Uma ex-floresta na Amazônia


Por Felipe Milanez
De Marabá (PA)
Para
Terra Magazine

Por Felipe Milanez
De Marabá (PA)
Para
Terra Magazine

É difícil imaginar o que pode ser uma ex-floresta, mas os troncos secos de grandes castanheiras que jazem, ainda cravados no chão e em pé, em meio à imensidão do pasto, não deixam dúvidas: aqui era Amazônia. O resto poderia ser o pampa, não fosse o calor implacável. Essa é a visão que se estende por quilômetros, e acompanha a geografia que passa pela janela do carro ao longo da estrada. Pasto, árvores secas e mortas aqui e acolá, bois brancos.

No Bico do Papagaio, onde o rio Araguaia desemboca no Tocantins, e os estados do Maranhão e do Tocantins compartilham a Amazônia com o Pará, a floresta hoje é rara. Região que já foi habitada por ribeirinhos, a “terra prometida” onde nasceram cidades como Palestina, Espírito Santo, Bom Jesus, Canaã dos Carajás e foi o local em que se estabeleceu uma guerrilha “na selva”.

Marabá, no sudeste do Pará, era o centro do maior castanhal de toda a Amazônia, em um “polígono da castanha” que se estendia por mais de um milhão de hectares. Era uma floresta antrópica, construída pela ocupação continua e milenar de diversos povos indígenas que transformaram o ambiente ao adensar a mata de árvores frutíferas. Líder mundial em exportação, esta foi uma importante fonte de renda para as populações extrativistas, que chegavam a produzir 270 mil hectolitros por ano no final dos anos 60 – hoje mal chegam a 10 mil.

Desta cidade rumo ao sul do estado, em direção a Xinguara e Redenção, atravessava-se a maior concentração de mogno de todo o bioma. A madeira mais nobre do mundo era aqui encontrada em imponentes árvores acima de 50 metros de altura e largas no diâmetro. Tanto que os madeireiros chegavam a colher mais de 20 m³ por um hectare, quando a média nos outros lugares de ocorrência desta espécie é próximo a 5 m³.

“Era a floresta mais exuberante da Amazônia. Bonita, alta, com sub-bosque ralo, onde podia-se correr sem passar por cipós ou espinhos”, lembra Adalberto Veríssimo, pesquisador do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), que investigou a região quando o mogno começava a se extinguir comercialmente, no início dos anos 1990.

Vistas do avião, as terras no entroncamento da rodovia Transamazônica com a PA-150 parecem um gigante gramado salpicado de bois brancos e palitos de castanheiras. Difícil imaginar quando essas árvores perdiam-se na mata, como ainda ocorre nas áreas de verde mais denso, onde a floresta resiste em formatos quase geométricos: quadrados, losangos, riscos retos que desrespeitam a geografia.

São unidades de conservação, terras indígenas ou simplesmente áreas ainda não desmatadas localizadas nos fundos das fazendas. Dos 15 mil km² de Marabá, 8,5 mil km² são unidades de conservação, e 7,8 mil km² áreas já desmatadas. Não há praticamente espaço privado com floresta. Tucumã, no mesmo eixo econômico, tem apenas 10% da área com cobertura florestal – São Paulo tem quase 20%. 


Castanheira morta arde em fogo numa área de desmatamento recente, próximo a Marabá.
Protegidas, elas não podem ser derrubadas. São deixadas para morrer
(foto: Felipe Milanez/ Terramagazine)

O francês Emanuel Wanberg chegou a Marabá em junho de 1975, alguns meses depois que foi declarado o fim da guerrilha do Araguaia pelos militares. “Isso aqui era só floresta”, lembra.

Findo o combate, Marabá tornou-se um centro para a expansão da fronteira econômica. Dois grandes eixos de estradas foram construídos: as já citadas Transamazônica, em direção ao oeste, e PA-150, de norte a sul. As áreas dos castanhais foram negociadas de forma privada, transferindo-se os títulos de aforamento para o novo uso econômico da terra, a pecuária. O que sobrou foi objeto de diferentes projetos de colonização que trouxeram migrantes, mas não lograram impedir a concentração fundiária.

Diferentes ciclos econômicos sucederam-se, sempre contando com farto financiamento público. Grandes garimpos de ouro, sendo o mais emblemático Serra Pelada, mas também Cumaru e Maria Bonita.

