O que está em jogo
Do SOS Florestas
A primeira versão do Código Florestal foi aprovada em 1934. A lei foi pensada por naturalistas e pessoas que, mesmo naquela época, tinham ampla visão da importância das florestas. O código surgiu com o intuito de racionalizar o rápido processo de derrubada das florestas nativas, para garantir reservas de lenha – como é alegado –, mas também para preservar as fontes de água, o regime de chuvas e evitar a ocupação de áreas de risco.
Mesmo com a atualização em 1965, a lei ainda tem sua concepção inalterada, embora vários de seus instrumentos tenham sido aprimorados. Desde a década de 1930 – governo de Getúlio Vargas – já havia a obrigação de se preservar as beiras de rio, os topos de morro, as encostas íngremes e de manter uma parcela da vegetação nativa existente no imóvel (que era de 25% à época), excluídas as áreas de domínio público, que tinham regras diferentes). Com o aprimoramento da legislação, as áreas a serem protegidas nas propriedades passaram a se chamar: Áreas de Preservação Permanente – APP e Reserva Legal – RL.
Apesar de antiga, ela não é uma lei velha. Também não é uma lei equivocada em seus princípios, como vem sendo difundido por determinados setores da sociedade. Independente das razões determinantes que guiaram os políticos da década de 1930 a aprová-la, a ciência já demonstrou que a manutenção de parcelas de vegetação natural na paisagem rural é fundamental – e mesmo urbana – para garantir a conservação da biodiversidade e a continuidade na oferta de serviços ambientais básicos, como a ciclagem da água, de nutrientes, do carbono, a contenção de ventos, a existência de polinizadores, o controle de pragas, dentre outros.
Além disso, é o Código Florestal a única lei nacional que veta a ocupação urbana ou agrícola de áreas de risco, como é o caso de encostas íngremes, áreas alagadiças ou sob a influência de dunas. Tragédias como as recentemente ocorridas no Vale do Itajaí (SC) e Rio de Janeiro (RJ), com mortos e prejuízos decorrentes de deslizamentos e enchentes, poderiam ser evitadas se a lei fosse cumprida. E se ela deixar de existir, os problemas seguramente se multiplicarão.
Os ruralistas contra a lei
Apesar de ser uma lei importante para a sociedade, há uma imensa pressão de parte do setor agropecuário por sua modificação. A razão da insatisfação é que, após muitas décadas de esquecimento, ela começou a ser aplicada. O pressuposto de que a conservação de florestas é algo que interessa à sociedade, expresso logo no primeiro artigo da lei de 1934, é atualizadíssimo. Mas então, qual o problema? Por que tanta pressão para modificá-la?
Não há mais como fingir que ela não existe, pois não só os órgãos de fiscalização estão mais eficientes, como o próprio mercado (leia-se os consumidores) está começando a exigir que a produção agropecuária cumpra uma lei que é de interesse de toda a sociedade.
Com a edição, em 2008, de um conjunto de medidas voltadas à implementação da lei, algumas lideranças do campo, capitaneadas pela Confederação Nacional da Agricultura – CNA e com o apoio do Ministério da Agricultura e Pecuária – pasta loteada para a ala “ruralista” do PMDB – passaram a pressionar por sua revogação. Mas eles não jogam às claras e não falam nesses termos. Alegam que a lei é ultrapassada, que não tem base científica, que é impossível de ser aplicada e que atrapalha o desenvolvimento do país.
Algumas de suas propostas são:
– ampla anistia a ocupações ilegais, inclusive em áreas de risco;
– a compensação de RL a milhares de quilômetros da área onde originalmente deveria estar;
– o fim de qualquer tipo de proteção a encostas e topos de morro;
– a possibilidade dos estados diminuírem (jamais aumentarem) a proteção às matas ciliares;
– o aumento do desmatamento permitido na Amazônia, dentre outras propostas que, por se basearem em interesses setoriais imediatistas, vão na contramão da história e atentam contra os interesses de toda a sociedade, inclusive dos produtores rurais.
