Mudanças no Código valorizam latifúndio
Por Felipe Milanez e Roberto Araújo*
Da Carta Capital
A violência na Amazônia é inerente ao processo de apropriação de terras públicas na expansão da fronteira dos últimos 30 anos. Nesse período, muitas novas cidades surgiram e transformaram-se em sedes municipais a partir do estabelecimento de empresas – madeireiras, agropecuárias – que nasceram da grilagem e da exploração ilegal de recursos, lançando mão às vezes de trabalho escravo.
Por Felipe Milanez e Roberto Araújo*
Da Carta Capital
A violência na Amazônia é inerente ao processo de apropriação de terras públicas na expansão da fronteira dos últimos 30 anos. Nesse período, muitas novas cidades surgiram e transformaram-se em sedes municipais a partir do estabelecimento de empresas – madeireiras, agropecuárias – que nasceram da grilagem e da exploração ilegal de recursos, lançando mão às vezes de trabalho escravo.
O acesso sistemático ao poder político local (prefeituras etc.) de gerentes de fazendas ou de “homens fortes” de madeireiras na emancipação dos municípios, como no Sul e Sudeste do Pará por exemplo, mostra bem a gravidade das consequências dessa expansão desordenada. Os novos territórios encontram-se sob o controle de “empreendedores” cuja estratégia é subordinar os aparelhos político-administrativos a seus desígnios privados. Ou seja, trata-se de perpetuar uma forma de acesso a recursos institucionais que, nas últimas décadas, beneficiou com créditos, mas também garantiu a impunidade desses truculentos “patrões fora-da-lei”.
Em 2001, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, houve 8 assassinatos em conflitos por terra no Pará. Em 2010, foram 18 mortes e, nesse ano, 2011, informa José Batista, advogado da CPT, já foram registrados 15 casos. Nos últimos dez anos, assim, de 219 assassinatos relacionados a conflitos fundiários no Pará, apenas 04 resultaram em processos judiciais. Desses, apenas três casos foram julgados e os réus, aliás, absolvidos. Isso recentemente tem provocado uma reação dos juízes federais, que querem retirar do tribunal de justiça do Estado a competência para instaurar processos sobre esses crimes.
Esses indivíduos, que acreditam serem os representantes de um “setor produtivo”, único responsável pelo “desenvolvimento” da região, possuem uma crença arraigada na própria legitimidade. Na medida em que seus empreendimentos econômicos de fato movimentam setores importantes da economia local, eles não apenas possuem vasto apoio eleitoral, como também logram mobilizar empregados e dependentes em ações de protesto, como fechamento de estradas, etc.
O código florestal, as novas leis ambientais, bem como a adoção de mosaicos de áreas protegidas como forma de gestão territorial pelo Estado brasileiro, têm sido percebidos por esses grupos como uma interferência inadmissível em searas que até então eram os únicos a cultivar: um ataque à hegemonia política e econômica de que desfrutavam incontestes.
Os defensores da revisão do código florestal, em primeira linha os ruralistas, têm procurado assim justificar-se diante da opinião pública sugerindo a ilegitimidade das leis que se propõem a modificar: “uma lei que não funciona é uma boa lei”? – pode-se ler em blogs que militam pela revisão.
Leis que “não funcionam” estão longe de constituir novidade na história das instituições brasileiras, sobretudo quando mexem com a questão fundiária. Em 1884, Joaquim Nabuco constatava assim que “a lei de 7 de novembro de 1831 (a qual proibia o tráfico negreiro e instituía a liberdade de africanos introduzidos no país por esse intermédio) está até hoje sem execução, e os mesmos que ela declarou livres acham-se ainda em cativeiro”.
Quando a lei de 1831 foi promulgada, Nabuco ainda não era nascido. Pouco mais de um século depois de ele escrever “O Abolicionismo”, ninguém mais defende a escravidão, em sã consciência, frente à opinião pública. Mas a comparação entre as questões levantadas em torno da votação do código florestal e a luta abolicionista vai além da mera analogia. O que está em jogo, hoje como ontem, é a autonomia política dos grandes detentores de terras. A mídia já mostrou que os principais parlamentares envolvidos na modificação do código florestal são proprietários de terras que incorreram em pesadas multas dos órgãos ambientais.
Nesse sentido, é lícito indagar se a aprovação do princípio da revisão do código pelo Congresso Nacional – junto a outros fatores de conjuntura, como por exemplo o retorno de Simão Jatene, tradicionalmente mais próximo dos ruralistas, ao governo do Pará – na medida em que foi sentido como uma “vitória” importante dos ruralistas, não insuflou certos indivíduos ou grupos a tomarem as decisões criminosas por trás do recrudescimento de assassinatos de militantes e sindicalistas no meio rural paraense. Recrudescimento que trouxe novamente à baila as famosas listas de “ameaçados de mortes” em municípios da Amazônia Oriental, como Paragominas, São Félix do Xingu, Prainha, Tailândia, Rondon do Pará etc., listas cujos nomes estão associados a conflitos fundiários específicos.
A adesão de grande parte do antigo sindicalismo rural aos temas ambientalistas, nesse contexto em que as leis de proteção ambiental parecem ameaçar a autonomia dos detentores de terras, transforma então os militantes que denunciam desmatamentos ilegais, ou exploração fraudulenta de recursos, como vítimas em potencial.
Nesse quadro, e paradoxalmente, os debates sobre a revisão do código florestal podem contribuir a ocultar os verdadeiros problemas. De fato, para reduzir a anistia prevista no texto ora analisado pelo Senado, já se encontra em estudo a adoção de instrumentos econômicos (como incentivos fiscais, redução de taxas de juros etc.) que permitam aos produtores reflorestarem áreas de reserva legal e áreas de proteção permanente. Aliado a outros mecanismos, como o uso de fundos constituídos a partir do pagamento por emissão de carbono evitada (REDD), a aplicação do código florestal – e das leis ambientais – pode vir a se transformar progressivamente num excelente negócio para esses mesmos grupos que as vêem como ameaça. Em detrimento, porém, daqueles pequenos e médios produtores às vezes mobilizados como aliados.
A continuar se fazendo nos moldes de uma estrutura viciada de acesso aos recursos institucionais, sem enxergar a importância econômica dos sistemas da pequena produção rural, descapitalizados e ainda muito dependentes de políticas de assistência técnica, mas que oferecem imenso retorno social para cada real investido, as políticas ambientais correm o risco de – mais uma vez – contribuir para a “modernização conservadora” que assola nossa história desde a época do escravismo pós-colonial. E perpetuar a hegemonia política dos grandes detentores de terras.
* Felipe Milanez, jornalista e colaborador de CartaCapital, é mestre em ciência política pela Universidade de Toulouse
Roberto Araújo, antropólogo, pesquisador do Ministério da Ciência e Tecnologia, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e Museu Paraense Emílio Goeldi.