Entidades ruralistas podem ser investigadas
O Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) e o Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop), entidades ligadas aos grandes fazendeiros, também podem ser investigadas pelo Congresso Nacional.
Paralelamente à ofensiva da bancada ruralista pela instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Frente Parlamentar da Terra quer analisar as contas das instituições vinculadas ao agronegócio, que recebem recursos de contribuições compulsórias. Elas estão sob suspeita de gestão irregular.
“Caso tenha a outra CPI [do MST], vou trabalhar num adendo para investigar isso”, afirma o deputado federal Dr. Rosinha (PT-PR), coordenador da Frente Parlamentar da Terra. O Senar, administrado pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), e o Sescoop, presidido pela Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), integram o chamado “Sistema S” – formado por pessoas jurídicas de direito privado que recebem denúncias constantes por falta de transparência na aplicação dos recursos financeiros.
Em busca de dados sobre a administração das entidades, Rosinha protocolou um requerimento à Mesa da Câmara, solicitando informações ao Ministério da Fazenda sobre a movimentação financeira do Senar e do Sescoop. No último dia 30 de setembro, o pedido foi aprovado pela Mesa para encaminhamento ao ministro Guido Mantega. A pasta, que participa da gestão dos serviços sociais, tem até o dia 30 de outubro para enviar resposta.
O deputado quer saber quanto foi repassado ao Senar e ao Sescoop desde janeiro de 2006 até agosto de 2009, com os detalhes das transferências, mês a mês, e as contas de depósito. Exige também informações sobre os resultados de auditorias. “Não existem informações suficientemente publicizadas a respeito”, critica. Para Rosinha, houve “desvio de finalidade” na aplicação do dinheiro. “O recurso recebido tem finalidade de educação. Eles pagam funcionários. Isso já é uma irregularidade”, afirma, referindo-se a casos verificados pelo Tribunal de Contas da União (TCU).
Segundo o parlamentar, requerimento do deputado federal Adão Pretto (PT/RS) – que faleceu em fevereiro deste ano – ao Ministério da Previdência mostra que o poder público arrecadou e transferiu, entre 2000 e 2006, cerca de R$ 884 milhões para o Senar e R$ 230 milhões para o Sescoop. O representante da Frente Parlamentar da Terra afirma que parte desse montante foi direcionada ao custeio da “máquina” das entidades patronais. “Caso seja mantida [a suspeita de fraude], vou pedir para a minha consultoria jurídica fazer análise se cabe processo”, diz Dr. Rosinha.
No Senado, a Comissão de Meio Ambiente, Fiscalização e Controle (CMA) também aprovou no último dia 29 de setembro requerimento do senador João Pedro (PT-AM) para o TCU auditar as contas do Senar nacional. Em discurso no plenário da Casa, João Pedro lembrou que o MST já enfrentou CPIs e criticou o foco adotado pelos ruralistas. “Esta Casa poderia dar prioridade a outros temas relevantes, nacionais, latino-americanos, mas parar para investigar, para tentar criminalizar o MST, é inaceitável”.
Contas
Os relatórios do TCU, que audita as unidades regionais do Senar e do Sescoop, servem como principal subsídio ao parlamentares. As análises realizadas pelo órgão mostram indícios de desvio de finalidade na aplicação de recursos, manutenção na folha de pagamentos de funcionários que prestam serviços em outra instituição, ausência de licitação na realização de despesa com transporte de pessoal, contratação irregular de pessoal e transferências ilegais de recursos públicos para entidade privada, fato que tem causado “estranheza” às equipes de fiscalização e pode “confundir ainda mais a barreira entre o público e o privado” nessas entidades.
Foi o que aconteceu, na avaliação do TCU, na unidade de Rondônia (Senar/RO), área de expansão do agronegócio. Na auditoria feita pela Secretaria Federal de Controle Interno referente à prestação de contas de 2002, foi constatado que Francisco Cabral exercia a presidência do Senar/RO e da Federação da Agricultura e Pecuária de Rondônia (Faperon), autorizando transferências irregulares entre as unidades, que totalizaram R$ 145 mil. Em julho do ano passado, o TCU condenou Cabral, cinco membros do conselho administrativo do órgão e a Faperon ao pagamento de R$ 365,6 mil.
Segundo o ministro Augusto Sherman, relator do processo, Francisco “prestava contas a si mesmo”. “Não se pode admitir que os responsáveis estavam convencidos de que era legítima a entrega de valores a uma entidade privada, sem amparo de qualquer termo de convênio, seguido de um ajuste de fachada, com a clara intenção de conferir cobertura a ato francamente ilegal”, aponta o ministro. O relatório identifica ainda despesas elevadas com combustível, no valor de R$ 105,9 mil, e admissão sem processo de seleção externo, inclusive de parentes do superintendente e do contador do Senar/RO.
