Relatora da ONU defende expropriação de terra para trabalho escravo
Da Folha de S. Paulo
Por Claudio Angelo
João Carlos Magalhães
Relatora especial da ONU sobre trabalho escravo, a armênia Gulnara Shahinian disse em entrevista à Folha que a punição para quem emprega trabalho análogo à escravidão no Brasil é “branda demais” e que o país pode dar um exemplo para o mundo se aprovar a expropriação de terras desses fazendeiros.
A PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que cria a possibilidade de expropriação pode ser apreciada pela Câmara nesta terça-feira.
Shahinian se disse preocupada com o rumo que a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) do trabalho escravo está tomando.
Parlamentares da bancada ruralista condicionam a aprovação da PEC a um antigo desejo: mudar a definição legal de trabalho análogo à escravidão.
A idéia é, paralelamente à mudança na Constituição, aprovar no Congresso um projeto que exclua da definição as condições degradantes de trabalho.
Hoje, elas constam do artigo 149 do Código Penal, que prevê pena de reclusão de dois a oito anos, além de multa, a quem reduzir alguém a escravo.
Segundo deputados e senadores ligados ao agronegócio, as duas condições levam a interpretações muito subjetivas por parte dos fiscais e causaram diversas injustiças nos últimos anos.
Os ruralistas também querem definir quando deve ocorrer a expropriação. Para eles, só devem ser expropriadas as fazendas cujas acusações de trabalho escravo já tenham transitado em julgado, ou seja, receberam decisão definitiva na Justiça.
Eles usam o relatório publicado por Shahinian no ano passado sobre a situação do Brasil para embasar sua proposta de acordo para aprovar a PEC, retirando a expressão “trabalho degradante”.
Segundo os deputados, a própria relatora criticou a maneira como o Brasil define escravidão.
Procurada pela Folha, a relatora disse que não concorda com a tese dos ruralistas e nem com a forma como seu relatório foi citado.
“Fiquei contente por eles estarem lendo o relatório e usando-o como ferramenta, mas acho que houve um grande mal-entendido”, afirmou. Segundo ela, seu objetivo é ampliar a definição de escravidão, não limitá-la.
“Eu estou muito feliz com o fato de que a definição de escravidão no Código Penal brasileiro vai além de padrões trabalhistas, traz uma perspectiva de direitos humanos à legislação”, afirmou, por telefone, de sua casa em Yerevan, Armênia.
“Todos os elementos da lei devem estar lá [na lei] para que ela seja eficaz.”
Leia a entrevista:
A sra. está trabalhando numa atualização do relatório do ano passado?
Não. Geralmente o relator especial vem ao país e se encontra com autoridades do governo, com atores da sociedade civil, a comunidade internacional, empresas e vítimas, para tentar entender e colocar recomendações da forma certa para ajudar o país a cumprir os padrões legais internacionais. Os relatórios são uma forma de abrir a porta e estabelecer relações para o futuro. Agora eu estou planejando uma nova missão, um seminário para ver como as recomendações foram implementadas, e se não foram por quê.
O que é a escravidão moderna? Como defini-la?
É uma questão muito complexa. Eu gosto da definição que vocês têm no Código Penal, que é pôr a pessoa em “condições degradantes”. Condições inumanas. Porque a principal questão em torno da escravatura é pôr a pessoa nas condições mais inumanas possíveis. E, infelizmente, apesar de tudo o que se faz no mundo e das legislações, a escravidão ainda existe. Se você ler o relatório, verá que a escravidão existe em todas as partes do mundo. Não existe país imune a ela.
Então a sra. não concorda com a bancada ruralista no Congresso brasileiro quando ela diz que quer mudar a definição de trabalho escravo.
De jeito nenhum. Francamente, fiquei muito feliz por eles estarem lendo o relatório e usando-o como ferramenta, mas acho que houve um grande mal-entendido. Eu estou muito feliz com o fato de que a definição de escravidão no Código Penal brasileiro vai além de padrões trabalhistas. Ela traz uma perspectiva de direitos humanos à legislação, o que é outro componente importantíssimo. Quando eu falei de uma definição mais clara, quis falar de acrescentar no futuro mais situações que acontecem no Brasil que podem ser qualificadas como trabalho escravo para ajudar os legisladores a reconhecer esses casos e puni-los.
Então seu objetivo é ampliar a definição?
Não agora. Estou muito satisfeita com a definição atual e espero que ela seja usada, juntamente com a PEC. Mas eu sou de opinião de que no campo, hoje, os fiscais do Ministério do Trabalho e a polícia já têm tantas situações que podem ser qualificadas como escravidão que podem guiar o desenvolvimento de diretrizes definidoras. É um processo em contínuo desenvolvimento. Mas hoje estou feliz com o que está na lei.
E qual é a sua opinião sobre a provisão da PEC de expropriação de terras onde se pratica trabalho escravo? Não é uma punição severa demais?
Acho que não. A punição é muito modesta na lei brasileira. A expropriação seria um sinal muito claro para outros países de que manter escravos hoje, no mundo moderno, é um crime contra a humanidade. E o fato de ser uma emenda constitucional é fundamental, porque atinge o país inteiro, em vez de passar por vários níveis de legislação local. Um dos buracos que eu encontrei na legislação brasileira, e uma das causas da impunidade, é que há níveis locais de legislação. É por isso que eu defendo no relatório que casos de escravidão sejam adjudicados apenas por lei federal.
E se a PEC passar com mudanças na definição mais estrita de trabalho escravo? Ela ainda seria eficaz?
Absolutamente não. Não se trata apenas de violações trabalhistas, mas de violações à dignidade humana. Todos os elementos da lei devem estar lá para que ela seja eficaz.
A sra. falou que existe escravidão no mundo inteiro. Como o Brasil se compara a outras partes do mundo?
(Risos) Eu sempre julgo os países pelo nível de compreensão do problema e por sua capacidade de agir. O Brasil, para mim, é um exemplo de boa práticas, de reconhecimento de que a escravidão existe e de ações contra ela nos níveis políticos mais altos. Eu levei a experiência do Brasil a vários países por onde viajei, como a Mauritânia, o Equador e o Peru. Eu acho que há interesse e vontade política. Há programas interessantes, mas, como em vários lugares, há lacunas a serem preenchidas.
Quais?
Primeiro, a impunidade. A aplicação da lei às vezes é fraca. Quando os fiscais do Trabalho viajam pelo país, não há muitos casos que se transformam em ações criminais na Justiça. Outra questão são as contradições entre os tribunais federais e locais. Apenas seis Estados brasileiros têm programas de erradicação do trabalho escravo. Estive em Mato Grosso, que tem um programa estadual excelente. Há programas excelentes de erradicação da pobreza no Brasil, que precisam ser reforçados. O acesso à educação também. A intimidação e a violência contra os defensores dos direitos humanos é outra questão. E o processo de reabilitação das pessoas libertadas não é muito forte. A reforma agrária também é uma coisa que eu mencionaria, o processo não foi muito rápido.
Por que a escravidão persiste em países que se desenvolvem depressa, como o Brasil?
As pessoas falam muito sobre o fator trabalho no desenvolvimento. Mas pouca gente fala sobre o fator humano. Não acho que o fator humano seja levado muito a sério e que se dê aos seres humanos o ambiente necessário para que desenvolvam suas habilidades. Os programas [governamentais] geralmente não atacam as raízes da escravidão, nem atingem os mais pobres dentre os pobres. E há, claro, a concorrência econômica, tentar obter a mão-de-obra mais barata.