CPI do MST ou do agronegócio?
Por Egydio Schwade
A CPI do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), é a maior iniqüidade que o Congresso Nacional já produziu, pois não há outra necessidade maior neste país do que a Reforma Agrária que o MST a duras penas vem realizando e que o Estado, há mais de 50 anos, se impôs, por lei.
Tem sim, uma CPI muito urgente de se fazer, que é a CPI do agronegócio. Terras públicas griladas ou irregularmente privatizadas; biodiversidade em grandes extensões destruídas; terra exposta ao sol, à erosão e envenenada que levará anos e fortunas para ser recuperada; alimentos cultivados em meio a nuvens de veneno, contaminando trabalhadores que os produzem; alimentos envenenados levados ao comércio, nacional e internacional, sem ética, forçando os consumidores a ingerirem produtos envenenados e transgênicos. Eis o agronegócio, um sistema de produção iníquo, financiado pelo Governo e que mereceria uma CPI Parlamentar. Mas como esta é utópica em um Congresso dominado pelos donos do agronegócio, uma CPI-Popular se torna necessária conduzida pelo FSM (Fórum Social Mundial), juntamente entidades nacionais de comprovada representatividade e idoneidade, como CONIC, CNBB e OAB…
1º. Capitulo: Levantamento nacional da grilagem de terras da União e sua Privatização.
Alguns exemplos.
Nos anos de 1940, o Governo transferiu irregularmente à Aracruz Celulose, no Espírito Santo, 40.000 ha. de terras tituladas aos índios Tupiniquim em 1611. Onde os indígenas praticavam uma agricultura variada e sustentável e onde caçavam e coletavam animais e frutos de subsistência na mata atlântica nativa, o conglomerado multinacional Aracruz Celulose S/A depredou a floreta e esparramou plantações de eucalipto, impossibilitando a vida, ou seja, o abrigo e a sobrevivência de homens, animais e da diversidade vegetal.
Semelhantemente, no interior paulista o Estado brasileiro privatizou as terras Kaingang para o agronegócio. Este em poucos anos sobrepôs à floresta nativa dos índios, o “deserto verde” da monocultura de cafezais, laranjais e canaviais. A falada Cutrale é apenas um exemplo.
O sul do Mato Grosso do Sul foi, desde tempos imemoriais, habitat dos Guarani e, até recentemente, coberto por extensas florestas, ricas em madeiras de lei e biodiversidade. Essas terras foram privatizadas, primeiro a madeireiros e depois a fazendeiros monocultores que hoje mantêm os índios Guarani reprimidos por milícias de jagunços armados.
Outro caso exemplar de grilagem de terras ocorreu no final dos anos 60 e início dos anos 70, quase simultaneamente, no Noroeste de Mato Grosso, no Nordeste do Pará e no Norte do Amazonas. Foi levado a cabo por dois irmãos paulistas, Fernando e Sérgio Vergueiro, respectivamente, advogado e Engenheiro-agrônomo que se especializaram nesse tipo de atividade em cursos de extensão na Southwestern Louisiania University e de administração de empresas de crédito imobiliário na USAID, excelente ambiente para especialização em grilagem de terras, pois os norte-americanos são conhecidos profissionais no assunto.
Em 1967, aproveitando o mais novo programa do Governo Militar, o dos “Ïncentivos Fiscais”, os irmãos Vergueiro fizeram a sua primeira investida no Noroeste de Mato Grosso, entre os rios Sangue e Arinos, em terras dos índios Irantxe, Beiços-de-Pau e Rikbaktsa, onde implantaram as fazendas Agropecuária Agrosan, frequentemente acusada por uso de mão-de-obra escrava, a Membeca e outras. Até 25-01-71 já haviam realizado 43 projetos de grilagem de terras na Amazônia e naquele ano de 1971 ambicionavam conseguir realizar outros 40, conforme o jornal BANAS-25-1-71, incentivador desse tipo de ação ilegal. Com os lucros adquiridos, através dos “incentivos fiscais” (na ordem de Cr$ 352,5 milhões) expandiram entre 1967 e 1971 o seu escritório de São Paulo para Cuiabá, Belém, Brasília e Manaus. As terras eram escolhidas e demarcadas do alto de aviões e depois tituladas nos fóruns locais. Assim só no mês de maio de 1970, demarcaram 53 “fazendas” de 3.000 ha. cada uma, em terras dos índios Waimiri-Atroari, no hoje município de Presidente Figueiredo/AM. O resultado está aí, povos indígenas perderam suas terras e centenas de agricultores esperando os seus títulos há mais de 20 anos.
