das usinas, revelam a clara escolha de um lado por parte do Estado. “Somente em 2008, o BNDES se comprometeu com o desembolso de R$ 6,4 bilhões para a indústria canavieira. Isso seria suficiente para pagar o seguro-desemprego de 500 mil cortadores de cana durante sete anos e meio. Com a crise, a expectativa para 2009 é de um crescimento ainda maior nos repasses, os quais porém não têm tido como contrapartida a garantia de freio nas demissões”, afirma.

Segundo o Ministério da Agricultura, apenas em dezembro de 2008 foram demitidos 134 mil pessoas no campo, sendo que destas o setor sucroalcooleiro contribuiu com nada menos que 70, 1 mil demissões (52% do total). Ainda assim, enquanto estão previstos investimentos de R$ 40 bilhões até 2011 só para o setor de produção de álcool, todo o orçamento do Ministério do Desenvolvimento Agrário para o período está previsto em apenas R$ 14 bilhões. Ou seja: um terço do recurso destinado somente ao setor sucroalcooleiro.

“O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), sobretudo agora na crise provocada pelos capitalistas, deveria priorizar mais o lado social e ambiental, ao invés de pensar novamente apenas nos interesses estritamente econômicos. Chamados de heróis por Lula em 2007, os usineiros, apesar dos recursos bilionários recebidos do governo, continuam sendo aqueles que mais têm demitido no campo durante a crise”, conclui Soraia Soriano, porta-voz do movimento.