Setores do Poder Judiciário atrasam desapropriações
Por Vanessa Ramos
Da Página do MST
Um balanço sobre a eficácia do Incra durante o governo Lula demonstra a existência de mais de 200 processos de desapropriação suspensos por juízes.
Leia a íntegra da entrevista com Valdez Adriani Farias, procurador federal do Incra de Santa Catarina, sobre a atuação do instituto.
Você acha que os instrumentos legais do Incra são eficientes?
Os instrumentos postos à disposição do Incra podem ser mais eficientes. Alguns precisam ser reformulados, outros melhor compreendidos ou potencializados. Refiro-me aos instrumentos para aquisição de terras, os quais são fundamentais para uma efetiva democratização do acesso à terra.
Por exemplo, um dos instrumentos é a aquisição de imóveis pela modalidade compra e venda, a qual vem sendo pouco utilizada porque a forma de pagamento se dá em condições e prazos parecidos com a desapropriação-sanção e que não são bem aceitos pelo mercado imobiliário.
Então, sendo a compra um ato que depende da concordância do vendedor, poucos proprietários concordam em vender os imóveis nas condições e prazos previstos no Dec. 433/92.
Esse instrumento, que é complementar à desapropriação, poderia ser potencializado com uma reformulação no sentido de prever prazos e condições condizentes como mercado de terras.
Quais são as vantagens desse instrumento?
Primeira: o Incra utilizaria o instrumento somente para comprar terras de qualidade e localizadas próximas dos grandes centros ou com fácil escoamento da produção.
Segunda: evita-se a judicialização, pois a compra e venda é encerrada com uma escritura pública. Terceira: evita-se o pagamento dos pesados juros compensatórios e moratórios que incidem nos processos judiciais de desapropriação.
Mas repito, esse instrumento é complementar à desapropriação e não pode substituí-la.
A desapropriação-sanção deve ser o principal instrumento do Incra para aquisição de imóveis. Mas a eficiência desse instrumento depende da atualização dos índices de produtividade, que como sabemos estão muito defasados, pois baseados no Censo Agropecuário de 1975.
Por que o Poder Judiciário atrasa os processos de desapropriação?
A eficiência do instrumento da desapropriação-sanção depende de uma mudança de entendimento que predomina no âmbito do Judiciário. Veja que em função da importância e da urgência da Reforma Agrária, o Constituinte dispôs que o processo de desapropriação teria rito sumário.
Passada meia década a Lei Complementar 76/93 regulou este dispositivo, e no seu artigo 18 dispôs que o processo judicial de desapropriação por interesse social para fins de Reforma Agrária tem caráter preferencial e prejudicial em relação a outros processos que envolvam o imóvel.
A Constituição é clara, a lei é claríssima, mas a maioria esmagadora dos juízes que possuem visão eminentemente civilista continua suspendendo os processos de desapropriação em clara afronta à Constituição e à Lei Complementar.
Que problemas burocráticos o Incra precisa resolver?
Problemas burocráticos existem, mas estes podem ser resolvidos com gestão. Penso que o problema está num outro patamar. É que a efetiva implementação da Reforma Agrária por certo é de responsabilidade dos três Poderes da República. Não depende somente do Executivo.
Veja o processo de desapropriação quase sempre é judicializado, e a efetiva destinação da área para Reforma Agrária depende do judiciário. É preciso que o judiciário aplique a Constituição e a Lei Complementar que dispõe que o processo de desapropriação deve obedecer rito sumário e deve ter trâmite preferencial.
Não é possível que um processo que encerra uma urgência e tem em vista o atendimento de um interesse social já declarado pelo Presidente da República fique no aguardo do desfecho de uma ação declaratória de produtividade ajuizada pelo proprietário do imóvel.
Insisto nesse ponto, pois segundo levantamento realizado pela Procuradoria do Incra, existiam mais de 200 processos de desapropriação suspensos em face desse entendimento que simplesmente desconsidera a previsão constitucional e legal.