Em 2009, a Câmara dos Deputados criou uma comissão para analisar propostas de modificação no Código Florestal. Tendo uma maioria de deputados ruralistas, ela analisa projetos que pretendem modificar não só a lei florestal, mas vários dos principais instrumentos da política ambiental brasileira, dificultando a criação de novas áreas protegidas e criando a figura do “licenciamento ambiental automático” para obras de significativo impacto ambiental.
Após a realização de algumas audiências públicas pelo país – em sua grande maioria organizada por sindicatos ou organizações alinhadas à CNA – a comissão pode votar uma proposta antes do recesso legislativo de 2010. Pela parcialidade das audiências (análise do Greenpeace sobre as audiências), pelos posicionamentos públicos do relator, Deputado Aldo Rebelo (PcdoB/SP) e pela composição da comissão, há um ameaça real de que possa vir a ser aprovado um projeto que retroceda em muitas décadas os padrões de proteção às florestas brasileiras. (Veja matéria do Jornal Valor Econômico)
Qual o problema com o Código Florestal?
O Código Florestal sempre foi uma lei à frente de seu tempo. Por isso foi historicamente desrespeitado não só pela sociedade, mas pelo próprio Poder Público, que muitas vezes financiou e incentivou atividades que, a rigor, eram ilegais. Por isso hoje há um número significativo, mas ainda não adequadamente dimensionado, de imóveis rurais que estão em desconformidade com a lei e essa é a fonte de toda a revolta.
Mas ao contrário do que afirmam os ruralistas, simplesmente esquecer o que aconteceu e, com uma canetada, regularizar todas as ocupações ilegais hoje existentes, não é a medida mais responsável, embora seja a politicamente mais tentadora. Aceitar as propostas de anistia significa condenar regiões inteiras à permanente falta de água nas épocas de estiagem, a chuvas descontroladas na época mais úmida, aos extremos de temperaturas, à desertificação, à extinção da biodiversidade, aos deslizamentos mortais, às enchentes catastróficas.
São eventos que já estão acontecendo em nosso país e cuja reversão passa, dentre outros, pela aplicação do Código Florestal. Sem ele não há como recuperar a Mata Atlântica, hoje restrita a menos de 7% de sua cobertura original e nem como estancar o desmatamento na Amazônia, que ainda tem 80% de sua cobertura conservada.
Está claro, no entanto, que não basta apenas a aplicação de multas e um aprimoramento na fiscalização para que grande parte dos produtores rurais regularize sua situação. Isso é necessário, mas não suficiente. Por isso várias organizações preocupadas com o problema vêm trabalhando pela implementação de incentivos à aplicação da lei (Conheça as propostas do movimento socioambientalista).
É fundamental que as políticas de apoio à atividade agropecuária passem a incentivar a implementação da legislação florestal, não só oferecendo crédito para a recuperação, mas sobretudo premiando, de diversas formas, aqueles que cumprem rigorosamente a legislação.
Com políticas de apoio, seria muito mais simples aplicar a lei. Mas é importante também capacitar os órgãos ambientais e agrícolas para que saibam orientar o proprietário rural a como bem cumpri-la. Hoje há uma série de atividades que já são permitidas pela legislação mas que poucos sabem e muitas outras questões podem e devem ser resolvidas por boas regulamentações da lei, não necessariamente por outra lei.
Aperfeiçoar, sempre
Isso não quer dizer que a lei não possa ser aperfeiçoada. Pode. Diversas propostas já foram apresentadas, inclusive por organizações ambientalistas (link para propostas). Criar metas de conservação por bacias hidrográficas, por exemplo, é uma delas. Um bom planejamento da paisagem poderia indicar áreas onde é melhor preservar ou recuperar florestas, usando inclusive mecanismos de compensação, do que manter uma agropecuária de baixa produtividade.
Num contexto de aprimorar a lei para melhor aplicá-la, inclusive algumas flexibilizações seriam aceitáveis. Mas não é isso que as propostas de alteração feitas pelos ruralistas e que serão votadas na comissão especial querem e seus membros sequer se dispuseram a ouvir essas propostas. Objetivam apenas anistiar os usos irregulares. E ponto.
Modernizar sim, retroceder jamais
Diante da iminência da aprovação de propostas retrógradas e corporativas pelo Congresso Nacional, é fundamental que a sociedade civil se mobilize.