A indústria madeireira teve seu auge entre os anos 1985 e 1995, e foi responsável por financiar a conversão da floresta em pastagens pela venda de mogno.

Hoje, além da pecuária proposta pela ditadura, é a mineração a locomotiva, iniciada com a implantação do Projeto Grande Carajás nos anos 1980, e a instalação de usinas siderúrgicas de ferro gusa no final da década (intensificada a partir dos 1990). Sem planejamento do consumo de carvão necessário para transformar o minério em ferro, essa siderurgia foi responsável por queimar o que havia sobrado de floresta depois da queda da madeira, numa média de 100 mil hectares por ano, segundo cálculos do Ibama.

“Era muito dinheiro que investiam, e nada ficou aqui”, diz Wanberg, que hoje trabalha com assentados, incentivando a produção agroecológica onde sobrou um pouco de mata, ou uma “capoeira” – áreas de floresta secundária.

 
Castanheira morta em área de pastagens. Onde era sua copa, outra árvore tenta brotar.
A floresta cada vez mais rara tenta sobreviver
(foto: Felipe Milanez/ Terramagazine)

Junto com o desmatamento, veio a brutal violência da luta pela terra, que deixou rastros em assassinatos de lideranças políticas, religiosos progressistas como o padre Josino de Morais Tavares, e diversas chacinas, sendo a mais marcante o Massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996, em que 19 sem terras foram mortos. O trabalho escravo é outra chaga: de 1995 até hoje, foram libertados 11.639 pessoas em situação de escravidão no Pará, sendo a grande maioria nessa região. Nesse imaginário social onde a lei é a bala do pistoleiro, a voz do patrão – muitos deles escravagistas – é temida e respeitada.

Os migrantes continuam a chegar: Marabá tem atualmente uma população superior a 200 mil pessoas, que deve triplicar em cinco anos. Em comum, as cidades da região compartilham a falta de saneamento básico e tratamento de esgoto. No jornal local, Correio do Tocantins, moradores reclamam de um insuportável “forte mau cheiro exalado na orla”. Não há quase títulos de propriedade, mas sobram problemas que uma cidade com crescimento acelerado e pouco planejamento costuma ter.

“Eu acho que estamos na melhor cidade do Brasil. Tirando a violência e a corrupção, a saúde que não é boa, a educação que é muito difícil…”, analisa, de forma contraditória, Sebastião Severino da Cruz, 61 anos, maranhense de Presidente Dutra, há 45 anos em Marabá. Um balaio de diferentes origens, com gaúchos, paranaenses, mineiros e, claro, maranhenses, a mão de obra pobre que alimenta a sanha pela maior quantidade de trabalhadores escravos de todo o país.

Encontro Sebastião em uma tarde quente, enquanto ele ajuda seu filho Amadeus a levantar a própria casa, numa das 30 ocupações de novos assentamentos irregulares – invasões urbanas que explodem na cidade. Uma de suas maiores preocupações é a violência. “Vai chegar muita gente de fora e a cidade vai crescer muito, e a violência com certeza vai aumentar”.

Violência no campo e na cidade. José Cláudio e Maria do Espírito Santo, casal de coletores de castanha no Projeto de Assentamento Agroextrativista Praia Alta Piranheira, em Nova Ipixuna, periferia de Marabá, resistem à pressão de madeireiros atrás das castanheiras, e de carvoeiros que querem queimar o que sobrou de mata nativa para as guseiras de Marabá. Por essa resistência, ele é ameaçado de morte, como diversas lideranças políticas locais. Como eles, o resto de floresta que sobreviveu, está seriamente ameaçado.

O grande ciclo dos últimos 30 anos pelo qual passou o sul e o sudeste do Pará foi o do desmatamento e da violência, com farto financiamento e extração de riquezas naturais. “O mogno é a madeira mais valiosa do mundo, um recurso estratégico que foi perdido para sempre”, diz Veríssimo, do Imazon.

Assim como os castanhais milenares, o mogno e a castanheira são duas árvores representativas da imponência amazônica. Nas formas geométricas de algumas áreas indígenas, como a Mãe Maria, dos índios gavião, próxima de Marabá, ou em alguma unidade de conservação ou assentamento extrativista, esse passado pode ser encontrado como uma peça de museu.