Em Roraima 7 povos indígenas lutaram 32 anos para reaver as terras da Reserva Raposa Serra do Sol griladas por fazendeiros com a colaboração de políticos, funcionários corruptos da FUNAI e membros do Judiciário local.
As terras dos ladrões públicos, Daniel Dantas e Nagi Nahas, no Pará, objeto de Reforma Agrária, esperam há meses pela decisão óbvia do Governo Federal.
Finalmente, sobre a origem do latifúndio da representante maior do agronegócio no Congresso, Kátia Abreu e Presidente da Confederação Nacional de Agricultura-CNA, órgão máximo do agronegócio, se lê em Carta Capital, 25-11-2009: “sob o título ‘Kátia Abreu, a rainha do latifúndio improdutivo’, o repórter Leandro Fortes descreve como a senadora e presidente da Confederação Nacional da Agricultura, ‘com a espada da lei nas mãos e a aquiescência de eminências do Poder Judiciário, tem se dedicado a investir contra trabalhadores sem-terra’, na verdade em causa própria.
Beneficiária de um esquema de favores, por parte das autoridades locais, a senadora, de discurso aparentemente modernizador e legalista, é investigada pelo Ministério Público Federal por ter conseguido transformar terras antes produtivas em áreas onde nada se planta ou se cria. Na prática, a musa do agronegócio, diz a reportagem, estaria agindo como os acumuladores tradicionais de terras que atentam contra a modernização capitalista do setor rural brasileiro.
A história tem início em 1999, quando amigos do governador Siqueira Campos, entre eles a senadora, o irmão dela e demais da entourage, 47 ao todo, foram contemplados com a distribuição de 105 mil hectares, declarados de “utilidade pública” pelo Executivo, por suposta improdutividade. Os felizardos, inscritos na lista da federação de agricultura do Estado, cuja presidência era então ocupada por Kátia Abreu, pagaram pela benesse o preço simbólico de R$ 8,00 por hectare, o que permitiu à senadora apropriar-se de cerca de 1,2 mil hectares.
Ocorre que em partes das terras cedidas por Siqueira Campos a Kátia Abreu, no município de Campos Lindos, vivia o agricultor Juarez Vieira Reis, que embora tivesse nascido no local e lá trabalhado por 50 anos no cultivo da terra, foi dela expulso num ato classificado pelo Ministério Público Federal do Tocantins de “grilagem pública”. Deu-se, assim, uma revolução agrária às avessas, ou seja, a terra antes cultivada por Reis com arroz, feijão, milho, mandioca, melancia e abacaxi, converteu-se, em mãos de Kátia Abreu, num latifúndio improdutivo, uma vez que nos 1,2 mil hectares declarados de sua propriedade não há o menor sinal de atividade agrícola ou pecuária.
Reis não se deu por vencido. Tinha a favor dele documentos de propriedade, um deles datado de 6 de setembro de 1958 e originário da Fazenda de Goiás, antes da divisão do Estado. O documento reconhece as terras da família em nome do pai, Mateus Reis, a partir dos recibos dos impostos territoriais de então. De posse dos papéis, Reis tentou barrar a desapropriação na Justiça.
Foi quando a senadora, apoiada na oligarquia local, partiu para a ofensiva. Ignorando a ação de usucapião em andamento desde o ano 2000, que dava respaldo legal à permanência de Reis na área, ela entrou com uma ação de reintegração de posse e, sem surpresa para ninguém, teve seu pedido deferido.
Reis foi expulso sem direito à indenização por qualquer das benfeitorias que construiu ao longo de cinco décadas de ocupação da terra, aí incluída a casa onde vivia com a família, cisternas, culturas, árvores frutíferas, pastagens, galinhas, jumentos e porcos.
Há cinco meses, Reis luta para convencer o Tribunal de Justiça de Tocantins a julgar tanto a ação de usucapião quanto o pedido de liminar impetrado há seis anos, para assegurar a volta da família à sua terra.
É preciso mostrar ao Governo Federal que não se pode legalizar uma terra grilada. Que terra roubada da União ou transferida ilegalmente à latifundiário deve ser objeto de Reforma Agrária, ou devolução à comunidade ou povo, quando se trata de terra indígena ou quilombola.
Uma Comissão Parlamentar de Inquérito precisaria iniciar com um exaustivo levantamento da grilagem de terras pelo latifúndio, depredador da biodiversidade e pelo trato criminoso da mãe-terra. Ninguém pode ser um dono arbitrário dos bens da terra, mas apenas administrador de um bem que pertence à vida em toda a sua diversidade.
*Indigenista