História de Impunidade
Por Eric Nepomuceno*
Se alguém for ingênuo o suficiente para perguntar até que ponto em nosso país a Justiça pode ser morosa, omissa, ineficaz e injusta, basta observar o caso do coronel Mario Colares Pantoja, da Polícia Militar do Estado do Pará.
Se alguém for ingênuo o suficiente para perguntar até que ponto reina a impunidade neste país de aberrações, basta recordar o caso do coronel Mario Colares Pantoja, da Polícia Militar do Estado do Pará.
O coronel Pantoja é um exemplo dessas mazelas. E pode se tornar um paradigma das nossas aberrações: tudo depende do que for decidido no dia 23 de junho de 2009 pelo Superior Tribunal de Justiça. Guarde bem esse dado, guarde bem essa data.
Pantoja esteve no comando de uma das mais frias e emblemáticas matanças da história contemporânea brasileira – o Massacre de Eldorado do Carajás, na tarde do dia 17 de abril de 1996, quando foram assassinadas 19 pessoas num rincão do Pará.
Quem se debruçar sobre os laudos periciais dos cadáveres chegará, inevitavelmente, à seguinte conclusão: dos 19 mortos, pelo menos dez foram assassinados a sangue-frio, quando já haviam sido dominados, ou estavam feridos e não poderiam fugir e muito menos reagir. As fotos que ilustram os laudos mostram um primor de barbárie: corpos mutilados, cabeças destroçadas, cadáveres estraçalhados. Ninguém foi punido por essa carnificina. Condenado, sim. Punido, não.
À frente da tropa que atacou uma multidão formada por cerca de 2.500 pessoas, em sua maioria mulheres, velhos e crianças, estava o coronel Pantoja. Ele foi o responsável direto pela ação, da mesma forma que o responsável político foi o então governador do Pará, Almir Gabriel, do PSDB, secundado por seu secretário de Segurança Pública, Paulo Sette Câmara, e pelo comandante-geral da Polícia Militar, coronel Fabiano Lopes. Nenhum dos três foi sequer indiciado nos processos abertos após a carnificina.
De aberrações como essa é feita a história de nossos dias. Os mortos, os mutilados, mortos e mutilados ficaram. Tem gente com bala na garganta, bala na cabeça, balas no corpo. Os responsáveis estão livres.
O coronel Pantoja e seu lugar-tenente, o major da Polícia Militar José Maria Oliveira, foram – depois de rocambolescas farsas judiciais – condenados, respectivamente, a 228 e 158 anos de prisão. Ficaram uns nove meses detidos em instalações da Polícia Militar do Pará.
Agora, um dos tantos recursos apresentados pelo coronel Pantoja será julgado pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça. Além de jamais ter sido punido pela matança, Pantoja quer que seu julgamento seja anulado. Como se não bastasse a impunidade assegurada pela ineficiência da Justiça, ele quer mais.
Os argumentos esgrimidos em sua defesa têm a consistência de um pudim de nuvens: a base da sua alegação é que teria havido violação na formulação dos quesitos apresentados aos jurados, porque não foram feitas perguntas específicas por cada morto.
Isso já foi discutido pelo Tribunal de Justiça do Pará, que recusou os argumentos, lembrando que o coronel Pantoja foi acusado de comandar os crimes, e não de ter cometido cada um dos crimes. O recurso que agora será julgado não passa de um artifício, na busca não só da impunidade, mas da confirmação da existência do direito à impunidade. A estas alturas, resta esperar que os que decidam sobre esse recurso não mereçam a classificação irremediável de cúmplices dessa aberração.
O governador que autorizou a ação do coronel Pantoja está livre. O coronel Pantoja está livre. Os oficiais, suboficiais e soldados das tropas da Polícia Militar que realizaram o massacre estão livres. Todos impunes.
Os mortos, mortos estão. Os mutilados, mutilados estão. Os sobreviventes tiveram mutiladas as suas memórias: já não têm sonhos, têm pesadelos.
Estará livre, inteira e impune a nossa memória, se diante de tudo isso não houver nada além do silêncio cômodo e acomodado?
*Eric Nepomuceno é escritor e jornalista (Texto publicado originalmente no jornal O Globo)