Diante disso, o TCU determinou ao Senar/RO que adote as providências necessárias para corrigir os problemas, entre elas a adoção de processo seletivo público. Francisco Cabral ainda teve que pagar, solidariamente com a Faperon e com José Oliveira Rocha, ex-gestor financeiro da entidade, R$ 206,6 mil e multa de R$ 5 mil. Os membros do conselho foram também multados em R$ 3 mil. Os acusados recorreram da decisão.
Desde 2002, a unidade está sob intervenção da administração nacional do Senar. Segundo o superintendente geral da CNA, Daniel Carrara, foi instaurada uma “junta governativa”. “A gestão é feita diretamente pelo conselho nacional do Senar”, explica. Segundo ele, a medida visa solucionar “incorreções” de controle e procedimentos, por meio da implementação do regulamento de licitações do Sistema S, do aprimoramento na organização e de uma consultoria acerca de princípios da administração privada.
Natureza pública
O TCU contesta, no entanto, a adoção integral dos “princípios da administração privada” nessas entidades. Um exemplo está no Processo TC 010.247/2004-4, que aborda o pagamento de diárias em atividades do Senar. O tribunal reforça que o Senar e os demais serviços autônomos são “custeados por contribuições de natureza parafiscal, recolhidas compulsoriamente e caracterizadas como dinheiro público”. Segundo o tribunal, as entidades “estão sujeitas aos princípios gerais que norteiam a execução da despesa pública”.
A partir desse entendimento, que baliza dezenas de processos envolvendo o Senar e o Sescoop, o TCU aponta indícios de irregularidades nas unidades regionais. As suspeitas têm resultado em procedimentos investigativos abertos no tribunal. Algumas prestações de contas são aprovadas “com ressalvas”. Em outros casos, há multas aos administradores. Os apontamentos feitos pelas equipes de auditoria permitem visualizar aspectos gerais sobre a gestão administrativa e financeira dessas entidades.
No Rio Grande do Sul, por exemplo, o relatório do tribunal sobre o Senar/RS acusa o pagamento de despesas da Federação da Agricultura do Estado (Farsul), inclusive a participação na feira agropecuária Expointer, realizada em 1998. Vários funcionários foram contratados para atuar como assessores ou técnicos da Farsul, mas recebiam salários do Senar/RS. Entre eles, constavam da folha de pagamento do Senar o consultor jurídico Nestor Fernando Hein, e Taylor Favero Guedes, técnico de nível superior.
Em todos os estados, o presidente da Federação Estadual da Agricultura é também o presidente do conselho administrativo do Senar estadual. No caso do Rio Grande do Sul, Carlos Sperotto dirige a federação local desde 1997 – ele está no quarto mandato consecutivo. O TCU já recomendou ao conselho deliberativo e à administração central do Senar que reavalie essa prática que concentra os poderes da unidade estadual da entidade e da presidência das representações patronais ruralistas numa mesma pessoa.
O Sescoop/RS também já teve denúncia de possíveis irregularidades praticadas em 2000. De acordo com o TCU, a entidade transferiu dinheiro para a Organização das Cooperativas do Estado do Rio Grande do Sul (OCERGS), utilizando-se de operações que apresentam indícios de triangulação de recursos. Segundo informações do Acórdão nº. 1646/2004, esse aporte de recursos para a OCERGS teria como finalidade dar condições financeiras a essa entidade para que pudesse cumprir com dois contratos com a OCB.
Esses contratos seriam originários de composição de dívidas da OCERGS com a OCB, sendo o primeiro de R$ 384 mil e o segundo de R$ 465 mil. “Não há possibilidade de se identificar qual foi o destino dado aos recursos repassados pelo Sescoop/RS, para a realização dos convênios com as cooperativas, em face da não comprovação da prestação de contas”, concluiu o relatório.
Em fevereiro de 2003, a 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) determinou o afastamento da presidência e da superintendência da entidade no Estado, respectivamente, Vicente Joaquim Bogo e Érico André Pegoraro. Na ocasião, o relator do caso no tribunal, desembargador federal Edgard Lippmann Júnior, ressaltou as “incontáveis” irregularidades ocorridas na gestão do Sescoop/RS entre 2001 e 2002.
Sistema S
Em agosto do ano passado, a Coordenadoria Nacional de Combate a Irregularidades Trabalhistas na Administração Pública (Conap) divulgou balanço das ações movidas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) em todo o país contra o “Sistema S”, cuja principal fonte de recursos é a contribuição patronal de 2,5% sobre a folha de empregados. Na ocasião, o MPT ajuizou 70 ações civis públicas em 15 estados contra várias entidades por contratação irregular de funcionários, entre elas o Senar e o Sescoop.