O Poder Legislativo, por sua vez, não tem atuado para aperfeiçoar o ordenamento no tocante a Reforma Agrária. Exemplo disso é a PEC 438/2001, que prevê a expropriação dos imóveis com trabalho escravo, a qual está parada na Câmara desde 2004, e, portanto, já tramita no parlamento há quase uma década. Se não bastasse essa inércia as investidas do legislativo por meio de CPI´s são na linha da criminalização dos movimentos sociais que lutam pela terra, o que é lamentável.
Como solucionar as falhas do Incra?
Eventuais falhas administrativas podem ser corrigidas com um processo contínuo de melhoria na gestão. A melhora do desempenho da autarquia no tocante à intervenção fundiária depende dentre outros aspectos da realização de algumas alterações legislativas. Algumas alterações podem ser realizadas através de decreto, e, portanto, estão no âmbito de competência do Executivo, outras já dependem do Legislativo.
Como você avalia as condições de trabalho dos servidores do Incra?
As condições de trabalho melhoraram consideravelmente no governo Lula. A autarquia passou por um processo de fortalecimento. O orçamento destinado ao Incra aumentou expressivamente. Novos concursos foram realizados. Na questão salarial, apesar de alguns avanços, o certo é que ainda existe um déficit em relação a outras carreiras do serviço público federal. Esta é uma questão importante que deve ser corrigida e resolvida para evitar que as carreiras do Incra sejam esvaziadas com a perda de profissionais muito qualificados.
Como você analisa as experiências de Reforma Agrária durante o governo Lula?
Temos convicção que avançamos, mas não com a intensidade e com a qualidade que queríamos. Um aspecto positivo que diferencia o governo Lula é no tocante ao reconhecimento dos movimentos sociais enquanto interlocutores dos trabalhadores rurais organizados.
A questão da terra foi vista como um problema social que deve ser resolvido, não como caso de polícia. Pelo menos no âmbito do Poder Executivo, não se criminalizou os movimentos sociais. Essa compreensão que tem clareza do papel do movimento social é importante ponto de partida para chegarmos a bom termo e soluções efetivas.
Na área jurídica, pode se dizer que avançamos em alguns aspectos que reputo importantes, como a questão da função social da propriedade. Desde o lançamento do 2º Plano Nacional de Reforma Agrária passamos a resgatar o conceito constitucional de função social da propriedade. Passamos a defender a necessidade de dar efetividade ao art. 186 da Constituição em toda a sua plenitude.
Assim, o alvo da Reforma Agrária passou a ser não só o imóvel improdutivo, mas também aquele que seu proprietário descumpre as leis trabalhistas, ambientais e de bem-estar.
O Incra vem sendo orientado para proceder a fiscalização de todos estes aspectos. Até então, a função social era reduzida apenas ao aspecto econômico, de forma que o imóvel considerado produtivo ficava imune à desapropriação-sanção mesmo que a exploração do imóvel se desse em afronta as leis ambientais ou até mesmo com trabalho escravo. Uma interpretação, obviamente, absurda.
Quais suas perspectivas para o próximo período?
Acredito que, com as experiências acumuladas, é possível aperfeiçoar os instrumentos para avançar mais na democratização do acesso à terra e na efetiva realização da Reforma Agrária.
No próximo período, uma área que deve merecer especial e destacada atenção é a que trata do desenvolvimento dos assentamentos.
A questão do desenvolvimento deve ser um dos principais pilares da política de Reforma Agrária. É preciso organizar a produção e articular as cadeias produtivas de forma a gerar renda para as famílias assentadas.
Para isso, uma efetiva Assistência Técnica gratuita e integral é fundamental. A nova Lei da ATER (Lei nº 12.188/10) representa um importante passo nesse sentido. Da mesma forma, o fornecimento de produtos pelos assentados para a merenda escolar representa um avanço significativo e importante (Lei nº 11.947/09).
Enfim, penso que a realização da Reforma Agrária depende de vontade política e uma efetiva atuação dos três poderes da República. Por outro lado, é fundamental a existência dos movimentos sociais organizados reivindicando a efetivação da Constituição da República.