Assassinato de líder comunitário mobiliza movimentos contra o agronegócio no CE
Por Helena Martins
Em vez do silêncio, o canto. Canto embargado pela dor e pelo cansaço, mas fortalecido pelas muitas vozes que se juntaram às dos trabalhadores e trabalhadoras Sem Terra. Ali, em meio ao acampamento do MST, em frente à sede Incra no Ceará, centenas de integrantes de movimentos sociais reuniram-se para homenagear o agricultor e líder comunitário José Maria, na data que marcava a passagem do sétimo dia de seu assassinato , no Sítio Tomé, localizado em Limoeiro do Norte, na divisa com o município de Quixeré, na Chapada do Apodi, interior do estado.
De mãos dadas, os participantes da celebração pactuaram: “nós decidimos. De agora em diante, temeremos mais à miséria do que à morte”. Com tal força, ressoaram as vozes, que do medo fez-se a confiança; da dor pela perda, a coragem para seguir na luta. Afinal, como lembraram o coro e os acordes dos violeiros, “não precisa ser herói para lutar pela terra, pois, quando a fome dói, qualquer homem entra em guerra”. Assim, multiplicaram-se Josés Marias, Dorothys, Franciscos, Margaridas. Todos eram os mártires de Carajás e de tantas outras batalhas, na insistência de lutar por um outro mundo, um outro projeto de desenvolvimento e de sociedade.
Sobre o asfalto preto transmutado em chão sagrado, foi celebrada a missa pelo padre Jéferson Carneiro da Silva, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), e por mais sete padres ligados aos movimentos sociais. Padre Jéferson conclamou a todos a “não esmorecer para manter de pé a luta em favor da vida” e a “ gritar que os pobres continuam sendo a classe privilegiada de Deus, apesar de os poderes humanos os relegarem a nada. Precisamos colocar de pé outra vez a voz dos que são massacrados e criminalizados”. E exaltou a importância da unidade na luta.
Ao ato religioso, seguiram-se pronunciamentos de lideranças dos movimentos, que destacaram a necessidade da apuração rigorosa do assassinato. Mas é preciso, ainda, impedir que José Maria morra pela segunda vez, deixando-se que chegue à morte a sua peleja. Por isso, Lourdes Vicente, integrante da Coordenação Estadual do MST, puxou o grito que ecoou por toda a avenida: “a cada companheiro tombado, nenhum minuto de silêncio, mas toda uma vida de luta!” Estava selado o compromisso de todos na continuidade do combate ao uso dos agrotóxicos e na defesa das comunidades tradicionais da região.
O Homem
“Se eu morrer, continuem a minha luta. Se fizerem isso, já terá valido a pena”, costuma dizer o ambientalista, conforme lembrou, emocionado, o trabalhador Ricardo Cassundé, que acompanhava as lutas de Zé Maria do Tomé, como era conhecido. Ele tinha 44 anos quando foi alvejado por 19 tiros, destruidores tal qual a matadeira usada contra trabalhadores que, em outros tempos, pelos sertões da Bahia, também tentaram resistir à opressão.
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Nos últimos anos, foi presidente a Associação dos Desapropriados Trabalhadores Rurais Sem Terra da Chapada do Apodi e denunciou a desapropriação dos agricultores devido à implantação de grandes projetos de irrigação na região do Vale do Jaguaribe. Zé Maria também denunciava o uso de agrotóxicos e a pulverização aérea que, há dez anos, têm contaminado famílias, terras, animais e, sobretudo, a água da região.
“Ele estava descendo a serra, vindo de mais ações, como era tão comum em sua vida”, lamenta Ricardo, ao falar dos momentos anteriores ao assassinato. Dele não foi levada a moto, mas sim a pasta que continha documentos, fotos e outros materiais que comprovavam as denúncias que fazia. Essa é mais uma característica que fortalece as suspeitas de que tenha se tratado, de fato, de uma execução decorrida da atuação política do agricultor. A isto se soma o fato de que José Maria já vinha recebendo ameaças anônimas, que chegaram a ser registradas duas vezes por meio de boletins de ocorrência, de acordo os advogados que acompanham o caso.
