“Direitos humanos não têm a menor importância para nossas classes dominantes”, diz jurista
Os militares e o ministro da Defesa, Nelson Jobim, acalmaram os ânimos após o presidente Lula modificar, no último dia 13/1, um termo no 3º Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). O termo “repressão política” foi retirado justamente do trecho que se refere à apuração dos crimes contra os direitos humanos cometidos durante a ditadura militar no Brasil [1964 – 1985].
A omissão do termo abre precedentes para que também sejam investigados e punidos os opositores do regime ditatorial naquela época.
Para o jurista Fábio Konder Comparato, o presidente Lula é “o gênio da conciliação”. Em entrevista à Radioagência NP, Comparato critica a concessão feita aos militares e desmistifica a idéia de que existe respeito aos direitos humanos no Brasil.
Radioagência NP – Comparato, por que houve por parte do presidente Lula essa concessão aos militares em retirar o termo “repressão política” do programa?
Fábio Konder Comparato – Sempre pensei que o presidente Lula comandasse os ministros e não o contrário. No caso do presidente, ele faz acordo com qualquer pessoa e já disse que negociaria até com Judas. Agora, eu não entendo porque o presidente recuou. Ele tem 80% de aprovação popular e o ministro Nelson Jobim não é, certamente, o único político do PMDB que pode ocupar o cargo de ministro da Defesa. Na verdade, a Comissão da Verdade não tinha eficácia nenhuma, seria criada depois que um grupo de trabalho apresentasse um projeto de lei ao Congresso Nacional e este, por sua vez, aprovaria ou não este projeto. Durante anos discutiu-se esse assunto. A montanha pariu um camundongo. Agora, por que razão os militares implicaram com isso? A meu ver, para mostrar que eles estão acima do presidente.
O ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Paulo Vanucchi, chegou a afirmar que os setores conservadores fizeram críticas sem ao menos terem lido o programa. Como você avalia esse desconhecimento por parte desses setores?
A questão dos direitos humanos não tem a menor importância para as nossas classes dominantes. É uma espécie de fachada para mostrar ao estrangeiro que somos civilizados e respeitamos os valores éticos. O Brasil tradicionalmente nunca respeitou os direitos humanos. O que existe, como sempre, é uma dupla face do nosso regime político: exteriormente somos responsáveis, procuramos defender os grandes valores da convivência humana; internamente, temos um pequeno grupo que manda [no país], que não quer saber de réplica e trabalha unicamente em seu próprio benefício. O povo brasileiro nunca contou politicamente.
A regulamentação da imprensa também abordada pelo programa gerou polêmica. Atualmente, que papel cumprem os monopólios de comunicação?
Hoje, a grande arma de nossas classes dirigentes é o oligopólio dos meios de comunicação de massa. Ou seja, um espaço público apropriado por grandes empresários para o seu benefício próprio. É este o principal problema do Brasil. Só eles podem manipular a opinião pública, só eles podem informar! Veja no caso da reforma agrária. Cerca de 80% da população brasileira é urbana, não conhece e geralmente não se interessa pelos problemas do campo. Então, as classes dirigentes podem dizer qualquer coisa através da televisão ou da grande imprensa que o povo aceita. Quem é que pode responder a isso? Nós vamos responder por meio de quais veículos? A grande ágora dos gregos [o espaço público] tornou-se o quintal dos nossos grandes empresários.
Por meio da grande imprensa, os empresários do agronegócio afirmaram que a instalação de uma comissão de conciliação para mediar os conflitos relacionados à terra poderia aumentar a violência no campo brasileiro. Quais as razões dessa oposição?
Os latifundiários sempre foram donos da terra impunemente e a noção de função social da propriedade nunca entrou nos nossos costumes. Portanto, essa questão é letra morta da Constituição. Os dois programas anteriores de direitos humanos que foram aprovados durante os dois governos do Fernando Henrique Cardoso tinham propostas muito mais sérias do que esta que consta no 3º PNDH. E naquela época, ninguém protestou, rasgou as vestes e pôs cinzas na cabeça e nem disse que estávamos na iminência de uma revolução comunista. Todo mundo sabia que, na verdade, esses projetos de lei iriam para o Congresso e lá o grupo ruralista domina e impede que se faça justiça.
É possível esperar que o programa dê uma nova luz à aprovação dos índices de produtividade do campo?
Índices de produtividade tem que ser atualizados pelo Poder Executivo. Mas o presidente Lula não tem coragem de enfrentar os grandes empresários rurais. Desde 1975, os índices não são atualizados. Os grandes empresários da agricultura – que são agricultores, segundo o ministro Ronald Stephanes – alardeiam que a agricultura capitalista aumenta extraordinariamente a produção do campo. Então, não tem que temer a atualização dos índices de produtividade. Eles conseguem impedir que o latifúndio seja minimamente regulado de acordo com as exigências da dignidade humana. O Brasil é o segundo país de maior concentração de propriedade agrária do mundo. Evidentemente, não é o governo Lula que vai começar a enfrentar esse problema.
O Congresso colocará em votação Projetos de Lei que surgirem a partir do programa. Os movimentos sociais e as entidades de direitos humanos devem ter algum tipo de expectativa?
Não devem esperar nada. Aliás, se quiserem esperar, devem esperar sentados. O que é possível fazer é ingressar com ações no Supremo Tribunal Federal para a aplicação da Constituição. Isso significa colocar determinados assuntos na ordem do dia. Temos também que denunciar as situações de desrespeito às organizações internacionais de proteção dos direitos humanos. Em casos extremos, temos que apresentar denúncias, inclusive, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos.