Marchar contra as margens que comprimem o rio
Foi o poeta Bertold Brecht quem atentou ao fato: Do rio que tudo arrasta se diz que é violento/ mas ninguém diz violentas as/ margens que o comprimem. Os versos claros caem como luva para a situação vivida hoje por aqueles que não se omitem frente às injustiças e desigualdades. Num contexto em que se acirra a fome dos grandes capitalistas e, conseqüentemente, a exploração dos trabalhadores e a miséria, é fácil e necessário para quem tem o poder apontar culpados: o MST é o vilão da vez. É nesta conjuntura que são realizadas as marchas estaduais deste ano. Em entrevista ao Jornal Sem Terra (nº 292), Ulisses Manaças, integrante da coordenação nacional do MST, reforça a importância dessa mobilização e explica que nunca antes na história Movimento as marchas foram tão importantes. A seguir, confira a entrevista.
Por que o Movimento realiza marchas?
As marchas fazem parte da construção histórica do MST. Realizamos as marchas não só como ato de protesto, para dar visibilidade às nossas reivindicações históricas, mas também porque as marchas conseguem construir uma unidade política e organizativa para o MST. As marchas são um espaço pedagógico muito importante, porque cultivam um conjunto de princípios e valores do Movimento como a solidariedade, a disciplina consciente, a direção coletiva, o espírito de sacrifício. Elas são como um curso de formação itinerante. Todos crescem nesse grande mutirão. Isso está muito presente na história do MST e da classe trabalhadora. Nós incorporamos um elemento que é cultural da luta do povo pela libertação da classe trabalhadora. Vemos as marchas, acima de tudo, como elemento para acender a mística revolucionária, por transformações profundas da sociedade.
Quando surgem as marchas do MST?
As marchas surgem no período em que o MST deixa de ser unicamente um movimento de luta econômica para se transformar de fato num movimento social, que atua em diversas dimensões. O MST quando surgiu, há 25 anos, era o resultado de várias lutas espontâneas pela posse da terra. Mas quando o Movimento percebe que só a posse da terra não é o suficiente para garantir a libertação do campesinato, começamos então a entrar numa luta maior, que é a luta por Reforma Agrária. Isso significa questionar as estruturas repressivas do Estado, a estrutura fundiária e, inclusive, o sistema de civilização adotado pelo capitalismo.
Era também preciso ir até a cidade, para dialogar com a sociedade e fazer pressão sobre o Estado estabelecido. É nesse momento, na virada para os anos 90, que as marchas começam a ser incorporadas. Em 1990, durante o governo de Collor, que reprimiu pesadamente os camponeses, acontece o II Congresso Nacional do MST, em que os Sem Terra resolvem avançar nesse diálogo com a cidade, para estabelecer parcerias. Somente com as alianças de classe que a Reforma Agrária se viabiliza. Era preciso mostrar que aluta pela Reforma Agrária beneficia o conjunto da sociedade brasileira. Logo no congresso posterior, em 1995, o MST adota uma nova palavra de ordem: “Reforma Agrária uma Luta de Todos”. A mais famosa das marchas é a de 1997, um ano após o Massacre de Carajás, quando o MST consegue organizar mais de 100 mil trabalhadoras e trabalhadores, não só do MST, mas também de vários outros seguimentos sociais, da classe operária, funcionários públicos, intelectuais, estudantes. Naquele momento o MST se evidencia como um movimento extremamente disciplinado, que tem um propósito político para além da luta pela terra, ou seja, por uma Reforma Agrária ampla e também por mudanças sociais. A partir daí as marchas passam a ser um símbolo do MST.
Vivemos hoje um período muito difícil, pois a cada dia a criminalização dos Sem Terra e da luta social é mais pesada. Por que é importante retomar as marchas na conjuntura atual?
Neste ano elas [as marchas] assumem centralidade, pois como você observou há uma conjuntura extremamente complexa não só para o MST, mas para o conjunto da classe trabalhadora. É um momento de aprofundamento disso que nós chamamos de criminalização dos movimentos sociais. Vários poderes, de forma articulada, têm combatido sistematicamente o MST e os setores oprimidos que se levantam contra a ordem de miséria estabelecida. Existe uma atuação da bancada ruralista articulada no Congresso Nacional, que luta diuturnamente contra a Reforma Agrária e contra as mudanças democráticas no campo. Existe um Poder Executivo que frustrou a expectativa do povo em relação à realização da Reforma Agrária. E também a ação impetuosa do Poder Judiciário, que tem na figura do presidente do STF, o Sr. Gilmar Mendes, um militante contra a democracia brasileira, contra os movimentos sociais. Mendes é um escolhido das elites brasileiras para ser o porta-voz de uma política conservadora, autoritária e que reprime o povo brasileiro. Por último, temos também a atuação do quarto poder, que é a imprensa. Seu papel é criar um consenso no imaginário da população de que os movimentos sociais são grupos de criminosos, terroristas, violentos, para assim se estabelecer uma autoridade política moral e ideológica que viabilize a repressão, o assassinato de trabalhadores e coisas parecidas. Essa conjuntura, então, aponta para uma necessidade de um diálogo ampliado com o restante da sociedade.
E quais os objetivos prioritários das marchas neste ano?
