Acusações fazem parte da agenda da direita, diz Dirceu

José Dirceu

A grande polêmica da semana travou-se em torno das declarações do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, que considerou ilegais as ocupações de terras improdutivas para pressionar pela reforma agrária e o financiamento concedido aos movimentos que as promovem.

O ministro lembrou que as modificações introduzidas no Estatuto da Terra em 2001 proíbem esses repasses de recursos públicos e estabelecem o prazo de dois anos para a desapropriação dessas propriedades. A partir dessas declarações – incomuns quando feitas por um magistrado que poderá julgar ações sobre o tema no futuro – sobre um direito líquido e certo, toda a mídia o acompanhou.

O Jornal Nacional, da Globo, maior rede de TV e de mais ampla audiência no país, por exemplo, passou toda a semana apresentando reportagens em que vinculava diretamente o Movimento dos Sem Terra (MST) ao governo e ao PT.

Assim, a declaração do presidente do STF ganhou vida própria, serviu de pauta para a nossa mídia e de agenda para a oposição, como aliás, vinham fazendo ambas com entrevistas em que o senador Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE) desfechou virulentos ataques ao seu próprio partido.

Mas, a realidade do Brasil é outra, bem diversa da vista pelo ministro-presidente do STF. Na prática, no dia-a-dia, na vida de milhões de trabalhadores rurais e sem terra, o que predomina para eles é a impunidade dos latifundiários, pistoleiros e jagunços. São camponeses sem terra submetidos, muitas vezes, à condição de vida e trabalho degradantes ou escravas, como acompanhamos, com freqüência pelo noticiário dessa mesma mídia.

O ministro Gilmar Mendes lembrou o Estatuto da Terra e é aí, e em sagrados e muito bem definidos princípios constitucionais que essa questão pega: a função social da propriedade, exigida pelo Estatuto e pela Constituição, não é cumprida.

A lei é desrespeitada, esse princípio de nossa Carta Magna é letra morta e a Justiça não faz nada. Pelo contrário, é lenta e não julga os processos de desapropriação que saem da esfera administrativa e chegam até ela.

Sem falar na impunidade dos que provocam tanta violência. Centenas de crimes, de assassinato, são cometidos no campo contra os sem terra e os trabalhadores e ninguém é julgado. Quando é, com raríssimas exceções é condenado. Está aí um fato que envergonha o Brasil nos foros internacionais de direitos humanos.

Cumpre destacar, também, que os repasses de recursos públicos que tanto preocupam a oposição, a mídia e, nos últimos dias, o ministro, são irrisórios e que a proposta de linha dura – ou seja, “aplica-se a lei” e pronto – do presidente do STF não pode ser aplicada apenas aos sem terra, sob pena da justiça deixar de ser justiça.

À prevalecer, sua linha dura teria que ser aplicada, também, sobre os financiamentos ao latifúndio improdutivo; aos proprietários de terra que violam a lei e não deixam cumprir a função social da terra; aos que fazem desmatamentos ilegais; e aos que possuem terras griladas, e/ou devolutas ocupadas, caso do Pontal do Paranapanema (SP); e sobre governos como o de São Paulo, que durante décadas não arrecadaram de volta as terras ocupadas ilegalmente e agora se recusam a fazer reforma agrária nelas.

Aliás, chama a atenção o momento das declarações do presidente do STF, feitas quando o governador de São Paulo, José Serra, tem que dar respostas às pressões dos sem terra pela reforma agrária no Estado.

Ao mesmo tempo, as mortes de quatro jagunços de uma fazenda em São Joaquim do Monte (PE) devem ser consideradas um assunto da justiça criminal e da polícia civil do Estado. Os sem terra responsabilizados pelo episódio não podem e não devem ser investigadas, processados e julgados em regime de exceção, em rito diferente do seguido nas ações relativas aos crimes cometidos pelos pistoleiros e jagunços que agem sem lei e nem repressão em todo Nordeste e no país.

Principalmente, não se pode pré-julgar e condenar os sem terra e acampados sem conceder-lhes a presunção da inocência e o devido processo legal, principalmente em se tratando de episódio que envolveram “seguranças” da fazenda, designação usada para, muitas vezes, disfarçar pistoleiros e jagunços.

Esses acontecimentos de Pernambuco devem nos levar a uma reflexão: se formos analisar retrospectivamente, todos os antecedentes devem ser a favor dos sem terra, que alegam legítima defesa, e não dos seguranças, já que a lista de trabalhadores e líderes rurais assassinados no Nordeste e Norte é praticamente infindável, sem que ninguém seja punido.

Na discussão-polêmica da semana, de novo voltaram a falar de paternalismo (que o governo teria para com os sem terra), mas é uma aberração ter essa visão num Brasil de tantas desigualdades. Todo mês vemos noticias de pistoleiros que invadem acampamentos, praticam todo tipo de violência, inclusive assassinatos, e ficam impunes.

O ministro vê um suposto paternalismo da sociedade em relação aos sem terra. Soa absurda uma afirmação dessas num país em que a desigualdade e a miséria de milhões convivem com o luxo e a opulência de poucos, de minorias. Fazer a reforma agrária e financiar os assentamentos, portanto, é uma obrigação legal e social, uma imposição ao governo e o atendimento a um direito inalienável dos sem terra e dos trabalhadores. Será, pura e simplesmente, fazer o que manda a Constituição do Brasil. Combater a miséria e a pobreza não é paternalismo, é justiça social.

É claro que nada disso pode ser confundido com conivência ou permissão à violência. Esta deve ser reprimida e punida com o rigor da lei. Mas, em relação a todos e não apenas aos de baixo, sob pena de regredirmos ao Estado absolutista e de se estar impondo impor ao país a justiça de classe.

José Dirceu é ex-ministro da Casa Civil da presidência da República