A Terra
O professor José Ernani Mendes, da Faculdade de Filosofia Dom Aureliano, localizada em Limoeiro do Norte, explica que a Região do Jaguaribe tem se caracterizado, nas últimas décadas, por um elevado nível de concentração de terra. “Na Chapada do Apodi, o projeto de fruticultura que vem sendo desenvolvido é um projeto marcadamente ocupado pelo agronegócio. Para se instalar lá, o agronegócio expulsou pequenos agricultores. Há estudos importantes, feitos por professores da universidade, constatando esse processo de concentração por parte das grandes empresas do agronegócio, que ocuparam, inclusive, terras da União”, detalha.
Junto ao agronegócio, chegou à região também o agrotóxico, que tem ameaçado a vida em todas as formas. Mendes explica que as empresas fruticultoras estão utilizando a pulverização aérea de forma indiscriminada, o que tem causado a contaminação da água que abastece a comunidade. Os produtos têm gerado irritações na pele e nos olho dos habitantes. “A gravidade da contaminação é verificada no aumento do número de casos de câncer na região, que já é alarmante”, afirma o professor.
A morte do líder comunitário traz à tona conflitos que não são novos. Já em 2008, funcionários da Fazenda Ouro Verde, propriedade da transnacional Del Monte Fresh Produce Brasil Ltda. localizada na Chapada do Apodi, paralisaram suas atividades e denunciaram as péssimas condições de trabalho às quais eram submetidos. Os trabalhadores da Del Monte, uma das maiores empresas do setor de produção e exportação de frutas instaladas o Brasil, tinham contato constante com os agrotóxicos, causando doenças em muitos deles.
A Luta
A morte do líder comunitário expõe à sociedade os conflitos que ocorrem há mais de uma década na Chapada do Apodi: a luta contra o agronegócio e o uso de agrotóxicos e em defesa dos trabalhadores que têm sido expulsos de suas moradias devido à chegada e à ocupação das terras por parte das grandes empresas. As denúncias levaram instituições como a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o Ministério Público, a Justiça Federal e diversas universidades a analisar os problemas na Chapada.
Apesar da perseguição, José Maria havia conquistado vitórias: ano passado, a Câmara Municipal de Limoeiro do Norte aprovou uma lei que proíbe a pulverização aérea. No entanto, a estudante de direito Maiana Maia, que acompanha o caso, explica que apesar da conquista popular, a pressão dos interesses econômicos e políticos levou o prefeito da cidade a apresentar um Projeto de Lei que, entre outras definições, propõe ser revogada a lei que proibira a pulverização por aeronaves.”Diante da possibilidade desse retrocesso na luta, as comunidades pressionaram para que se realizasse uma Audiência Pública que tratasse especificamente do tema – pulverização aérea – com pesquisadores, integrantes do Ministério da Agricultura, do Ministério Público e da sociedade civil como um todo.”, explica Maiana. A audiência ocorrerá, na Câmara de Limoeiro, no dia 12 de maio, e dela participarão diversos movimentos sociais.
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Essa luta agora será encampada por muitos outros Josés. Para o ambientalista e advogado João Alfredo, vereador de Fortaleza pelo PSOL, a morte de José Maria assemelha-se à de Chico Mendes e a de Irmã Dorothy, pois todos sabiam que iriam morrer, mas não desistiram da luta. “Por isso, a nossa obrigação é assumir essa luta do José Maria, a luta contra o sistema que explora os trabalhadores e destrói a natureza. Nós não deixaremos que calem essa voz”, garante Alfredo. “É hora dos movimentos se unificarem em torno da luta por mudanças estruturais no país”, defende Alessandro Nunes, assessor técnico da Cáritas Brasileira Regional. Assim, vão verter-se em verdade os dizeres da faixa exposta durante a missa em homenagem ao agricultor: “se me matarem, ressuscitarei na luta do meu povo”.
Crédito das fotos: Camila Garcia
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