São basicamente três os eixos fundamentais abordados. O primeiro é fazer uma grande frente de combate a esse processo de criminalização dos movimentos. O momento é o mais grave de toda a nossa história. Existe o latifúndio, a imprensa burguesa, o Judiciário, o Executivo e o Legislativo atuando em frente contra o MST e, por extensão, contra os outros movimentos. Esse processo precisa ser denunciado, e o que vai fazer o contraponto com a imprensa burguesa é exatamente a ação direta, a comunicação direta com a população. O segundo grande eixo é tentar reconduzir a pauta da Reforma Agrária para agenda nacional. No governo Lula, ela não passa de uma política compensatória, para amenizar tensões no campo, principalmente nas regiões onde estão os casos mais emblemáticos de tensões ou conflitos. Ela não é, para esse governo, uma política central para o desenvolvimento econômico, social e cultural do país. Então, o MST quer dialogar com amplos setores para reconduzir a Reforma Agrária para o centro da agenda, algo que só se faz com alianças amplas. Primeiro com outros seguimentos do campesinato: federações e sindicatos. Depois com setores urbanos, especialmente a juventude trabalhadora, a juventude que está desempregada e a classe operária. O terceiro grande eixo é convocar o conjunto dos movimentos sociais, a marchar conosco. O MST quer construir marchas densas, em defesa da democracia, da Reforma Agrária e contra esta crise econômica arquitetada nos grandes centros de poder econômico, pelas nações mais ricas do mundo, que agora querem impor o ônus para os trabalhadores dos países pobres. Com esse grande cordão itinerante, que serão as marchas,
queremos debater com a sociedade as saídas para a crise econômica.
Nos últimos meses, a criminalização do MST tem mostrado sua faceta mais cruel. O Movimento já vinha sendo atacado brutalmente no Rio Grande do Sul e, agora, são os Sem Terra do Pará que estão na mira. Sendo assim, qual a importância dessa mobilização para o Pará e as famílias Sem Terra do estado?
Aqui no estado do Pará nós temos um caso emblemático do que tem sido esse processo de criminalização dos movimentos. Há algumas semanas, por exemplo, trabalhadores atingidos por barragens e pescadores ocuparam o pátio da empresa responsável pelas obras das eclusas da hidrelétrica de Tucuruí, a criminosa multinacional Camargo Correa, para pressionar o Estado a atender uma reivindicação de mais duas décadas, que exige o reconhecimento dos impactos sociais e ambientais das obras de Tucuruí sobre a população local.
Dezoito trabalhadores receberam como prêmio o cárcere. Estão na Prisão de Segurança Máxima da região metropolitana de Belém. Outro exemplo foi o acontecimento do dia 18 de abril. Um dia após os 13 anos do Massacre de Carajás, os trabalhadores do acampamento Wladmir Maiakóvski, na fazenda Espírito Santo, em Xinguara, foram pegos numa emboscada por uma milícia contratada pela agropecuária Santa Bárbara, que é na verdade nome fantasia para os negócios clandestinos que o grupo Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas, tem no campo paraense. Foi uma tentativa de novo massacre. Todos os sete trabalhadores feridos levaram tiros na cabeça, tiros perfurando o pulmão, o abdômen e tiros próximos ao coração. Não eram tiros para intimidação, era uma busca seletiva de eliminação. Isso acontece exatamente porque os grandes bancos estão entrando na agricultura, como forma de acumular riquezas e jogar a população na marginalidade mais cruel e perversa. A marcha, para nós aqui no Pará, será um momento de reforçar essa denúncia, mas acima de tudo de dizer para a sociedade que a Reforma Agrária é a única bandeira que efetivamente pode acabar com os conflitos no campo. O estado do Pará tem sido palco privilegiado da expansão da fronteira agrícola para o agronegócio, que vem com uma gana desesperadora para conquistar novas terras na região, substituir a floresta por pasto e pelo monocultivo de soja. Isso sem contar o forte financiamento de agentes do estado como o Banco da Amazônia, o BNDES e o Banco do Brasil. Eles têm financiado o avanço desse agronegócio que destrói a Amazônia. O Estado está sendo conivente com o maior desmatamento da história da humanidade. Queremos alertar a sociedade de que o Pará está sendo saqueado e destruído pelas forças do agronegócio e transnacionais, com colaboração do Estado brasileiro.
As famílias Sem Terra têm clareza do tamanho das adversidades a serem superadas na luta pela Reforma Agrária no Pará? Com que “espírito” as famílias irão se debruçar na construção da marcha do estado?
Estamos fazendo uma grande incursão em todas as nossas áreas de acampamentos e assentamentos para preparar a mística da construção da marcha. Isso porque ela [a marcha] não é só a caminhada em si, mas a preparação que envolve o conjunto da militância, todas as famílias… Todos contribuem com a marcha. Seja na coleta de recursos para contratar os ônibus que vão levar as famílias até o ponto inicial da caminhada, seja com a doação de alimentos, seja na contribuição voluntária nos debates e reuniões realizados em assentamentos e acampamentos. A disposição das famílias é algo muito positivo. Primeiro porque elas estão vendo os ataques desferidos contra o MST. As pessoas têm percebido esse ataque massivo por meio do rádio, da televisão e pelos jornais, e isso tem indignado as famílias, pois elas têm orgulho de pertencer ao Movimento Sem Terra. Elas sabem que ele é hoje o maior movimento de massas do Brasil. Então, as pessoas têm contribuído de forma muito espontânea para a marcha. Todos e todas afirmam que vão contribuir e construir efetivamente a mobilização. A mística já está instaurada no interior do MST. O clima é de muita euforia e indignação, acima de tudo.