Os procuradores entendem que os recursos utilizados são decorrentes de contribuições parafiscais recolhidas compulsoriamente pelos contribuintes e esses valores podem ser caracterizados como dinheiro público. Por isso, a forma de contratação deveria obedecer aos critérios do art. 37 da Constituição (impessoalidade, moralidade e publicidade), com a adoção de processo seletivo público transparente. As entidades contestaram as ações.
“Acho que concurso público não é a forma mais eficiente de contratação de pessoas. Temos que ter a eficiência da instituição privada”, afirma o superintendente geral da CNA, Daniel Carrara. O Senar, diz ele, “contrata muito pouco” e conta na sede central em Brasília com cerca de 50 funcionários. Nos estados, seriam “no máximo 400 pessoas”. Nas contas de Daniel, um milhão de pessoas em média por ano são capacitadas em todo o Brasil.
Daniel não soube informar, porém, qual é o orçamento do Senar para 2009. Dados do site da entidade apontam que, em 2008, as receitas realizadas totalizaram R$ 311,6 milhões. O superintendente diz que o Senar usa parte do que recebe para manter estrutura e pagar salários. “Nosso dispositivo regimental diz que 20% do nosso orçamento é utilizado para atividade-meio, a parte administrativa das execuções”, explica. “Contribuição compulsória não tem característica de dinheiro público. O Senar não é uma instituição pública. É vinculada à classe empresarial e tem característica privada”.
Pressão
A discussão sobre o caráter das entidades rurais se dá num ambiente de tensionamento político. A bancada ruralista investe na segunda tentativa para instalar uma CPI que investigue supostas irregularidades no repasse de recursos ao MST. Os líderes da oposição dizem ter o número mínimo de assinaturas, mas ainda não protocolaram o pedido. No início de outubro, após pressão do governo, parlamentares aliados retiraram apoio ao projeto e derrubaram a criação da CPI. A idéia é encabeçada pela senadora Kátia Abreu (DEM-TO), presidente da CNA, que visa criar uma comissão mista (deputados e senadores).
Responsabilizado por gerar conflitos relacionados à histórica concentração fundiária brasileira, o MST vem sendo acusado de malversação de recursos públicos. Não será a primeira vez que o movimento social é investigado. A organização já teve o sigilo quebrado duas vezes no Congresso. Em 2005, no auge dos ataques políticos, a CPMI da Terra chegou a aprovar um relatório que defendia classificar as ocupações de terras como “crime hediondo”.
Como estratégia para frear o avanço dos ruralistas, a Frente da Terra se volta agora para os serviços rurais administrados pela CNA e a OCB, as duas principais entidades de representação dos produtores rurais do país. O Sescoop atua no monitoramento e desenvolvimento das cooperativas. Já o Senar desenvolve ações de formação profissional no campo. A entidade se define como uma “instituição de direito privado, paraestatal”. Para Dr. Rosinha, o Senar “é a principal origem do dinheiro público administrado pela CNA”.
Liberdade privada
As eventuais mudanças na estrutura administrativas das entidades também esbarram na força da bancada ruralista. O grupo se articulou na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do Senado para rejeitar o projeto de lei (PLS 614/2007), no último dia 6 de outubro. De autoria do então senador Siba Machado (PT-AC), o texto propõe que o Senar seja organizado e administrado por uma diretoria, eleita para um mandato de três anos, sem possibilidade de reeleição, sendo que o cargo de presidente seria escolhido de forma alternada, entre representantes da CNA e da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), formada por agricultores familiares.
Daniel Carrara, que era contra o projeto, diz que a entidade tem o “melhor relacionamento possível” com as federações dos trabalhadores e com a Contag – que conta com um terço do conselho do Senar. O coordenador afirma, porém, que todas as entidades do “Sistema S” foram criadas “para atender os anseios do empresário e por isso é paga por eles”. “O empresário desconta da sua renda para pagar nossa instituição e ter profissionais mais bem capacitados para atender suas demandas”, diz.
Já o presidente do Sescoop e da OCB, Márcio Lopes de Freitas, diz que a entidade já tem “transparência forte”. Ele acredita que os recursos parafiscais são devolvidos ao próprio sistema via capacitação. “[O dinheiro] não é da União. É das cooperativas. E é arrecado por processos públicos”, explica. Márcio também admite que 20% do orçamento anual de R$ 120 milhões do Sescoop é utilizado na atividade-meio e 80% na atividade-fim. “Como vou prestar contas se não tiver equipe administrativa que controle isso?”, alega.
Em relação às ações movidas pelo MPT e às críticas dos relatórios do TCU – que acusam a falta de transparência na contratação de pessoal -, o presidente do Sescoop alega que se trata de uma “questão jurídica” e que está disposto a prestar esclarecimentos no Congresso Nacional, caso seja convidado. “Eles querem impor os mesmos processos de contratação de serviços públicos. Somos contra. Não entendemos que a entidade seja pública. Queremos ter a liberdade operacional da entidade privada”, declara.